Aos 84 anos, Newton Saintive, único remanescente da primeira turma de engenharia aeronáutica do ITA, ainda é referência em performance de jatos
Em 1947, quando começaram as obras de implantação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) em São José dos Campos (SP), a abertura do vestibular para a primeira turma do curso de engenharia aeronáutica resultou em 131 inscritos. Os candidatos eram aviadores, especialistas, ex-alunos de engenharia já aprovados para o 2° ano e ex-cadetes do ar. Os primeiros dois anos de aulas daquela turma, porém, foram realizados na Escola Técnica do Exército, na Praia Vermelha, Rio de Janeiro; e os últimos anos, no Ministério da Aeronáutica – que, na época, ficava perto do Aeroporto Santos Dumont. Quatro anos depois, com as instalações do ITA finalizadas, o brigadeiro Casimiro Montenegro Filho, mentor do processo de criação e consolidação do CTA/ITA, fez questão de realizar a formatura da primeira turma em São José dos Campos.
Em boa forma física, o comedido professor da EWM se orgulha de sua saúde: “O médico só me pediu para ter muito cuidado com balas perdidas” |
Os 13 engenheiros, assim como seus familiares e professores, foram levados do Rio para São José em um C-47 da FAB, pilotado pelo coronel Aldo Vieira da Rosa, que se tornaria chefe do Instituto de Pesquisas e Desenvolvimento do CTA. “O C-47 cruzou perigosamente com um avião pequeno, de dorso, e foi obrigado a uma manobra muito brusca, com um fator de carga muito pesado. Ficamos assustados e ao mesmo tempo interessados em decifrar o que de fato havia acontecido”, lembra Newton Soler Saintive, remanescente daquela turma. Ozires Silva e Decio Fischetti afirmam no livro que o pequeno avião estava sob o comando de um piloto em treinamento, e que a imprudência custou ao sujeito alguns dias de cana.
“O presidente da República, Eurico Gaspar Dutra, chegou ao ITA antes da hora marcada”, recorda-se Saintive, “e, por causa disso, a cerimônia de formatura começou sem a presença de todos os convidados”. Saintive entrara para a FAB aos 17 anos, como cadete do ar, mas foi “reprovado”. “Não tinha vocação para piloto. Uma coisa é achar que tem, outra é sentir na pele as limitações. Na época, depois de 15 horas de treinamento, você tinha que voar sozinho. Vi colegas executando um solo com apenas oito ou nove horas de aulas. Voar não é uma escolha. É um dom”.
TÚNEL DO TEMPO
Em 2007, quando completou 80 anos, Saintive procurou os dois últimos ex-colegas da turma de 1950: Olivério Veríssimo da Fonseca, em Porto Alegre, e Edgard Leite Barbosa, no Rio. Olivério já havia falecido. Chegou a convidar Edgard para a festa, mas o amigo não pôde comparecer. “Devido ao estado de saúde dele, o médico desaconselhou a viagem para São Paulo. Ele acabou falecendo meses antes da comemoração dos 60 anos do ITA [em maio de 2010]. Daí que eu era o único remanescente, e me bateu um vazio, na época.”
Além de Edgard, Saintive foi amigo de outros dois membros da velha turma: Jayme Flores Pereira e Urbano Ernesto Stumpf (considerado o “pai do motor a álcool no Brasil”). “Era uma equipe brilhante, com formação excelente. Muitos dos nossos professores vinham do MIT [Massachussets Institute of Technology] exclusivamente para nos ensinar. O professor de aerodinâmica, por exemplo, era ninguém menos que Theodore Theodorsen [1897-1978], que fez carreira na Nasa antes mesmo de ela ter esse nome.”
Dizia-se na época que o professor Theodorsen, um dos maiores aerodinamicistas residentes nos Estados Unidos, autor de inúmeras teorias sobre flutter e hélices, entre outras, se sentira atraído pela possibilidade de ter um túnel de vento inteiramente à sua disposição para pesquisas no Brasil. A construção no CTA de um moderno túnel que produziria ventos de até 500 km/h estava mesmo em processo. “Infelizmente, a máquina só ficou pronta uns dez anos depois, quando o professor Theodorsen já não estava mais aqui. Mas o sistema se equivale aos melhores do mundo.”
SAÚDE E FORMA
Durante quase todo o ano de 2010 – quando o ITA comemorava seus 60 anos – Newton Saintive ainda era chefe de manutenção na Air Brasil. Acordava às 5h, aprontava-se rapidamente e saía de seu apartamento no bairro Paraíso com um Toyota Corolla às 5h15 rumo à academia ACM da rua Nestor Pestana, no centro de São Paulo, onde faz ginástica calistênica. Dali, dirigia até o Aeroporto de Guarulhos. Às 17h30, atravessava São Paulo novamente para dar aulas na EWM Aviation Ground School, próxima ao Aeroporto de Congonhas. Chegava onze da noite em casa. “Ele adora trabalhar. Eu não. Em 2002, me aposentei”, diz Carmem Saintive, sua segunda mulher.
