Quando um médico baiano imortalizou a Lei de Murphy

A famosa regra foi usada pela primeira vez por um cientista ligado ao programa aeroespacial e nascido no Brasil

Por Ernesto Klotzel Publicado em 07/01/2021, às 10h35 - Atualizado em 08/01/2021, às 13h42

Trenó impulsionado por foguetes atingia 1.000 km/h e parava em apenas 15 metros

A famosa e nada auspiciosa Lei de Murphy foi 'adotada' pela primeira vez por um médico nascido na Bahia, que era amigo do tal Murphy. E ironicamente a Lei que rege tudo que pode dar errado, surgiu na aviação, um ambiente que preza e trabalha pela máxima certeza que tudo vai funcionar conforme esperado.

A Lei de Murphy é universalmente conhecida por explicar que se existem duas maneiras de realizar um trabalho e se uma delas puder resultar em catástrofe, alguém vai utilizá-la. Ou a versão mais popular: “O que pode dar errado dará errado, no pior momento possível”. Quem na maior parte do mundo não conhece a lei que, com muitos formatos e adendos, expressa o eventual insucesso de situações e atos do nosso cotidiano?

A Lei de Murphy nasceu na então Base Aérea Muroc, deserto de Mojave, Califórnia, que mais tarde seria batizada Base Aérea Edwards, conhecida por quem acompanha os mais importantes (e perigosos) ensaios de protótipos e foguetes em céus e terra. Em Edwards que os militares dos Estados Unidos testam as mais arrojadas concepções aeroespaciais, como os avançados aviões experimentais ou demonstradores da família X Plane. Aliás, o 'x' se refere a 'experimental', visto que a pronúncia em inglês a ênfase está na letra ‘x’.

A população da base aérea de Edwards é composta por pilotos de ensaio em voo, engenheiros, médicos especializados em medicina aeroespacial, entre tantos outros. 

PROJETO MX981

O Doutor Stapp sendo cuidadosamente amarrado no trenó antes de mais um teste

Entre 1948 e 1949, o Dr. John Paul Stapp, nascido na Bahia, era coronel da Força Aérea dos Estados Unidos e renomado médico aeroespacial. O norte-americano nascido no Brasil chefiou o projeto MX981, basicamente um trenó montado sobre trilhos e impulsionado por foguetes. A velocidade do artefato superava a marca dos 1.000 km/h, percorrendo apenas 800 metros. A aceleração e desaceleração eram brutais.

O estudo pretendia determinar com precisão os limites de tolerância dos pilotos diante das enormes forças g em casos de impacto. Anteriormente, as pesquisas se concentravam na viabilidade operacional e resistência física dos pilotos em assentos ejetáveis.

Para testar os efeitos da desaceleração, era utilizado um recurso aparentemente tosco, porém eficaz: freios hidráulicos, e um espelho de água de 15 m de extensão entre os trilhos no fim do percurso. A frenagem ocorria violentamente em pouco mais de um segundo, criando desacelerações descomunais na “cobaia” sentada (e muito bem amarrada) na parte da frente do trenó.

BONECOS E CHIPANZÉS

A solução normal para testar as mais adversas condições de um impacto sobre o corpo humano era detectar seu limite usando bonecos antropomórficos, os famosos dummies amplamente vistos em testes de batidas de carros. Outra opção, hoje pouco aceita, eram os chipanzés. Isso foi feito inicialmente em Edwards, até que o Dr. Stapp decidiu substituir bonecos e chimpanzés, por um ser humano, no caso, ele mesmo. Colocando-se no lugar das cobaias o Dr. Stapp queria “sentir no próprio corpo os efeitos de uma brutal desaceleração”.

Para isso uma complexa instrumentação era ligada ao corpo da cobaia, assim suas informações eram enviadas pelos acelerômetros a uma central de telemetria próxima e seriam a fórmula para o sucesso ou fracasso de uma pesquisa daquela natureza. O Dr. Stapp, que passou a ser objeto de desacelerações cada vez maiores com o aumento gradual da impulsão dos quatro foguetes, não estava satisfeito com a precisão dos sensores vitais para as medidas de desaceleração cada vez maiores conforme o programa progredia.

