O clássico Cessna 310R Turbo tem uma cabine muito espaçosa, ótima performance em voo e custa bem menos do que outros bimotores a pistão
Todo piloto é um romântico. Afinal, voar exige paixão e dedicação. Ao longo da minha vida, tenho visto homens que não puderam se dedicar ao voo por várias circunstâncias. Porém, a fascinação permaneceu como uma brasa viva em suas almas. Um belo dia, a chama reaviva e volta com intensidade redobrada.
Tive um aluno que começou a voar comigo aos 63 anos de idade e passou os últimos 30 anos de sua vida exclusivamente dedicados ao voo. No Aeroclube de São Paulo, tive a oportunidade de conviver com uma família composta por avô, pai e neto, que frequentavam a mesma classe do curso teórico para piloto privado e, juntos, fizeram as aulas práticas. O filho encaminhou-se para a aviação comercial, enquanto o pai e o avô continuam até hoje no voo desportivo.
Da fascinação por voar surge a paixão pelos aviões. Seja um apaixonado por aeronaves antigas, velhos pássaros de guerra, aeronaves comerciais ou jatos militares, o fato é que todo piloto tem os seus amores preferidos. Minha primeira paixão, ainda na adolescência, foi o Sabre F-86D, que lutou na Guerra da Coreia. Esculpi em madeira maciça um modelo tosco que conservo até hoje.
Minha segunda paixão foi o Mustang P-51, seguido pelo Douglas DC-3. Desses, o único que ainda não consegui voar é o Sabre F-86. Quando comecei o curso teórico para piloto privado, não conseguia dormir sem antes sonhar acordado com o Fairchild PT-19. Também desenvolvi uma paixão especial pelo Bücker Bu-131 Jungmann e pelo North American NA T-6.
Quando me preparava para o curso de piloto comercial, surgiram novos amores. Foi a fase dos bimotores. Lembro-me perfeitamente da primeira vez que entrei no cockpit de um Piper Navajo; ainda consigo sentir o seu cheiro. O segundo foi o Piper Aztec e o terceiro, e mais gracioso deles, o Cessna 310. Sua silhueta esbelta e delgada, o nariz afilado, com aqueles charmosos tip-tanks... foi amor à primeira vista.
Passaram-se mais de 15 anos até a primeira oportunidade de voá-lo para valer. O Cessna 310 é um bimotor de 5 a 6 assentos, cujo primeiro protótipo voou no dia 3 de janeiro de 1953 e entrou em produção no começo de 1954. Apenas no final de 1968 foi lançado o modelo turboalimentado e, em 1973, a Cessna lançou as versões 310 II e Turbo II, que já saíam de fábrica completamente equipadas para o voo por instrumentos (IFR) e com algumas novidades em termos de conforto e conveniência.
Os dois modelos aspirados utilizavam o motor Continental IO-520-M, de 285 hp cada, e os modelos Turbo tinham o motor TSIO-520-B, de 285 hp, turboalimentado.
O shape longilíneo engana quanto ao espaço interno disponível. Quando olhamos o Cessna 310 de fora, temos a sensação de que falta espaço na cabine de passageiros. A surpresa vem quando ingressamos na cabine. A largura e a altura dentro da cabine são impressionantes. Inclusive, os dois últimos assentos são superconfortáveis, exigindo apenas um pequeno ajuste nos bancos da frente.
Por fora, as carenagens dos motores foram alongadas, o que confere maior elegância ao 310, além de permitir a instalação de dois bagageiros de 120 libras cada, mais um tanque de álcool, que vai no bagageiro direito, para o sistema antigelo. O bagageiro traseiro tem capacidade para 160 libras e pode ser ampliado se os dois últimos assentos forem removidos. O painel de instrumentos é full IFR, original da Cessna, que inclui ARC/HSI e radar.
A Força Aérea Norte-Americana empregou os Cessna 310 desde 1957 como aeronaves para missões administrativas e como cargueiros leves sob a designação U-3. Até o final de 1978, um total de 5.196 aeronaves haviam sido fabricadas.
Depois de vários anos, tenho novamente a oportunidade de voar este velho amor. O PT-OIN é um modelo 310-R Turbo fabricado em 1980. Algumas características foram introduzidas na versão R, a partir de 1980. O nariz foi alongado, permitindo um amplo bagageiro de 350 libras, e o cone de cauda recebeu uma elegante barbatana ventral que melhorou sensivelmente sua estabilidade longitudinal. Na minha opinião, o 310 é lindo. Os projetistas da Cessna foram extremamente felizes nas concepções de fuselagem, asas, cauda, carenagens dos motores e, especialmente, nos tanques de ponta de asa.
