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Nível 350

No comando de um gigante

Pilotamos o Airbus A380, no assento esquerdo, durante o <i>tour</i> de demonstração pela América Latina do maior avião comercial de passageiros já construído


Foto: Jonas Cesa

A informação surgiu na chefia de pilotos da TAM. Inicialmente, pensei que se tratava de brincadeira, talvez uma "pegadinha" arquitetada por colegas de trabalho. Não imaginei, na ocasião, que o sonho de voar o A380 começava a se tornar realidade. Aos poucos, depois de algumas conversas com gente de outros departamentos, percebi que a brincadeira era séria, e que iria realmente fazer parte de um seleto grupo de pilotos que teria a honra de participar do voo de demonstração do A380-800 da Airbus, durante o seu tour pela América Latina em 2012.

A programação brasileira faz parte de um tour mundial que a Airbus realiza com intenção de divulgar não somente sua marca, mas também, e principalmente, as capacidades dessa espetacular máquina voadora, conceituada atualmente como ícone da aviação moderna. Para o Brasil, foram selecionados os dias 22 e 23 de março nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, respectivamente. Em Santiago do Chile, a programação ficou definida entre os dias 24 a 29 de março, em função da Fidae (leia mais na p. 50). E, finalmente, a última visita programada para Buenos Aires, no dia 30 de março.

Apesar dos quase 27 anos de carreira, confesso que, com a aproximação da data do voo no A380, comecei a sentir aquela ansiedade típica da primeira decolagem de um piloto: "Como será voar uma aeronave desse porte, com o peso e as dimensões de um gigante?". Apesar de minha experiência anterior em aeronaves Airbus, fiquei me perguntando também quais seriam as dificuldades de readaptação ao sidestick, famoso controle de voo eletrônico utilizado nos Airbus, e comumente conhecido como joystick.

Fotos: Rodrigo Cozzato

A380 EM SUA PLENITUDE
Chega o grande dia... Minha expectativa corresponde ao tamanho do A380. Acordo cedo, por volta das 4h30, pois deveríamos nos encontrar com os pilotos da Airbus às 7h em um hotel próximo ao aeroporto de Guarulhos. No hotel, somos apresentados ao piloto-chefe de teste, Peter Chandler, ao piloto de teste, Michel Bonnifet, e ao engenheiro de voo de teste, Pascal Verneau. Tomamos um breve café da manhã e seguimos para um briefing técnico com detalhes gerais da programação.

Durante o briefing, os pilotos confirmam que iríamos realmente operar o A380 na sua plenitude, e não somente voar como observadores. Para esse voo, a TAM escolheu um grupo de quatro comandantes de A330 e um comandante de B777. Tive o privilégio de ser o escolhido da frota Boeing. Participariam também do voo dois pilotos de A320 da Avianca. Definiu-se, então, que decolaríamos de Guarulhos com destino ao Rio de Janeiro, e, logo após essa escala, faríamos uma sessão de toques e arremetidas no aeroporto de Confins. Dúvidas sanadas, alguns comentários a respeito da operação propriamente dita e partimos para o aeroporto para a realização do tão esperado voo.

Em Cumbica, seguimos diretamente para a aeronave, iniciando de imediato os preparativos da viagem. No interior do A380 juntamos a equipe e dividimos como seria feita a operação da máquina. O primeiro a voar seria um comandante de A330 da TAM, operando desde a preparação de cabine, partida, táxi e decolagem da pista 09L em Guarulhos. Em voo de cruzeiro, entraria outro comandante de A330, ficando incumbido de realizar a descida, pouso na pista 15, táxi e corte dos motores no Galeão. Meu voo seria feito em seguida, com a preparação de cabine, partida, táxi e decolagem da pista 15 no Rio, e os demais pilotos com a divisão estipulada no início da viagem.

