A saga do primeiro avião de caça com Asa em Delta

O Javelin, que integrou a geração original dos caças a jato, criou um conceito usado hoje até pelo Gripen

Por André Vargas Publicado em 27/02/2021, às 17h00 - Atualizado em 28/02/2021, às 22h37

Javelin foi o primeiro caça de largo emprego com grandes asas em delta e cauda em T com superfícies enflechadas

Vencedor alquebrado da Segura Guerra Mundial, o Império Britânico ainda mantinha sua pujante e criativa indústria aeronáutica durante a década de 1950. Entre 1943 e 1959, os fabricantes Hawker, Supermarine, de Havilland, Gloster, English Electric, Hunting Percival e Folland desenvolveram jatos de caça e treinamento em sucessão.

A partir de 1951, um dos objetivos centrais da Real Força Aérea (RAF, na sigla em inglês) era cumprir as determinações do plano Super Priority, criado pelo então primeiro-ministro Winston Churchill que, de volta ao número 10 da Downing Street, queria proteger os céus do Reino Unido (e da Europa Ocidental) contra a crescente ameaça aérea soviética.

Coube ao Javelin o trabalho mais complexo. Projetado desde o princípio como interceptador noturno para operar em quaisquer condições meteorológicas, nasceu para substituir a versão desengonçada do biposto Gloster Meteor.

Primeiro caça de largo emprego a ser projetado com grandes asas em delta, foi um bimotor dotado de cauda em T com superfícies enflechadas e tripulado por um piloto e um operador de radar para orientar as interceptações e os disparos de mísseis guiados ar-ar (na época, em estágio embrionário).

Sua missão era abater os novos e ameaçadores bombardeiros que os soviéticos desenvolviam sucessivamente, como os Tupolev Tu-4 (código Otan, Bull), que entrou em testes em 1947, Tu-16 (Badger) e Tu-95 (Bear), de 1952 (o Bear está na ativa desde então), e o Myasishchev M-4 (Hammer), de 1953 – assim como os que jamais sairiam da fase de protótipos, como o Tupolev Tu-85 (Barge), de 1951, o Ilyushin Il-54, de 1955, o Tu-98 (Bakfin), de 1956, e o Yakovlev Yak-26 (Flashlight), de 1956.

Um trabalho enorme para um aparelho que, apesar de impor respeito aos adversários pelo tamanho, capacidade e armamento, nasceu repleto de falhas decorrentes da aplicação de novas tecnologias. Algo que só aos poucos seria corrigido.

Concorrência


Primeiro protótipo, matrícula WD804, que foi consumido pelas chamas após um pouso de emergência em 1952

Desenvolvido pelo projetista George Carter, da Gloster Aircraft, o Javelin acabou por ser a última aeronave do fabricante que fez voar o memorável Meteor, o primeiro jato a operar pelos Aliados na Segunda Guerra Mundial.

Em 1961, a empresa acabaria fundida para a formação Whitworth Gloster Aircraft Limited. Não foi um desenvolvimento fácil. Havia sobreposição de especificações nos requerimentos expedidos desde 1947 pelo Ministério da Defesa (MoD) britânico. Desde o início, dois projetos estavam em pauta. O caça diurno acabou se tornando o gracioso e longevo modelo Hawker Hunter.

Para o caça noturno operável em quaisquer condições climáticas, a Gloster apresentou o projeto GA.5, que enfrentou a concorrência acirrada da de Havilland, com seu DH.110. A especificação F.4/48 e a requisição operacional OR.227 definiam que o aparelho seria equipado com quatro canhões de 30 mm (no Javelin, instalados em berços sob a fuselagem), cabine pressurizada, quatro mísseis AA e um potente radar, devendo voar a 970 km/h (525 nós) a 12.190 m (40 mil pés), altitude que deveria ser atingida 10 minutos após o acionamento dos motores.

Novas exigências incluiriam capacidade mínima de voo de duas horas, decolagem em pistas de 1.500 m, resistência estrutural em manobras de até 4 g e equipamentos auxiliares de navegação. A encomenda inicial de 150 aeronaves deveria ser suprida por uma produção mínima de 10 unidades ao mês.

Após uma série de estudos (alguns defasados), a Gloster chegou a alguns desenhos próximos do projeto final. Houve uma série de estudos aerodinâmicos para a adoção das novas asas em delta e a acomodação dos motores escolhidos, o Armstrong Siddeley Saphire Sa.6, com 35,6 kN (8.000 lbf) de empuxo, em substituição aos pesados e menos potentes Rolls-Royce Avon.

