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Um incêndio que mudou a aviação

O legado da operação de resgate com helicópteros no edifício Andraus, 40 anos depois da tragédia


O dia 24 de fevereiro de 1972 certamente ficou marcado na memória de muita gente. De uma hora para outra, um curto-circuito, provavelmente, transformou um dia comum da rotina apressada de São Paulo em aflição e a história da metrópole ganhou o registro de uma tragédia sem precedentes. Um enorme incêndio consumiu o edifício Andraus, bem no centro da cidade.

As primeiras guarnições de bombeiros que chegaram ao local logo perceberam a necessidade de reforço para combater as chamas e salvar as pessoas ilhadas pelo fogo. Quem estava no prédio fazia o que era possível para se salvar. A melhor opção era descer correndo as escadas até alcançar a rua. Porém, conforme as labaredas se alastravam, as rotas de fuga iam sendo bloqueadas. Alguns saíram para os parapeitos, outros subiram para o teto do edifício. Em frente ao prédio, por trás dos cordões de isolamento, os populares pediam calma e rezavam. Em casa, paulistanos que assistiam a tudo pela TV também se mobilizavam e faziam parte da corrente de oração, e quem podia levava leite e gelo para que fosse usado no local do sinistro.

AJUDA QUE VEIO DO CÉU
O que se viu a partir dali foram verdadeiros atos de heroísmo e boas doses de criatividade para livrar cerca de 700 pessoas da morte certa. As escadas Magirus retiravam do edifício apenas as pessoas que estavam nos andares mais baixos. Cordas e escadas foram estendidas a partir de prédios vizinhos, mas uma ajuda essencial veio literalmente do céu, quando o comandante Walmir F. Sayão, que fazia um voo de vistoria, avistou rolos de fumaça negra subindo de um ponto no centro de São Paulo e seguiu para lá. Aos poucos, outros pilotos foram se somando à inimaginável tarefa de retirar, com seus helicópteros, pessoas do alto do prédio em chamas.

A FROTA DE HELICÓPTEROS DE SÃO PAULO AINDA ERA INCIPIENTE, ALGO EM TORNO DE 20 UNIDADES NA ÉPOCA DA TRAGÉDIA, MAS FOI SUFICIENTE PARA SALVAR DEZENAS DE PESSOAS DA MORTE CERTA

José Fernando Portugal Motta, Arnaldo Negreiros, Carlos Henrique Campos Zanini, Olendino Francisco de Souza, Leo Waddington Roza, Judimar Carlos Piccoli, Sílvio de Almeida Monteiro, Hélio de Abreu Fonseca, Thelmo Torres Ayres, Sérgio Bhering Dias Pereira e Cláudio Finatti. Esses nomes serão lembrados pela história não só pelo desprendimento e heroísmo, mas também pelo impulso que proporcionaram à aviação de helicópteros nas grandes metrópoles, em especial à cidade de São Paulo. O feito foi reconhecido pela HAA (Associação Americana de Helicópteros) como o maior resgate aéreo civil feito com helicópteros. Houve um número considerável de homenagens no Brasil e no exterior, tanto para os pilotos quanto para o pessoal de terra.

São Paulo já era uma cidade enorme, mas a frota de helicópteros ainda era incipiente, algo em torno de 20 unidades. Nenhuma delas servia à polícia ou aos bombeiros. Os Grupamentos Aéreos das polícias militar e civil de São Paulo começaram na mesma época, no ano de 1974. Uns poucos empresários descobriram e faziam uso das facilidades dessa máquina para cruzar os céus da cidade e evitar o trânsito, que sempre foi complicado.

OS PERSONAGENS
Falei com alguns personagens para tentar entender o que o episódio trouxe de benefícios para a aviação. Encontrei o comandante aposentado Silvio Monteiro na casa dele, no Rio de Janeiro. Ele me disse que o helicóptero era um mero desconhecido para a grande maioria da população, não passava de uma máquina estranha e desengonçada. “Mas depois que as pessoas viram as imagens dos resgates, a credibilidade do helicóptero aumentou sobremaneira e cada vez mais empresários passaram a utilizá-la”. As principais mudanças ao longo dos anos aconteceram, porém, no próprio helicóptero, segundo o comandante Monteiro. “A máquina evoluiu muito, assim como o ambiente no qual ela voa tornou-se cada vez mais controlado e congestionado”.