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Fotos: Rodrigo Cozzato
Tivemos o primeiro contato com teclados adaptados às mesinhas dispostas em cada posto de pilotagem. Eles são utilizados para inserção de dados de performance e escolha das cartas de subida, descida e aproximação

TECLADO ADAPTADO
Entramos no cockpit e nos deparamos, logo de cara, com os aviônicos de última geração da Airbus. Os sistemas são divididos em 10 telas de cristal líquido dispostas da seguinte forma: dois PFD (Primary Flight Display), dois ND (Navigation Display), dois MFD (Multi-Function Display), dois OIS (Onboard Information System), um ECAM (Eletronic Centralized Aircraft Monitoring) e um SD (System Display). Para que haja a interação do piloto com os diversos sistemas da aeronave, dispomos agora de um novo recurso que não exitia na geração anterior dos Airbus, o interessante KCCU (Keyboard and Cursor Control Unit). Ele possibilita a interface com telas e controles, como o MFD, o ND e o OIS. O KCCU é dividido em duas funções básicas: o KBD (Keyboard) e o CCD (Cursor Control Device).

O KBD é um teclado semelhante ao utilizado em um laptop normal adaptado às mesinhas dispostas em cada posto de pilotagem. Sua finalidade é viabilizar a inserção de dados em um display disposto lateralmente, o OIS. O OIS é praticamente a tela desse laptop. É utilizado basicamente para a substituição total do papel a bordo, com uma visão colorida e bastante atrativa, possibilitando o acesso a todas as informações necessárias ao voo, o que inclui dados de performance, manutenção, cabine de passageiros, logbook, comunicação com a empresa, e toda a documentação operacional. Por documentação operacional entenda manuais de voo da aeronave previstos pelo fabricante, MEL (Minimum Equipament List), CDL (Configuration Deviation List), documentos operacionais da empresa como o Manual Geral de Operações, além de todas as cartas aeronáuticas utilizadas no voo. É o famoso conceito "Paper Less Cockpit" da Airbus.

O CCD é um dispositivo idêntico a um mouse simples, que propicia fácil acesso ao FMS (Flight Management System) pelo MFD. De forma bem simples e objetiva, o FMS gerencia o plano de voo definido pela tripulação, enquanto também provê informações de parâmetros de voo para o FG (Flight Guidance), estabelecendo os limites seguros da operação. O que achei mais interessante nos aviônicos de última geração foi o dispositivo encontrado no sistema eletrônico de informação de voo. O PFD e o ND são divididos em duas partes. Na parte superior do PFD, temos as informações básicas de voo, ou seja, o conhecido "Complete Basic T", com informações de atitude, velocidade, altitude e vertical speed, proas, autopilot status, ILS deviation, rádio altímetro e assim por diante. Já na parte inferior encontramos informações de memo e limitações, posições de slat/ flap e ground spoiler, pitch trim e trem de pouso.

No ND verificamos, na parte superior, as informações de posição da aeronave em relação a auxílios à navegação, plano de voo, dados de mapa e radar meteorológico. Temos também outra novidade, o OANS (Onboard Airport Navigation System), que, por intermédio de uma tecla chamada Zoom knob no controle dos EFIS, possibilita uma visão sintética da superfície dos aeroportos, diretamente no ND, incrementando a orientação espacial da tripulação. Na parte inferior temos mais uma novidade interessante, e que me agradou bastante: o VD (Vertical Display). O VD também fornece uma visão sintética da situação ou perfil vertical da aeronave, juntamente com as informações meteorológicas provenientes do radar, em perfil vertical, e aliada às informações do SURV (Surveillance System), sistema com database do terreno e obstáculos sobrevoados, proporcionando uma consciência situacional ímpar aos pilotos.

Sobre segurança e modernidade, achei excelentes os sistemas BTV (Brake to Vacate) e ROW/ROP (Runway Overrun Warning and Protection). Como o próprio nome informa, o sistema BTV é utilizado para gerenciar a saída de pista em uma taxiway pré-selecionada. É a evolução do simples autobrake. O sistema gerencia automaticamente a velocidade da aeronave no pouso, de forma a atingir 10 Kt a 50 metros antes da taxiway definida. Com isso, otimiza a frenagem, a ocupação de pista e o conforto dos passageiros, Já o ROW/ROP tem como objetivo minimizar o risco de ocorrência do runwayoverrun no pouso. O sistema é ativado no momento que o autobrake é armado e pode funcionar independentemente do BTV. Se o BTV é selecionado, duas linhas referentes às distâncias para pouso em pista seca e molhada são mostradas diretamente no ND. Abaixo de 500 ft na aproximação, estas linhas (representando as distâncias de parada em pista seca e molhada) se movem em tempo real, e mudam de coloração (ambar ou vermelha), conforme um risco potencial de overrun é detectado, em função da velocidade e ou rampa estabelecida durante o pouso. Enfim, os sistemas eletrônicos são tantos que ficaríamos vários dias discutindo e apreciando as maravilhas das novas tecnologias da aviação.