O resultado foi um jato robusto, mas harmonioso, com uma larga deriva quando visto de perfil e atarracado quando visto de frente e do alto, com grandes tomadas de ar ao lado do cockpit e asas pesadas, repletas de combustível.

Vencedora da concorrência, a Gloster fez decolar o primeiro dos sete protótipos do GA.5 em 26 de novembro de 1951, sob o comando do squadron leader (na FAB, major) Bill Waterton, chefe dos pilotos de testes.

Estranhamente para os padrões atuais, o cockpit do operador de radar era parcialmente coberto, pois havia a crença de que a luminosidade externa atrapalhava a visualização dos sinais na tela – o que foi corrigido logo depois.

Sob a matrícula WD804, o aparelho desarmado e sem radar se comportou bem, tanto que Waterton afirmou que o caça “era tão fácil de pilotar quanto um Anson (um antigo treinador bimotor a pistão de comandos suaves)”. Na prática, porém, sua afirmação era pura propaganda ou ele estava muito enganado. O Javelin se revelou traiçoeiro para alguns.

Já o projeto perdedor, o de Havilland DH.110, foi aprovado pela Marinha Real (Royal Navy), que solicitou alterações que criariam o Sea Vixen, que permaneceu em operação embarcada até 1972.

Desventuras em série

Os problemas do Javelin surgiriam logo depois. O aparelho tinha tendência a vibrar excessivamente durante giros e cabradas. Em 29 de junho de 1952, durante um teste em velocidade elevada, fortes vibrações causadas pelo fluxo de ar na traseira da fuselagem e nos bocais dos motores arrancaram os dois profundores, o que obrigou Waterton a pousar sem superfícies de controle.

Durante a manobra, os trens de pouso deixaram de funcionar. Auxiliado, em parte, pela capacidade de pouso em ângulos pouco acentuados, o piloto conseguiu se salvar, mas o protótipo foi perdido na pista, consumido pelas chamas. Tamanha habilidade sob a pressão daquelas circunstâncias rendeu ao aviador uma medalha.

O acidente exigiu uma série de modificações em asas, fuselagem e superfícies de controle. Parado no hangar desde agosto de 1952, quando foi concluído, o segundo protótipo, matrícula WD808, tinha novas asas e passou a ser pilotado por Peter Lawrence.

Durante um teste, em 11 de junho de 1953, um acidente vitimou Lawrence, que ejetou tarde demais. Um fenômeno conhecido como deep stall (estol profundo) elevou abruptamente o nariz da aeronave, fazendo-a perder quase simultaneamente velocidade, sustentação e capacidade de controle.

O novo problema estava na cauda em T, que, quando atingida pela turbulência gerada pelo fluxo de ar das asas em determinados ângulos, provocava perda de controle. A solução foi instalar um alarme na cabine para prevenir o piloto.

O novo acidente não impediu a assinatura do contrato de produção. A RAF precisava urgentemente de um novo interceptador. O terceiro protótipo, WF827, voou em 7 de março de 1953 dotado de radar e armamentos.

Já a quarta aeronave, o WT830, desarmada e sem radar, mas dotada de ailerons operados por um motor, fruto das alterações decorrentes do acidente com o segundo protótipo, foi enviada para testes nas instalações da RAF, em Boscombe Down, em 14 de janeiro de 1954. A quinta, WT836, voou pela primeira vez em 20 de julho de 1954.

Dias antes, em 4 de julho, um Javelin acidentalmente ultrapassara a barreira do som em mergulho sobre Londres, causando uma série de queixas. O piloto alegou ter se distraído com o equipamento de oxigênio, porém, houve suspeita de que a intenção da Gloster era “mostrar serviço”, calando a imprensa, que afirmava que o Javelin não conseguiria atingir Mach 1.

Em razão das sucessivas modificações no projeto, dois dias após a entrega do quinto e último protótipo, decolou em Hucclecote a primeira unidade de produção, sob a matrícula XA544. As lições advindas com os testes obrigaram a Gloster a modificar as primeiras três aeronaves de série, que só iriam para suas bases operacionais em fevereiro de 1956. Denominado oficialmente Fighter Javelin All Weather Mark 1 (FAW.1), o primeiro exemplar de série tinha o piloto de testes Dicky Martins nos comandos. Ao todo seriam encomendadas 429 unidades em oito versões. Produzido ainda enquanto o Gloster Meteor tinha encomendas em aberto, peças e partes de sua fuselagem tiveram de ser subcontratadas. Com as possibilidades de exportação se mostrando cada vez mais reduzidas, a RAF colocou mais de duas dezenas de FAW.1 em testes operacionais no Esquadrão 46, em Odiham.

