A situação muda conforme a localidade. Alguns se adaptaram à nova realidade e prosperam ao investir na instrução. Outros definham e podem até fechar
O adiamento para junho de 2014 da entrada em vigor de parte das novas regras para a instrução de pilotos (RBAC 61) apenas atrasa o inevitável para os aeroclubes brasileiros. Criados para incentivar a aviação e abastecidos com doações de aeronaves ao longo de quase 60 anos – entre as décadas de 1940 e 1990 –, estas associações estão diante de uma encruzilhada que as obriga a se tornarem competitivas ou encerrarem as atividades. A terceira via seria se transformarem em clubes aerodesportivos. Entre os 126 aeroclubes registrados no país, alguns já se encontram em situação ruim. Um foi despejado para dar lugar a uma avenida, outro está sob a intervenção federal, um terceiro teve a pista destruída por ordem de um prefeito e quase todo o restante possui aeronaves sucateadas ou sem condições de voo. Em compensação, outros, mesmo enfrentando a concorrência das escolas de aviação, conseguiram renegociar dívidas e estão repletos de alunos ansiosos para voar profissionalmente.
A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) argumenta que a RBAC 61 não foi criada para prejudicar os aeroclubes, nem dificultar a formação de novos profissionais, mas, sim, para aprimorar a qualidade dos instrutores, aumentando de forma considerável o número mínimo de horas em comando (ver quadro), dentro dos parâmetros da RBAC 147 para os Centros de Instrução de Aviação Civil (Ciacs). Na prática, isso significa a migração de alunos para as instituições enquadradas nas novas regras.
A expectativa é que os aeroclubes instalados fora do eixo das grandes capitais, em especial nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, encontrem mais dificuldades, já que perdem alunos, possuem procura menor, custos comparativos mais elevados e poucos instrutores para multimotor e IFR, além da falta de alojamentos para alunos que vem de longe. “Sem o apoio da União, será cada um por si, já que boa parte dos aeroclubes parece ter uma gestão amadora, voltada para PP e PC apenas”, diz o pesquisador Bolívar Pêgo, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). “Esse pessoal está desconectado do mercado e das companhias aéreas em um momento em que a aviação regional deve crescer muito”.
Nos estados de São Paulo e Rio Grande do Sul o quadro é mais promissor. Instalado no Campo de Marte, o Aeroclube de São Paulo renegociou suas dívidas com a União, estimadas em
R$ 15 milhões, e vive dias mais tranquilos do que no passado. Mas há pressões externas. A prefeitura almeja limitar o uso do aeródromo para asas rotativas. Seria uma forma de permitir a construção de prédios mais altos no entorno, valorizando a Zona Norte paulistana. É uma demanda sem cores partidárias, defendida pelo prefeito Fernando Haddad (PT) e por seu antecessor e adversário, Gilberto Kassab (PSD), que enfrenta a resistência do aeroclube e de empresas privadas. Há outra briga mais antiga em andamento. O município também pleiteia retomar a área, que passou para a União logo após a Revolta Constitucionalista de 1932. A ação está parada no Supremo Tribunal de Federal (STF).
Com 8.000 horas de voo, o presidente do Aeroclube de São Paulo, Fadi Sami Younes, se diz tranquilo sobre a situação. Ele e os associados apostaram na razão de ser da entidade: a formação. Houve redução de funcionários – de 120 para 65 registrados – e investimentos nos cursos teóricos. “É o grosso da nossa receita, já que as horas de voo empatam os custos”, diz. Houve um aumento considerável nas inscrições. Eram cerca de 600 em 2002, subindo para 2.400 em 2012. A média de horas mensais de voo é de 1.200. Como há muita desistência, só de 80 a 100 alunos concluem o curso prático para piloto comercial a cada ano. “Mesmo assim não podemos tirar o foco da instrução”, afirma Younes. A frota é de 21 aeronaves e está em fase de renovação (são seis Tupi, cinco Cherockee, um Corisco, três Decathlon, um Seneca, dois Aero Boero e três Diamond DA20). O corpo de professores e instrutores está adaptado às novas regras da Anac. “A intenção é comprar um Diamond DV20 a cada três ou quatro meses, enquanto o mercado estiver aquecido”, diz Younes.
Distante apenas 60 km da capital paulista, o Aeroclube de Jundiaí também se preparou para a transição ao longo dos últimos três anos. O local possui algumas vantagens: terreno próprio, instalações e 22 aeronaves no inventário, além do tempo firme constante na região e do fácil acesso por duas grandes rodovias ligando o interior à capital paulista. “Não ficamos dependendo das doações do antigo DAC. Hoje agimos como empresa”, diz o diretor Marco Antônio Pereira.
No bairro de Belém Novo, em Porto Alegre, o Aeroclube do Rio Grande do Sul está adaptado aos novos tempos. Escola de instrução da extinta Varig até 2007, a entidade foi pioneira na adaptação do manual de procedimentos de acordo com as futuras regras. Um processo que demorou dois anos. A dívida com a União, de cerca R$ 1,2 milhão, está renegociada, e em suas 30 aeronaves – planadores, mono e bimotores – são formados mais de 100 pilotos ao ano. Boa parte dos instrutores é egressa do curso pioneiro de Ciências Aeronáuticas da PUC de Porto Alegre. “Saímos da categoria aeroclube e nos tornamos uma escola de aviação. Esse é o futuro”, diz o gerente Ilton Bonacheski.