AIRBUS A380-800
Comprimento: 72,72 m
Envergadura: 79,75 m
Altura: 24,09 m
Configuração típica: 525 passageiros divididos em três classes
Capacidade máxima: 853 passageiros
Alcance: 15.400 km
Velocidade máxima: Mach 0.89
Peso máximo de decolagem: 560 t
Peso máximo de pouso: 386 t
Peso máximo sem combustível: 361 t
Capacidade máxima de combustível: 320.000 l
Encomendas (fev/12): 253
Entregas/em operação (fev/12): 71
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O TÁXI DO A380 NO GALEÃO APRESENTA ALGUMAS RESTRIÇÕES EM FUNÇÃO DA ENVERGADURA DE 79,75 METROS DO QUADRIMOTOR. PARA O INGRESSO NO PÁTIO VIA L3, TEMOS DE PERMANECER CERCA DE 3 METROS À DIREITA DA FAIXA AMARELA DE TÁXI

DÓCIL E ESTÁVEL
O comandante Peter Chandler posiciona-se à direita, cedendo o assento da esquerda ao comandante que iria pilotar primeiro o Airbus. Com calma e didática, ele nos orienta a respeito da funcionalidade dos sistemas e instrumentos de voo, preparando a cabine e conduzindo a execução dos checklists necessários à completa segurança da operação. A partir daí, acompanhados com maestria por Chandler, o voo transcorre normalmente, nem parece que estamos a bordo de um gigante. A decolagem de Guarulhos é perfeita, com peso aproximado de 380 toneladas. Subimos direto ao FL250 e, logo em seguida, há a primeira troca de pilotos, permitindo que outro comandante da TAM tenha a oportunidade de sentir o voo. Fazemos a aproximação para a pista 15 com um bom toque na marca de 1.000 pés. Completamos o pouso prosseguindo até praticamente o início da cabeceira oposta, onde curvamos à direita na taxiway H, para ingresso no antigo pátio do CAN, táxi até a taxiway J e cruzamento da pista via taxiway F. Seguimos, então, na B e ingressamos no pátio via L3 para a posição 45.

O táxi do A380 no Galeão apresenta algumas restrições em função da envergadura de 79,75 metros da aeronave. Para o ingresso no pátio via L3, temos de permanecer cerca de três metros à direita da faixa amarela de táxi. Permanecemos pouco mais de uma hora parados no Galeão para apresentação da aeronave. Quando iniciamos os contatos com os órgãos de tráfego aéreo para prosseguir com o voo, recebemos a orientação de que não seria possível realizar a operação de toque e arremetida em Confins, e que deveríamos retornar a Guarulhos. Depois de vários contatos, conseguimos coordenar um toque e arremetida em Campinas, antes do retorno ao aeroporto de Guarulhos.

Foto: Rodrigo Cozzato/Foto: Maurício Sato

Concluído o novo plano de voo, inicio a operação no A380. Fico impressionado com similaridade e a simplicidade da operação em relação ao A320 e ao A330. A dificuldade maior se dá com a utilização do MFD (Multi-Function Display), que apresenta uma série de recursos adicionais que não encontramos nas outras aeronaves, e daí a necessidade de orientação constante por parte do comandante Chandler no preenchimento e na execução das funções previstas para o prosseguimento do voo.

Acionados os motores, somos autorizados a prosseguir para a cabeceira 15, auxiliados por um veículo follow me da Infraero. Para a saída do pátio de estacionamento via taxiway L3, mantivemos a mesma posição utilizada na entrada, somente invertendo o sentido, usando agora 3 metros para o lado esquerdo da faixa, mais seguro.