Atrasos

FAW.7 do Esquadrão 64, baseado em Duxford, em 1959: o ângulo mostra os casulos ventrais dos canhões de 30 mm

As limitações iniciais eram tantas que, apesar de considerados em serviço”, os caças não podiam praticar algumas das manobras de combate previstas e, para piorar, não contavam com o míssil guiado por radiação infravermelha Firestreak, ainda em desenvolvimento.

O Javelin só se tornaria definitivamente operacional com a versão FAW.2, equipada com o radar americano APQ.43, no lugar do esperado AI.17. O APQ.43 deu ao FAW.2 um nariz mais rotundo, entrando em serviço nos Esquadrões 46 e 89. Em seguida, veio uma versão de treinamento, T.3, sem radar e com fuselagem alongada para compensar o desequilíbrio, o que permitiu a instalação de tanques de combustível maiores.

Inovador e arrojado para o seu tempo, o Javelin seguia indócil aos pilotos. Em 21 de outubro de 1954, o XA546 entrou em parafuso, matando um piloto da RAF designado à Gloster. Em 8 de dezembro de 1955, outro incidente, quando o XA561 entrou em parafuso chato sem que o paraquedas antispin conseguisse evitar.

O piloto ejetou. As versões posteriores apresentaram alterações que corrigiam os sucessivos problemas. Não existia até então um Javelin definitivo. Com radar AI.17, a versão FAW.4, de 19 de setembro de 1955, adotou geradores de vórtice e um leme acionado hidraulicamente por um motor (como um dos protótipos) para evitar estol em baixa velocidade.

Foram produzidas 50 unidades. O FAW.5, de 26 de janeiro de 1956, era uma atualização da versão 1 com novas asas e as modificações aerodinâmicas da versão 4 que teve 64 unidades produzidas. Já a FAW.6 era apenas a versão 5 com radar APQ. 43 (33 construídos) que voou em 15 de janeiro de 1957.

Acertos

Só com entrada em serviço do FAW.7 (142 construídos), em novembro de 1956, equipado com os quatro mísseis Firestreak exigidos desde o início, é que o Javelin atingiu a maioridade. O modelo contava com novos motores Saphire Sa.7, com 49 kN (11.000 lbf) de empuxo, leme reforçado, fuselagem estendida à ré e quatro canhões Aden de 30 mm no lugar de dois. Aerodinâmicos, os mísseis instalados nas asas não prejudicavam o desempenho em voo.

O FAW.8, de maio de 1958, tinha novos motores Sa.7R com pós-combustores limitados que atingiam 56 kN (12.600 lbf) de empuxo, mas que não podiam ser acionados com eficiência abaixo de 6.000 m. Outra novidade era a substituição da ignição por cartucho pela injeção de nitrato isopropílico.

Curiosidade: quando a partida não funcionava na primeira tentativa, a segunda gerava uma impressionante língua de fogo nas tubeiras. Os pilotos reclamavam do risco de incêndio. As mudanças foram tantas que quando começaram as entregas do FAW.8, o FAW.7 ainda estava em produção.

Como consequência, parte dos FAW.7 foi para o estoque, de onde sairiam em 1959 as 118 unidades convertidas ao padrão FAW.9, estas com novas asas e motores atualizados. Por fim, 40 exemplares do “9” foram transformados em FAW.9R, com grandes tanques destacáveis.

Houve também o FAW.9R(F/R), equipado com uma sonda de reabastecimento em voo, então uma novidade. Outras versões foram estudadas, mas demandariam a criação de um Javelin praticamente do zero, sendo descartadas pela RAF. Uma delas, com uma asa em delta afilada (P.376), seria capaz de atingir Mach 1,6 em voo nivelado.

Se a vida do Javelin foi conturbada, muito se deveu às tecnologias aeronáuticas testadas em seu projeto, principalmente a asa em delta e a cauda em T, soluções consideradas fundamentais para manobras de alta velocidade em grandes altitudes, onde deveria enfrentar os bombardeiros nucleares russos.