Enferrujando no soloAs aeronaves cedidas aos aeroclubes pelo antigo DAC estão em situação cada vez mais precária Falta de manutenção, obsolescência e abandono fizeram com que a maioria das aeronaves de instrução primária cedidas aos aeroclubes pelo extinto Departamento de Aviação Civil (DAC) acabasse parada nos pátios, em processo de deterioração. A Anac identificou que das 440 aeronaves, apenas 169 estavam em condições consideradas boas ou regulares. Em nota, a agência informou que só após vistorias será possível informar quais podem voar. O presidente da entidade, Marcelo Guaranys, afirmou que este levantamento está em andamento. A lei permite que a União, por meio da Anac, retome as aeronaves que não estiverem em condições de uso. Porém, o que fazer com os mais de 200 Aero Boero e quase 50 Paulistinha, Aeromot, Decathlon e Cherockee O que ocorreu no Aeroclube do Brasil é ilustrativo. Em 2012, uma denúncia de pilotos ao site G1 revelou que três Aeromot AMT-600 Guri (prefixos PR-PAC, PR-WAV e PR-DLS) da Anac estavam abandonados nos fundos de um hangar desde 2010. Um deles, o PR-WAV, teria então apenas 11 horas de voo. Ou seja, o tempo despendido para testes e para o traslado desde o fabricante, no Rio Grande do Sul. De acordo com a Anac, os Guri hoje estão abrigados em seu Centro de Treinamento, também em Jacarepaguá, para que não se deteriorem mais ainda. Em outros hangares espalhados pelo país a situação se repete. |
O que muda na instruçãoAs alterações estabelecidas pela Anac em relação ao tipo de missão, à aeronave e ao instrutor | |
Voo noturnoComo era Como ficou Helicóptero por instrumentosComo é Como será MultimotorComo era Como ficou | Simulador por instrumentosComo era Como ficou Aeronave tipoComo é Como será Instrutor de vooComo é Como será Fonte: Anac |
Nos demais estados da federação o quadro é diferente. No Rio de Janeiro, a situação do Aeroclube do Brasil (ACB), o mais antigo do país, fundado em 1911 com participação de Santos Dumont, chega a ser constrangedora. Instalado no Aeroporto de Jacarepaguá, na Zona Oeste da capital, o ACB está sob a intervenção federal. A Infraero obteve na Justiça a reintegração de posse da área. O contrato de comodato expirou em 2008 e a estatal não quis renová-lo. Procurado, o interventor nomeado pela Justiça, José Alberto Parreira, informa estar impedido de dar declarações à imprensa sobre a situação da instituição. Associados do ACB tentam impedir a execução da sentença junto à Secretaria de Aviação Civil (SAC), cujo titular é Wellington Moreira Franco, ex-governador do Rio. Em caso de despejo, a alternativa mais próxima seria a obtenção de uma área no Aeroporto de Maricá, do outro lado da Baía de Guanabara, já que a pista de Nova Iguaçu está interditada para não prejudicar o tráfego da Ponte Aérea. Hoje os alunos do ACB são poucos. Os voos de instrução se limitam a dois Cessna 152 (fora de produção desde 1985) e um Guri. Quem deseja aprender a voar asa fixa no estado do Rio acaba indo para as escolas instaladas em Maricá.
Aeroclube do rio de janeiro, o mais antigo do brasil, pode ser transferido para o aeroporto de Maricá
Em outras regiões, a situação não é melhor na maioria dos casos. O Aeroclube de João Pessoa, na Paraíba, opera em uma pista de terra desde fevereiro de 2011, quando a prefeitura se aproveitou de uma liminar da Justiça para, durante a noite, destruir a pista pavimentada de 1.000 m. De acordo com o presidente do aeroclube, Rogério Iazaby Lubambo, o estrago só não foi completo graças à presença de aeronaves particulares nos hangares, o que impediu uma demolição. Incluindo os três Aero Boero e o Paulistinha do aeroclube, 30 aviões ficaram retidos no solo até a pista ser refeita, quase três meses depois. Essa briga cancelou a instrução por sete meses. Os interesses imobiliários são grandes. A cabeceira 34 está a apenas 400 m da praia, em uma supervalorizada área de 30 hectares. “Somos pobres em receita, mas ricos em patrimônio”, diz Lubambo, que mais de uma vez afirmou que aceita uma permuta por uma boa área, hangares e pista fora da cidade. Nesse meio tempo, parte da receita é obtida com o aluguel da quadra de esporte. “Podemos recomeçar do zero”, ele afirma. Na prática, o aeroclube vive como entidade aerodesportiva.
Já o Aeroclube de Recife acabou transferido para o Aeroporto Internacional de Guararapes, onde ocupa o hangar do governo estadual. Seu terreno de 40 hectares, no bairro de Pina, foi desapropriado para a abertura de uma avenida, a Via Mangue. A solução é provisória. Uma nova área deve ser encontrada, caso contrário suas atividades vão se encerrar. O mesmo ocorre em Joinville, Santa Catarina. A Infraero despejou o aeroclube para expandir as instalações do Aeroporto Lauro Carneiro de Loyola. O valor da desapropriação está sendo contestado na Justiça, o que não deve impedir que a entidade deixe a área.
Em Brasília, a distância é o maior impeditivo. Instalado em Luziânia, a 60 km da capital federal, o aeroclube sofre a concorrência dos ultraleves, que utilizam uma área no Plano Piloto, próxima ao Autódromo Nelson Piquet. Com 16 aeronaves em seu inventário, sendo sete Uirapurus (dois em condição de voo), dois Cessna, um Corisco, um Aero Boero, um rebocador, quatro planadores e um ultraleve, a única alternativa para o presidente Horst Gerhard Hoffmann é tentar atrair novos interessados, principalmente entre os que já pilotam ultraleves. São apenas 150 sócios ativos. Com uma média de dez formandos por ano, está difícil para o aeroclube se manter plenamente ativo.
Por André Vargas / Fotos Edmundo Ubiratan
Publicado em 07/10/2013, às 00h00
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