Estamos em Jundiaí (SP), no hangar da Maule, onde o comandante Márcio de Souza Oliveira, piloto do India-November, me dá um briefing completo do painel e das operações. Depois de tantas aeronaves voadas, confesso que me sinto como um principiante frente ao primeiro avião. Acredito que esta é a postura correta para um piloto de ensaios que voa muitos tipos de aeronaves diferentes e não tem grande intimidade com nenhuma.
O inesquecível Fernando Almeida tinha essa mesma postura. Apesar de sua imensa experiência e cultura aeronáutica, foi um homem de uma humildade cativante. O comandante Rolim Amaro, meu grande amigo e aviador extremamente experiente, costumava repetir: “Piloto que voa muitos aviões não voa bem nenhum.”
De volta a Jundiaí, recebo as últimas instruções do comandante Márcio e, enquanto ele se ocupa da notificação de voo, fico ainda algum tempo memorizando as posições de cada instrumento de voo, indicadores dos motores e hélices, comandos de trem de pouso, flaps, freio de estacionamento e outros pequenos detalhes do cockpit. Estes são os principais problemas de quem não tem intimidade com o painel da aeronave que vai operar.
Mesmo na aviação comercial, em jatos de grande porte, voando num mesmo modelo de aeronave, existem pequenos ou grandes detalhes que variam de uma aeronave para outra e sobre os quais o aviador precisa estar ciente. Na aviação leve, estas minúcias são muito mais relevantes e importantes.
Numa aeronave do mesmo modelo e até do mesmo ano, é possível encontrar rádios de marcas e gerações diferentes, radares e instrumentos de navegação que exigiriam um ground school completo, ou mesmo comandos e instrumentos cuja disposição foi alterada dependendo da vontade do proprietário. Motores, hélices, dispositivos que alteram a performance — como geradores de vórtice, Robertson Stall e outros — são capazes de modificar totalmente a performance e velocidade de uma aeronave.
Todos estes detalhes precisam ser conhecidos, memorizados e testados. Um dos aspectos mais recorrentes nos voos de ensaio é o comandante da aeronave não se sentir à vontade para fazer observações ou propor correções ao piloto de ensaio. Esta é uma falha que procuro alertar a todos que me acompanham. Procuro deixá-los bem à vontade para que me passem todos os detalhes importantes na operação da aeronave que vamos ensaiar e a todo momento sugerir o que for necessário.
Peço, inclusive, que assumam os comandos quando julgarem que há uma situação perigosa e busco enfatizar que eles conhecem aquela máquina melhor do que eu. Notificação feita junto ao DAESP de Jundiaí e estamos prontos para a partida dos motores. Como as fotos já haviam sido feitas no voo anterior, vamos ter o India-November totalmente disponível para curtir, sem estarmos atrelados a uma aeronave-paquera.
Motores acionados, rádios ligados, ar-condicionado ligado, coordenação de solo informada sobre nossa movimentação e, então, rolamos pela taxiway em direção à cabeceira 35. Os técnicos da Cessna fizeram um excelente trabalho ao posicionar a altura dos assentos e dos para-brisas, proporcionando uma excelente visibilidade, tanto no solo como em voo. A maciez na rolagem, a eficiência dos freios, a boa manobrabilidade na triquilha e o baixo nível de ruído interno vão somando pontos na qualidade dessa máquina.
Cheque de cabeceira concluído, instrumentos na faixa verde, porta travada e observo a reta final livre. Libero o freio de estacionamento e alinho na faixa central da pista. Vou levando as manetes de potência à frente e iniciamos a corrida de decolagem. Quando entram os turbocompressores, parece que recebemos uma injeção de glicol, tamanha a força do empuxo.
Mantenho a reta, aguardando o velocímetro atingir 90 nós, e decolamos sem muito esforço. Com climb positivo, recolho o trem de pouso e observo a velocidade pular para 120 nós. Executo a primeira redução de potência e de hélices, e continuamos a subida. Curva à esquerda na proa de Indaiatuba e contactamos a Torre Campinas. Somos instruídos a continuar a subida para 6.500 pés.
O dia está magnífico. Apenas fragmentos de nuvens alto-estratos tingem de manchas brancas o fundo azul-anil do céu. O sol forte luta para elevar a temperatura fresca da manhã. Com o climb indicando 500 pés/minuto, observo 140 nós indicados no velocímetro. Nivelamos a 6.500 pés na proa de Piracicaba e a velocidade indicada dispara para 180 nós. O GPS corrige a velocidade para 188 nós de VS (vertical speed). O India-November está no seu elemento e seu nariz afilado corta a massa de ar como um planador de alta performance.
