A evolução da indústria até se chegar ao atual limite de mais de três horas de voo monomotor com segurança
Em 1919, os aviadores britânicos John Alcock e Arthur Witten Brown venceram o prêmio instituído pelo jornal Daily Mail ao se tornarem os primeiros a ligar a península do Labrador com a Irlanda em 16 horas pelo ar. Cumpriram a missão a bordo de um bombardeiro bimotor Vickers Vimy modificado. Foi a primeira travessia sem escalas do Atlântico Norte, feito que mais tarde, em 1927, tornaria Charles Lindbergh um dos maiores nomes da aviação de todos os tempos. O grande mérito do pioneiro norte-americano foi o de ter voado “solo” de Nova York a Paris.
A façanha de Lindbergh foi um marco na evolução da aviação comercial regular nos Estados Unidos e no mundo, influenciando novos projetos de células e motores. O Atlântico Norte ganhou importância e, a partir de então, passou a incorporar rotas até se tornar o corredor mais importante para o tráfego aéreo comercial no mundo.
O A350 XWB será o primeiro avião a receber a certificação 370 minutos
As companhias aéreas, em número crescente, começaram a operar principalmente bimotores (e alguns quadrimotores) cuja propulsão dependia principalmente de motores radiais a combustão interna e refrigerados a ar. A atividade comercial carecia ainda de uma regulamentação que pudesse preservar as condições básicas de segurança com relação à distância máxima que uma aeronave pudesse se afastar de um aeroporto escolhido como alternativa totalmente segura para um pouso na configuração monomotora. A “perda” de um dos dois motores não precisa, necessariamente, ser imaginada como uma situação emergencial, exigindo uma resposta imediata dos pilotos. Com frequência quase igual, podia (e pode) se tratar de um “corte preventivo do motor” diante, por exemplo, de um aquecimento anormal da cabeça dos cilindros, do óleo lubrificante ou a queda de pressão do fluido. Tudo para tentar poupar o motor de danos maiores – se as condições momentâneas do voo permitissem esses “refinamentos” operacionais, claro!
A primeira regulamentação surgiu já em 1936. Para sua adoção mais rápida e imediata, “nivelou por baixo” as aeronaves em voo e aquelas que ainda se achavam em projeto: independente do tipo de avião comercial e do número de motores, ficava estabelecido que as operações de voo estavam limitadas a uma área que pudesse garantir uma distância máxima correspondente a 100 milhas náuticas (ou uma hora de voo, em média, para a maioria das aeronaves) de um aeroporto escolhido como alternativa.
Nascia naquele momento a operação denominada genericamente de ETOPS (Extended Range Operation with Two-Engine Airplanes), que pode ser interpretada como “Operações de Longo Alcance com Aviões Bimotores” ou, de forma humorística, antevendo a quase total impossibilidade de panes múltiplas em dois motores: “Engines Turn Or Passengers Swim” (motores giram ou passageiros nadam).
As operações com aeronaves como os DC-3, DC-4 e DC-6 podiam se beneficiar do que de melhor já fabricou a Pratt&Whitney em termos de motores a pistão, porém, muito longe da confiabilidade de um motor a jato moderno. No início dos anos 1970, começava a ficar claro que os limites das operações ETOPS com jatos poderiam ser duplicados e, mais tarde, até triplicados ou mais, como realmente aconteceu. Isso porque, estatisticamente, a relação entre o “corte” de um motor em voo com relação ao número total de horas de voo já havia chegado a l corte por 100 mil horas de voo. E quanto à remotíssima possibilidade de ocorrerem panes em dois motores diferentes por motivos igualmente diversos (em um bimotor)? Um pesadelo ou capítulo de ciência ficção que, segundo os mais criteriosos cálculos, um deles da Airbus, poderia ocorrer uma vez em cada... 17.880 anos! Seria a única ocasião em que um passageiro teria realmente de nadar.
Em 1985, o limite ETOPS passou para 120 minutos e, em 1988, para 180 minutos. Com os novos limites, boa parte do mundo pôde ser coberta por rotas quase retilíneas, ou com apenas uma quebra de direção. O melhor exemplo pode ser visto em um voo típico ligando os Aeroportos Internacionais de John Kennedy, nos EUA, e Hathrow, no Reino Unido.
Em 2015, o 747-8 passou a contar com ETOPS. O 777 (p. oposta) pode voar monomotor 330 minutos com o GE90
O Boeing 767 foi a aeronave que popularizou o ETOPS no Atlântico Norte quando o FAA o aprovou para ETOPS-120 minutos em maio de 1985, hoje um limite que não chama mais a atenção. O 767 também ganhou notoriedade em março de 1989, quando se tornou o primeiro jato comercial aprovado para ETOPS-180 minutos, o que lhe permitiu um número maior de voos transoceânicos (Atlântico e Pacífico) – mais rápidos e econômicos – dos principais portões de saída dos EUA. O Boeing 777 foi o primeiro jato comercial projetado tendo em mente suas operações ETOPS como monomotor quanto a sistemas redundantes e procedimentos especiais de inspeção, hoje uma rotina para outros jatos. Na Airbus, a experiência bimotora começou em 1974 com o A300B4, precedendo a regulamentação ETOPS oficial em mais de uma década. Hoje, todos os widebodies da Airbus são certificados para 180 minutos, enquanto a família A320 opera dentro de limites de 120 minutos.
A certificação 180/207 minutos, tempo máximo autorizado para voo monomotor a jatos bimotores como Boeing 777 e Airbus A330, permite uma cobertura de 95% da superfície do planeta. As certificações ICAO abrangem toda a aviação comercial moderna de dois motores Boeing 737/757/767/777/787, Airbus A300/310/320/330/350, Embraer E-Jets, ATR72 e, a partir deste ano, também o quadrimotor Boeing 747-8 Intercontinental.
Em outubro de 2014, a EASA certificou o Airbus A350XWB para ETOPS 370 minutos e, anteriormente, em 12 de dezembro de 2011, a Boeing havia recebido do FAA a certificação para a operação monomotor de até 330 minutos, extensiva à sua frota 777 equipada com motores General Electric.
Preenchidas as condições de manutenção, treinamento, equipamento especial ETOPS embarcado, tipo de aeronave, entre outras, existem cerca de seis certificações que indicam qual o limite máximo de tempo que uma aeronave comercial a jato ou turbo-hélice pode operar na eventualidade de pane ou corte de um dos motores por precaução: ETOPS-75, ETOPS-90, ETOPS-120/138, ETOPS-180/207, ETOPS-240 e ETOPS-330.
A aprovação ocorre em duas etapas. Primeiro, a combinação motor-célula precisa satisfazer às exigências ETOPS durante a certificação de tipo. O que pode incluir o corte do motor voando com o outro operante durante o tempo total de um voo até a alternativa. Muitas vezes esse teste é realizado no meio do oceano – se uma aeronave está sendo testada na faixa ETOPS-180, por exemplo, ela vai voar três horas com um só motor. Em segundo lugar, o operador deve conduzir o voo teste obedecendo à regulamentação ETOPS de seu país. É onde entra a bagagem de experiência de voo, de engenharia, de treinamento da companhia aérea em questão.
É a imensa confiabilidade de um motor aeronáutico moderno que permite que as maiores aeronaves comerciais do planeta possam voar com um só motor durante horas e horas em total segurança, proporcionando uma eficiência cada vez maior à aviação comercial.
Por Ernesto Klotzel
Publicado em 11/06/2015, às 00h00
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