A saúde desse senhor compenetrado e racional (ele diz “positivo” para “sim”, “ok”, “combinado” e “certo”) continua comportando múltiplas atividades, embora elas estejam passando por um processo de desaceleração opcional (“decisão no go”). O geriatra garante que sua saúde está ótima. Aos 84 anos de idade e em boa forma física, o comedido professor da EWM se orgulha de sua condição. “O médico só me pediu para ter muito cuidado com balas perdidas”, brinca.
#Q#Em nosso primeiro encontro, em seu apartamento, ele usava uma calça casual de sarja gelo, camisa de mangas curtas listrada, meias soquetes brancas e tênis Adidas modelo Samba preto com listras brancas. A cirurgia no canal lacrimal (“eu chorava sem chorar”) ocorrera dias antes, sem contratempos. De costas para um estilizado quadro mostrando uma paisagem carioca, ele me conta que seu pai, Carlos, foi atleta de destaque: campeão de basquete primeiro pela ACM-RJ e depois pelo Flamengo. Saintive, carioca de Santa Teresa, aliás, é rubro-negro.
MUDANDO ESTRUTURAS
Deixou o Rio em 1950 não por vontade própria, mas por causa da formatura no ITA. “Eu queria ficar lá, onde a minha noiva estava, mas me mandaram para cá. Sendo militar, eu não tinha escolha. Trabalhei então na oficina de aviões do Parque de Material Aeronáutico do Campo de Marte até 1963”. Aquele era então um dos maiores centros aeronáuticos da América do Sul, comandado por ninguém menos que o brigadeiro [José Vicente] Faria Lima (1907-1969), que dá nome à famosa avenida paulistana onde fica o primeiro shopping brasileiro, o Iguatemi. “Um homem rígido, justo e trabalhador. Sob seu comando ninguém ficava parado.”
Em 1963, saiu da FAB. “Era já capitão, não vislumbrava nenhuma outra promoção possível.” Nos anos 1960, havia no Brasil fábricas (hoje elas são chamadas montadoras) da Ford, Chevrolet, Volkswagen e DKW. A Willys, por sua vez, que mais tarde seria comprada pela Ford, produzia o Jeep e o Aero. Deixando para trás as Forças Armadas, Saintive encontrou emprego exatamente na Willys. Divertia-se entre Aeros, Gordinis e outros carros que hoje são fetiche de colecionadores. “A indústria automobilística pagava melhor que as companhias aéreas. Acho que até hoje é assim”.
Uma de suas principais realizações na Willys foi o estudo de um problema na bronzina, peça que vai entre a biela e o eixo de manivelas. As bronzinas eram produzidas pela Metal Leve, indústria do setor de autopeças fundada pelo bibliófilo José Mindlin (1914-2010). “Havia muitos engenheiros na fábrica. Então eu quis realizar alguma coisa que me diferenciasse. Pesquisei a fundo as bronzinas do Aero Willys, calculei as forças que agiam sobre a mesma e concluí que estava subdimensionada”.
“Sinto falta da engenharia de operações, atividade que exerci na Vasp de 1995 a 2005”
ENTRE OS “SALSICHEIROS”
O sucesso da pesquisa com as bronzinas, reconhecida na sede da Willys nos Estados Unidos, lhe valeu dois convites: um para trabalhar na empresa de Mindlin e outro para ser chefe da manutenção de aeronaves da Sadia S.A. Transportes. “Optei pela última porque queria voltar à aviação. Na época, era obrigatório que o chefe de manutenção fosse formado em engenharia aeronáutica”.
Em 1962, a Sadia – ligada à indústria alimentícia do mesmo nome, daí o apelido de “salsicheiros” dado aos tripulantes de seus aviões – havia comprado a empresa Transportes Aéreos Salvador, ampliando a sua frota para 15 bimotores Douglas DC-3 e doze bimotores Curtiss Commander C-46, com linhas servindo 53 cidades e 15 capitais. “A Sadia só possuía aviões a pistão, enquanto todas as outras possuíam aviões com motores a turbina (Electra, Viscount, 707 etc.). Ao adquirir os Dart Herald, turbo- -hélices ingleses de asa alta, a empresa ficou em patamar de igualdade com as concorrentes”. (Em 1972, a Sadia passou a se chamar TransBrasil S.A. Linhas Aéreas, mudando a sede para Brasília. Muito antes disso acontecer, Saintive já estava na Blindex, onde ficou até se aposentar, em 1988.)