Eis que surge o Dr. Murphy

Imagens mostram a reação da violenta desaceleração no corpo do Dr. Stapp

Assim, o Dr. Stapp procurou um especialista no assunto, o protagonista-mor Edward A. Murphy Jr., que trabalhava em um projeto que envolvia uma gigantesca centrífuga com um assento onde eram firmemente amarrados tanto bonecos como chimpanzés, seus favoritos. Ele se dispôs a passar algumas horas em Edwards para avaliar uma solução aos experimentos, quando trouxe uma nova solução, além do sistema de instrumentação: nada menos que 16 acelerômetros fixados estrategicamente no conjunto de “arreios” de fixação, que evitavam um choque fatal de Stapp no fim do percurso do trenó. O sistema garantiria a obtenção de dados fiéis aos efeitos instantâneos do teste.

Ao longo de quase 30 vertiginosas viagens de 800 metros, o Dr. Stapp sofreu um grande número de ferimentos e fraturas distribuídas pelo corpo. Cada experimento era um risco calculado que merecia uma medição confiável dos esforços.

Mesmo os especialistas em medicina aeroespacial acreditavam que o limite absoluto de desaceleração suportável pelo corpo humano – na melhor das condições – era de 18 g, enquanto o Dr. Stapp julgava ser muito superior, e estava disposto a prová-lo.

O QUE PODE DAR ERRADO...

Devidamente instrumentado de acordo com as recomendações do Dr. Murphy, o homem-cobaia Dr. Stapp se acomodou no trenó, foi cuidadosamente amarrado e se preparou para o grande momento. Os sensores foram fixados por um assistente, mas não inspecionados por Murphy – um erro inquestionável sem o qual, simplesmente, não existiria a universal lei que leva seu nome.

No teste Stapp tornou-se o homem mais veloz do mundo ao beirar os 1.000 km/h. Após a prova, tudo era expectativa diante de um grande número de envolvidos no MX981. Mas os dados da telemetria marcavam zero, como se o teste não tivesse sido realizado. Descobriu-se que os 16 sensores haviam sido ligados pelo assistente com a polaridade invertida.

Dr. Stapp ilustrou a capa das principais revistas dos anos 1950 e ajudou a imortalizar a famosa Lei de Murphy

Imediatamente Murphy expressou sua decepção e vergonha com o que seria o maior legado de sua vida: “Se existem duas maneiras de realizar um trabalho e uma delas puder resultar em catástrofe, alguém vai utilizá-la”. O espirituoso doutor aeroespacial nascido no Brasil simplificou para “o que pode dar errado dará errado”.

Murphy voltou a Dayton para seus chipanzés e não pensou mais no assunto, enquanto, por algum tempo, a recém-nascida Lei ficou restrita a base aérea de Edwards, ainda hoje um local de difícil acesso e esquecido por todos. Meses depois o Dr. Stapp registrou uma desaceleração de mais de 46,2 g. Os danos a seu organismo foram intensos e severos. Porém, os dados foram finalmente coletados de maneira correta,

Ao se tornar o homem mais veloz do mundo, não havia meio de Stapp e equipe se livrarem de uma coletiva de imprensa de grande porte. Um dos jornalistas fez a pergunta que imortalizou a lei:

- Dr. Stapp, como o senhor explica que neste ano de experiências críticas nunca houve o menor acidente?

E a resposta foi:

- É que sempre observamos a Lei de Murphy - explicando em seguida o que ela significava.

Ao “furo” jornalístico seguiu-se à repercussão nacional e internacional de uma nova Lei, repleta de lógica e à qual a maioria já foi e sempre será exposta. Segundo historiadores, Murphy só soube da lei pelos jornais e jamais compactuou com a 'sabedoria'.

 

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