Portador de brevê de piloto desde 1967 e empregado do Banco Bradesco a partir de 1961, o comandante Domingos de Souza, hoje com 67 anos de idade, ainda voa em São Paulo. Embora já fosse piloto quando o incêndio aconteceu, não participou porque estava fora da escala. Mas ele explica o que era a aviação em São Paulo em 1972. “O voo sobre a cidade hoje em dia é muito mais seguro do que há quarenta anos, embora o tráfego seja infinitamente maior. O que ocorre é que a formação do piloto está mais bem-estruturada e há um acesso maior a informações essenciais ao voo”. Ele diz que o piloto de helicóptero daquela época praticamente não falava no rádio, a não ser quando fosse operar num aeródromo controlado.

Cláudio Finatti, que ainda atua como piloto executivo e esteve no Andraus, faz coro com seus colegas: “A aviação de helicópteros evoluiu muito depois do episódio e conquistou um respeito importante não só por parte da população, mas também das autoridades”. OK, a aviação de helicópteros evoluiu em São Paulo, mas de que forma exatamente? O major PM Eduardo Alexandre Beni, piloto do Grupamento Aéreo e administrador do excelente site www.pilotopolicial.com.br, disponibilizou o resultado de uma ampla pesquisa que conta detalhadamente tudo o que aconteceu há quarenta anos, e diz que a aviação de forma geral está muito bem-estruturada e organizada.

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PREPARO POLICIAL
Dificilmente uma aeronave civil participaria hoje em dia de uma missão como a do incêndio no Andraus. Os 21 helicópteros da Polícia Militar têm pessoal absolutamente preparado para missões como aquela e poderiam prestar o apoio necessário. Evoluiu, sim, mas a um preço bastante alto, como foi profetizado pelo comandante Judimar Piccoli em uma entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, em 11 de janeiro de 1973. Ele dizia da dificuldade que havia em valorizar a versatilidade dos helicópteros nos grandes centros urbanos, tanto pelas autoridades policiais quanto pelo transporte aeromédico, ou para prestar qualquer tipo de apoio à população. Ele termina com a seguinte frase: “Quem sabe num próximo incêndio”.

Ele não só profetizou o segundo incêndio (edifício Joelma, que ardeu em chamas em 1974), mas escancarou mais uma vez toda a fragilidade da cidade em combater eventos assim, como previu o que hoje parece óbvio: o helicóptero está aí sendo usado para driblar o trânsito e a violência urbana, e São Paulo está entre as cidades do mundo com o maior número desses aparelhos.

Difícil afirmar conclusivamente se houve ou não uma relação de causa e efeito, mas provavelmente sim. O então Ministério da Aeronáutica editou em 1974 a Portaria 18, que trata da construção e operação de helipontos. O consultor aeronáutico e comandante Carlos Alberto de Mattos Bento diz que aquela edição previa uma área de pouso de emergência. Justamente a falta desse tipo de espaço para pouso no topo do Joelma foi apontada como o fator primordial para que o número de vítimas fatais fosse tão alto no segundo incêndio. Essas áreas de pouso de emergência se proliferaram na cidade e, em pouco tempo, estavam sendo usadas para operações corriqueiras, enquanto o número de operadores de helicópteros em São Paulo crescia.

Imagem do incêndio no Andraus estampada na capa da revista O Cruzeiro

CAMINHO SEM VOLTA
Nesse ponto, a evolução da frota e a necessidade em encurtar distância com helicópteros passaram a ser um caminho sem volta. De lá pra cá, não está mais prevista a construção de áreas de pouso de emergência; quem estiver interessado, deve construir um heliponto e se submeter a todos os requisitos municipais e federais. Foram criadas as Rotas Especiais de Helicópteros para ordenar e disciplinar o tráfego dessas aeronaves. Existe uma área controlada exclusivamente para helicópteros sob a aproximação final da pista 17 de Congonhas. Helicópteros só podem pousar e decolar nessa área quando não houver um avião se aproximando para pouso. Uma frequência de coordenação permite aos pilotos se comunicarem para garantir agilidade e segurança dos voos. A frota de helicópteros civis, que era exclusivamente destinada a operações visuais, agora possui uma tendência crescente em operar também por instrumentos, disputando espaço aéreo com jatos. Esse detalhe exige um aviador melhor preparado para gerenciar os diversos sistemas presentes nos modernos helicópteros.

Sim, a aviação de helicópteros mudou muito em São Paulo e o romantismo de pousar na lateral da Marginal Tietê para saborear um caldo de cana não cabe mais. A cidade está mais bem-preparada para enfrentar tragédias como a que aconteceu há quarenta anos. Temos só de agradecer aos heróis daqueles tempos pelo legado.

Ruy Flemming
Publicado em 29/02/2012, às 07h25 - Atualizado em 27/07/2013, às 18h45


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