Ao ingressar na cabeceira, aguardamos na posição alguns minutos até recebermos a autorização de decolagem, enquanto observamos um bando de pássaros cruzando a pista. Autorizada a decolagem, sinto que realmente esse é um dia muito especial para mim, e também, é claro, para todos os que nos observam atentamente nas proximidades da pista, impressionados com a magnitude do avião. Na corrida de decolagem, o A380 apresenta-se dócil e bem estável até atingirmos a V1 e, consequentemente, comandarmos a rotação. O voo é excelente e a pilotagem não difere muito em relação aos outros modelos de Airbus que já pilotei anteriormente, graças evidentemente aos controles eletrônicos de voo disponibilizados pela Airbus. Curvamos à direita e visualizamos a Baía da Guanabara e o aeroporto Santos Dumont. Que vista fantástica! Embora já tenha comandado essa subida por diversas vezes, dessa vez é muito diferente. Afinal, estou no controle do A380 no Brasil, oportunidade que espero repetir um dia com as cores da TAM.

CÚMULOS-NIMBOS
Continuamos a subida para o nível de cruzeiro e realizamos nova troca de tripulação. Assume o assento esquerdo o terceiro piloto de A330 da TAM. Rapidamente, o comandante Chandler orienta-o quanto aos procedimentos de descida e aproximação em Campinas, pois já estamos praticamente atingindo o TOD (top of descent). A descida acontece com vetorações pelo setor norte de São Paulo, em razão da presença de vários cúmulos-nimbos na região. A aproximação é realizada para a pista 33. Sentado no jump seat, observo vários carros estacionados no acostamento da Rodovia Santos Dumont conforme nos aproximamos para o pouso.

O vento sopra de oeste, com intensidade em torno de 15 nós. Atingimos o solo dentro da zona de toque prevista. Enquanto o comandante Chandler executa os procedimentos de recolhimentos dos flaps, o comandante da TAM que pilota o A380 aciona novamente os quatro manetes para a potência máxima, reconduzindo o gigante ao voo imediatamente. Subimos para o FL070, na reta inicialmente, para logo após sermos orientados a curvar à direita e já entrar na STAR de Guarulhos para a pista 27R. A partir daí, há nova troca de pilotos, assumindo agora um comandante de A320 da Avianca para realizar a aproximação em São Paulo. O pouso é conduzido normalmente para pista 27R, a pedido das autoridades locais, para verificação das condições de infraestrutura aeroportuária.

Livramos a pista e, em seguida, procedemos com o táxi para o finger I 01, onde várias pessoas aguardam nossa chegada. O aeroporto praticamente para enquanto encostamos o "Airbus 101", call sign utilizado no voo de demonstração. Após o corte dos motores, realizamos o debriefing, como de praxe. Nesse momento, somos agraciados com um certificado, atestando nossa participação no voo de demonstração do A380. Como não poderia deixar de ser, em forma de agradecimento, convidamos os pilotos para uma confraternização à moda brasileira, numa bela churrascaria. Um dia que ficará para sempre na lembrança como um dos mais significativos da minha carreira.

NOSSO PILOTO
Alexandre Bandeira ingressou na Força Aérea Brasileira em 1985 após concurso público para a formação de oficiais aviadores na Academia da Força Aérea. Concluiu o aprendizado com treinamento em aeronaves de combate no Comando Aéreo de Treinamento (CATRE), em Natal (RN), e passou a operar em esquadrões da FAB pelo país, realizando missões de ataque, patrulha, transporte e instrução de voo militar. Em 1998, desligou-se da FAB para ser admitido pela TAM. Entrou como copiloto de Fokker F100 e, com a expansão da companhia, passou por A319, A320 e A330. Em seguida, tornou-se comandante de F100 e, logo depois, comandante de A319 e A320. Em 2008, passou a exercer a função de comandante de B777-300ER em linhas internacionais, sua atual posição.

Alexandre Bandeira | Fotos Rodrigo Cozzato, Maurício Sato E Jones Cesar Dalazen
Publicado em 25/04/2012, às 07h46 - Atualizado em 27/07/2013, às 18h45


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