Em sua última missão, o Javelin defendeu Hong Kong, ao lado dos derradeiros Spitfire. Na foto os aviões no lendário aeroporto de Kai Tak

Vantagem fundamental para um interceptador, o Javelin podia ser acionado e decolar com mais rapidez do que o Meteor. Sua manutenção também era mais fácil. Nele foram instalados os primeiros assentos ejetáveis de série em um caça britânico. Nos primeiros testes operacionais, o Javelin foi capaz de interceptar bombardeiros Canberra a 160 km (100 milhas) sobre o Mar do Norte em missões noturnas, dando à RAF uma capacidade inédita. Com as modificações e assim que habituados ao caça, os pilotos passaram a considerá-lo robusto e confiável, com um cockpit espaçoso e de boa visibilidade, recebendo os apelidos de Flying Triangle e Ace of Spades.

Ainda que não tivesse sido projetado para dogfight, durante um engajamento o acionamento de seus eficazes freios aerodinâmicos faziam com que os oponentes que tentassem se posicionar na cauda de um Javelin simplesmente passassem direto, tornando-se subitamente alvos de seus canhões. Esse equipamento também permitia descidas para pouso em ângulos acentuados.

Ao lado do Hunter, o Javelin formou a espinha dorsal da caça da RAF, todavia, sua vida operacional não foi longa. A tecnologia evoluía tão rapidamente naquela época que, em 1964, o Reino Unido começou a substituir o Javelin pelo English Electric Lightining. Em 1966, os aparelhos baseados na Alemanha foram desmobilizados, seguidos pelos de Chipre, em 1967, e os de Cingapura, em 1968.

O último exemplar mantido para testes foi aposentado em 1975. Em diferentes estados de conservação, dez aviões são mantidos em exposição estática: oito no Reino Unido, um na Itália e outro na África do Sul. Os dois melhores exemplares estão no Museu da RAF, em Cosford, e no Museu Imperial de Guerra, em Duxford, Inglaterra.

Pouca ação na vida do ‘Dardo’

Protótipo com o cockpit do operador do radar encoberto

Em junho de 1960, um Javelin FAW.7 abateu um Meteor convertido em drone durante os testes do míssil Firestreak. Foi o primeiro e único “abate” de um interceptador que teria muito trabalho durante a Guerra Fria, mas que jamais esteve em ação de verdade.

Os 436 exemplares construídos foram distribuídos em 21 esquadrões no Reino Unido, Alemanha Ocidental, Chipre e Cingapura. Em Chipre, os Javelin costumavam interceptar as aeronaves turcas que se aventuravam perto da ilha, bem como cargueiros e aviões de reconhecimento soviéticos que voavam sobre o Mediterrâneo Oriental, indo e vindo do norte da África.

Entre setembro de 1963 e agosto de 1966, os Esquadrões 60 e 64 foram deslocados de Cingapura para a Malásia, durante os confrontos fronteiriços com a Indonésia. Em 1964, um Hércules indonésio acabou colidindo com o solo enquanto tentava escapar de um FAW.9. No final de 1965, dez FAW.9R de Chipre foram deslocados para Zâmbia, a fim de dissuadir um eventual ataque da Rodésia, que acabara de declarar independência. Sem aeroportos de escala, os caças fizeram a travessia equipados com seis tanques externos, sobrevoando o Egito sem autorização, o que gerou protestos.

Em junho de 1967, Esquadrão 60 foi transferido de Cingapura para o Hong Kong, durante a Revolução Cultural Chinesa. Em sua última operação, o Javelin esteve ao lado dos derradeiros Spitfire (F-24) da RAF, então lotados no lendário aeroporto de Kai Tak.

Gloster Javelin FAW Mk 9

Tipo: Interceptador bimotor biposto para quaisquer condições climáticas
Fabricante: Gloster Aircraft Company
Projetista: George Carter
Primeiro voo: 26/Nov/1951
Entrada em serviço: 29/Fev/1956
Produção: 436 unidades
Tripulação: piloto e operador de radar
Usuários: Reino Unido, África do Sul
Motores: (2x) Armstrong Siddeley Sapphire 7R 
Empuxo: 54,7 kN (12.300 lbf) cada

Dimensões

Comprimento: 17,5 m
Envergadura: 15,85 m
Altura: 4,88 m
Área alar: 86 m²

Pesos

Vazio: 10.886 kg
Carregado: 14.325 kg
Máximo na decolagem: 19.580 kg

Performance

Velocidade (máxima ao nível do mar): 1.140 km/h
Alcance: 1.530 km (956 mn)
Teto de serviço: 15.865 m
Armamento: 4 canhões Aden de 30 mm, foguetes ou até 4 mísseis ar-ar de Havilland Firestreak (alcance de 6,5 km)

* Texto publicado originalmente na edição 245 de AERO Magazine, de outubro de 2014 

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