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O copiloto também opina

Mais de 85% dos acidentes têm como principal fator contribuinte a falha humana, por isso trocar ideias dentro da cabine pode ser a "arma secreta" para superar um imprevisto


Do cockpit de uma aeronave monomotor Cirrus à moderna cabine de comando de um Boeing 787 nota-se que os novos equipamentos de navegação aumentam significativamente a segurança de voo, especialmente o nível de consciência situacional dos pilotos. Atualmente, executar uma aproximação abaixo da rampa ideal e voar perigosamente sobre áreas montanhosas tornou-se uma situação praticamente hipotética, já que os aviônicos permitem a visualização eletrônica da trajetória de descida e do próprio relevo abaixo da aeronave. E com a incorporação de novos procedimentos baseados em sinais de satélites, praticamente inexistem locais de pouso onde o aviador não tenha como aproximar com segurança, mesmo com a visibilidade mais restrita. No entanto, a pergunta que muitos devem estar fazendo agora é por que os acidentes aéreos ainda acontecem?

A resposta é simples: "Porque errar é humano". Por mais que se traga a tecnologia de última geração às cabines de comando, ainda temos pilotos operando a máquina, e que podem deixar de seguir a rotina mais adequada em determinada situação, levando a aeronave ao perigo ou mesmo a um acidente fatal. As estatísticas não mentem: mais de 85% das ocorrências tiveram como principal fator contribuinte a falha humana. Para tentar minimizar o "erro", operadores realizam frequentemente cursos de CRM (Crew Resource Management), que em português se traduz como Gerenciamento dos Recursos de Tripulação. O significado da letra "C" de CRM, porém, já foi adaptado para o termo em inglês "Corporate", ou seja, o CRM envolve não só tripulantes, mas toda a companhia aérea, incluindo os funcionários que ocupam cargos administrativos.

Contudo, não são apenas os aviões comerciais que merecem atenção no tocante ao problema do fator humano. Mesmo nas aeronaves menores, é especialmente importante que o comandante escute seu copiloto, mesmo que ele traga pouca experiência em seu currículo. A troca de informações entre os dois numa situação mais crítica pode ser a grande "arma secreta" para superar obstáculos. Por isso os cursos de CRM já estão sendo ministrados em algumas escolas de aviação e nos cursos superiores de Ciências Aeronáuticas. A seguir, temos dois exemplos de acidentes aeronáuticos que envolveram aeronaves de pequeno porte. Como o leitor poderá observar, os comandantes não abriram qualquer espaço para diálogos ou argumentações no cockpit. A falta de CRM aliada a procedimentos não padronizados foram preponderantes. As transcrições de caixas- -pretas, assim como a análise dos fatos que culminaram nos acidentes, foram obtidas junto ao Cenipa (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos).


#Q#

CASO 1
O comandante possuía 20.000 horas de voo e seu primeiro oficial, 357 horas. O avião colidiu com uma árvore na aproximação final e depois voou mais 700 metros até se espatifar próximo à cabeceira. Chovia muito no momento do pouso, sendo que o voo se iniciou no Aeroporto de São Paulo - Congonhas e o METAR para a localidade de destino já não era muito favorável para uma operação visual. Durante a aproximação, as condições obtidas em contato com estação de rádio (AFIS) indicavam uma maior degradação das condições meteorológicas. Mesmo assim, o comandante decidiu prosseguir para o pouso. No CVR (gravador de voz de cabine) está registrada a preocupação do copiloto com um temporal que caía nas redondezas do aeroporto. Quando a aeronave estava a cinco milhas da vertical da pista, o comandante pede para o colega informar à rádio que prosseguiria com a aproximação visual. O copiloto, no entanto, bastante desconfortável com a solicitação, pede confirmação das condições meteorológicas ao operador no solo, esperando que o comandante desista de pousar. E não é para menos, afinal, o voo ainda nem havia atingido condições visuais, apesar de ter reportado o contrário à rádio. Todo o procedimento de aproximação foi realizado fora do padrão, e nos minutos finais, está registrado que o comandante furou a altitude de segurança, descendo sem avistar nada, em meio à forte chuva. O EGPWS (Enhanced Ground Proximity Warning System ou Sistema Aperfeiçoado de Alarme de Proximidade com o Solo) acusa a altura de 500 pés, seguido dos alertas para proximidade do solo e arremetida ("terrain, terrain, pull up, pull up"). Segundos depois, os dois pilotos estavam mortos.