Entre os formandos do ITA, Saintive era o mais jovem (na foto, da direita para a esquerda, o quarto |
DINÂMICA OBJETIVA
A carreira de professor foi a maneira encontrada de nunca se afastar da aviação. De 1958 a 2005, com algumas interrupções, deu aulas de performance (sua especialidade) para pilotos da Vasp. Lecionou também sobre a dinâmica dos motores dos Vickers Viscount da empresa. “Aquele foi um dos mais bem-sucedidos aparelhos da geração pós-guerra, tendo sido construídas 445 aeronaves. Mais silencioso e com menos vibrações, aquele era, digamos, o 787 da época. E a Vasp tinha”.
Na noite da mesma quarta-feira de dezembro de 2011 em que ocorreu o almoço anual da Associação dos Aposentados e Pensionistas da Vasp, eu o vi lecionando na EWM Ground School, onde ingressou em 1989. No caminho, enquanto Carmem dirigia o Corolla pela avenida 23 de Maio, eu tentava obter mais detalhes sobre o almoço, mas Saintive não se lembrava do lugar onde o evento ocorrera. Sacou do celular e ligou para João Silvio Fuim, seu amigo. “O almoço foi na Jardineira Grill”, diz, objetivamente, depois de desligar o aparelho como quem quer se livrar dele.
“Fuim foi meu aluno na primeira turma de DOVs da Vasp em São Paulo em mil novecentos e...”. “Telefona novamente para o Fuim e pergunta em que ano foi”, Carmem sugere. Segundos depois, em poucas palavras, esclarece: “Mil novecentos e sessenta e sete”. Antes de terminar o contato com Fuim, pergunta se preciso saber algo mais. “Não, obrigado.” Sua objetividade também é parcimoniosa.
LIÇÕES E BALANÇOS
Tem seis filhas de dois casamentos: Tânia, Elisa, Bila, Vânia (mora na Alemanha), Renata (mora nos Estados Unidos) e Carla (caçula de 29 anos). Seu livro Exercícios de Teoria de Voo (2001) é dedicado a elas, com os nomes formando uma escadinha em descenso, como um poema concretista. Os exercícios do livro são destinados aos cursos de piloto privado, piloto comercial, piloto de linha aérea, despachante operacional de voo e mecânico de voo. Dos 20 capítulos, 16 referem-se a aplicações de conceitos desenvolvidos em outra obra de sua autoria: Teoria de Voo: Introdução à Aerodinâmica (2010, 5ª edição).
Publicou também Aerodinâmica de Alta Velocidade (2011, 10ª edição) e Performance de Aviões a Jato: Peso e Balanceamento (2011, 9ª edição). Seus textos são adotados em escolas de aviação Brasil afora. Ao entrar no prédio da EWM School, os porteiros o cumprimentam com deferência. “Saintive é quase um patrimônio nosso”, me diz um funcionário da escola. As aulas eram no segundo andar. De uma janelinha próxima à escada de acesso, voltada para a avenida Moreira Guimarães, vê-se a cabeceira 17R da pista de Congonhas.
A aula de “peso e balançamento”, para alunos do curso de DOV, começa às 19h30, pontualmente. O professor projetara um arquivo de PowerPoint na tela, mas não clicava (e nenhum aluno em momento algum pediu a ele que clicasse) em “apresentação”. A visão dos slides, que continham um volume enorme de textos com letra minúscula, os quais Saintive lê em voz alta, ficava restringida. Tópico 1 do slide 34: “Cruzeiro – para aviões de transporte, a seleção do regime de cruzeiro é de máxima importância, pois nele o avião passa mais tempo e percorre a maior parte da distância. Para os aviões, o equivalente dos quilômetros por litro é o alcance específico, que é a distância que o avião percorre por uma libra (ou kgf) de combustível”.
Definitivamente, não é uma aula movimentada, mas os alunos se dedicam ao máximo, e reverenciam o conhecimento do mestre. Desde que saiu da Air Brasil, em 2010, é assim que Saintive preenche o seu tempo: aulas três vezes por semana à noite em períodos específicos do ano. “Sinto falta da engenharia de operações, atividade que exerci na Vasp no segundo período, de 1995 a 2005. Foi ali que me encontrei. Teria sido ótimo se eu tivesse trabalhado naquilo desde sempre. Não havia essa especialidade na época. E a função que exigia o conhecimento que mais tenho, que é a performance de jatos”.
Sergio Vilas-Boas | | Fotos Rodrigo Cozzato
Publicado em 23/01/2012, às 13h10 - Atualizado em 27/07/2013, às 18h45
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