Faço um ajuste fino nos compensadores e não observo qualquer tendência de guinada ou rolagem. Confirmo que a barbatana ventral foi uma excelente solução para a velha tendência de “sambar de cauda”. Inicio uma curva de 25 graus de inclinação à direita, hands-off, e não observo qualquer tendência em mergulhar ou desfazer a curva. Para a esquerda, porém, há uma pequena tendência em aumentar a rolagem e o nariz baixar.
Inicio um suave mergulho, deixo embalar para 190 nós, comando uma cabrada até 45 graus e aguardo a velocidade cair para 100 nós. Então giramos numa reversão à esquerda. Repito o mesmo procedimento com reversão à direita e o India-November executa um perfeito oito-preguiçoso.
A harmonia de comandos é excelente, apenas noto o leme de direção um pouquinho pesado. Deve ser em razão da barbatana ventral. Reduzo os motores e vamos para os estóis. Com 15 graus de flaps, o estol acontece a 70 nós. Com full-flaps e trem baixado, anotamos 65 nós. Completamente honestos e sem qualquer tendência.
Com flaps 15 e mantendo-se a 85 nós, o piloto tem total disponibilidade de comandos e leva o Cessna 310 para onde quiser. Na condição monomotor, bem compensado, pode-se voar tranquilo, apenas suportando uma redução de velocidade e do teto de serviço.
Com um consumo de 120 litros/hora, 5h30min de autonomia, alcance de 2.200 quilômetros e um teto de serviço de 14.500 pés, o Cessna 310 é uma aeronave de excelente custo-benefício se comparada a outras aeronaves da mesma categoria.
Avaliação terminada, giramos para a proa de Jundiaí e iniciamos o retorno. Compenso para 200 pés em descida, faço uma pequena redução de potência e vamos iniciando a descida em alta velocidade. Ingresso no circuito de tráfego do aeródromo com velocidade de 140 nós, intercepto a perna do vento reduzindo para 120 nós, trens embaixo, e inicio o afastamento para interceptar a perna-base. Flaps 15 na perna-base e giramos para a reta final reduzindo a velocidade para 100 nós.
Full-flaps, manetes das hélices à frente, fazemos o check-list pré-pouso e cruzamos a cabeceira reduzindo para 90 nós. Com os motores reduzidos, trabalho no compensador de nariz e o trem principal lambe o asfalto duro da pista. Deixo a triquilha assentar e o avião vai perdendo velocidade. Trabalho um pouco nos freios e consigo sair na interseção para o pátio central. Parece que o comandante Márcio aprovou o meu pouso.
Rolamos para o hangar da Maule onde vou concluir as minhas anotações e fechar o ensaio. Conforme já disse, a relação custo-benefício desta aeronave é excelente. Um detalhe que me intriga é o porquê dos bimotores a pistão terem perdido tanto terreno nos últimos 20 anos. Com exceção da Piper, que ainda vende bem o Seneca, e da Beechcraft, que produz o Baron, nota-se um desaquecimento neste segmento de aeronaves.
Talvez uma explicação esteja na grande escalada no preço da gasolina de aviação e no avanço dos monomotores turboélice. Seja como for, vale a pena conferir o velho e bom Cessna 310. Você não irá se arrepender.
CESSNA 310R TURBOCHARGED | ||
Fabricante: | Cessna Aircraft Corp | |
Preço básico: | US$ 235.000,00 | |
Motor: | (2x) Continental TSIO 520 B – Turbocharged | |
Potência: | 285 hp (cada) | |
Hélice: | Hartzell, tripá | |
Capacidade: | 1 piloto + 5 passageiros | |
Envergadura: | 11,25 m | |
Comprimento: | 9,74 m | |
Altura: | 3,25 m | |
Peso básico vazio: | 1.550 kg | |
Peso máximo de decolagem: | 2.495 kg | |
Capacidade dos tanques: | 541 litros | |
Consumo: | 120 litros/hora | |
Velocidade máxima: | 207 nós (383 km/h) | |
Velocidade de cruzeiro: | 194 nós (360 km/h) | |
Velocidade de estol: (configurado para pouso) | 65 nós (120 km/h) | |
Razão de subida: | 1.662 pés/min | |
Distância de decolagem: (obstáculo de 50 pés) | 518,16 m | |
Distância de pouso: (obstáculo de 50 pés) | 545,59 m | |
Alcance: | 2.200 km | |
Autonomia: | 5h30min (mais reservas) | |
Teto de serviço: | 14.500 pés |
* Publicado originalmente na AERO Magazine 139 · Novembro/2005
Por Decio Corrêa*
Publicado em 23/01/2025, às 14h00
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