CONCLUSÃO
Nos dois acidentes relatados não houve a intervenção do copiloto no sentido de convencer seu colega a arremeter. Do lado dos comandantes envolvidos, a humildade foi deixada de lado e nenhum deles sequer demonstrou qualquer tipo de interesse em perguntar qual era a opinião do copiloto. Bem diferente do comportamento do comandante Chesley Sullenberger, do famoso voo da US Air, que executou pouso de emergência de uma aeronave Airbus A320 sobre o Rio Hudson, na cidade de Nova York, em 15 de janeiro de 2009 . No meio de toda aquela pressão e os poucos segundos para a tomada de uma decisão final, o comandante Sully virou-se para o copiloto Jeffrey B. Skilles e perguntou: "Alguma sugestão?". Naquele mesmo ano, em um encontro durante a feira aérea de Oshkosh, Sully mais uma vez enalteceu a importância do uso do CRM naquele acidente e concluiu: "Contei com a colaboração imprescindível do meu colega e, se não fosse ele, acho que não completaríamos bem a missão"

CASO 2
Aqui, felizmente, ninguém morreu, mas houve danos no trem de pouso, em uma das asas e no tanque de ponta de asa (tip-tank) direito da aeronave. O comandante tinha 17.500 horas de voo, sendo 14.000 delas registradas no avião envolvido na ocorrência. Seu copiloto possuía quase 2.700 horas, sendo 1.879 também operadas naquela mesma aeronave. O voo teve início em São Paulo - Congonhas (SBSP) com destino final em Cruzeiro do Sul (SBCZ), e escalas em Cuiabá (SBCY), Porto Velho (SBPV) e Rio Branco (SBRB). A jornada da tripulação contada desde a apresentação até o momento da ocorrência foi de 10 horas e 15 minutos, dentro dos padrões admitidos pela legislação brasileira. A tripulação, entretanto, enfrentou em rota condições meteorológicas adversas, sendo certo que as condições de SBCZ, segundo o METAR, indicavam céu nublado e base da camada de nuvens a 1.000 pés.

Na etapa SBRB - SBCZ, o copiloto exercia a função de PF (Pilot Flying) enquanto o comandante exercia a função de PNF (Pilot Not Flying). No primeiro contato com a estação (AFIS), os tripulantes foram informados de que o aeródromo operava por instrumentos (VOR/DME), com visibilidade estimada em 3.000 metros, reduzida por névoa úmida. O PF iniciou o afastamento direto pela radial 311 e, após dois minutos, ingressou na curva-base para cumprir o procedimento de aproximação por instrumentos, baixando para 1.800 pés. Com a visibilidade prejudicada, o copiloto transferiu a pilotagem para o comandante, que passou a ser o PF na etapa final. Naquele momento, a aeronave estava a duas milhas da pista e mantendo 1.150 pés. Para diminuir o ofuscamento em meio à camada de nuvens, o comandante optou por não ligar os faróis da aeronave. Antes de atingir a MDA (Minimum Descent Altitude, ou Altitude Mínima de Descida), os dois tripulantes realizam um check cruzado quanto à radial de aproximação. Toda a aproximação foi executada com boa padronização até chegar à curta final, quando o comandante decidiu voar abaixo dos mínimos da carta e ainda teve como respaldo a falta de um contra-argumento do copiloto, que acabou sendo complacente com a operação inadequada do seu colega. "Agora estamos sobre a pista, ela está ligeiramente à sua esquerda!", disse o copiloto segundos antes de o avião tocar o solo fora do alinhamento e sofrer avarias significativas. Os dois pilotos foram vítimas da chamada "síndrome do pouso", na qual não se admite arremeter, fazer uma nova órbita ou ir para o aeroporto de alternativa que está em melhores condições para a operação.

Por: Marcelo Camargo/ Edição: Robert Zwerdling
Publicado em 22/05/2012, às 06h29 - Atualizado em 27/07/2013, às 18h45


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