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Poder feminino

Brasileiras pioneiras

Se hoje as mulheres estão cada vez mais presentes no cockpit de aviões e helicópteros país afora, é porque quatro aviadoras desbravaram esse caminho



Joaninha e Ada (de óculos), juntas

Uma das maiores emoções na vida de um aviador certamente é o primeiro voo solo, em que ele decola, voa e pousa sozinho, sem ter o auxílio de um instrutor. O coração bate acelerado e o checklist é lido em voz alta, assim como os procedimentos a serem executados na cabine. Manete à frente, corpo colado contra o assento e o ruído do motor em regime de decolagem. Em poucos segundos, o avião deixa o solo e o piloto ri sozinho, numa mistura de emoção e felicidade, e o pensamento dividido entre o voo daquele momento e o do futuro, nos comandos, quem sabe, de uma grande aeronave comercial.

O privilégio de alçar voo pela primeira vez e ter a chance de progredir na carreira de aviador era, até pouco tempo atrás, quase um privilégio dos homens. Mas as mulheres vêm ocupando cada vez mais espaço e hoje são milhares de aviadoras em todo mundo, seja no comando de um widebody, como no coletivo de um helicóptero em missões offshore. Mas não foi fácil no começo. Se hoje elas estão cada vez mais presentes nas cabines, podemos atribuir essa vitória ao pioneirismo das primeiras aviadoras que venceram preconceitos e demonstraram que tinham a mesma habilidade ou até mais destreza na pilotagem do que muitos pilotos do sexo masculino. Essas grandes aventureiras tornaram-se heroínas e os verdadeiros exemplos para as mulheres pilotos nos dias de hoje.

Antes mesmo da "pioneríssima" norte-americana Amélia Earhart, a primeira mulher a atravessar o Atlântico Norte em voo solo, outras aventureiras já haviam se arriscado pelos ares, como a cubana Aida de Acosta, que teve como instrutor o brasileiro Alberto Santos Dumont, e pilotou o dirigível de número "9" em 14 de julho de 1903. Foi o próprio brasileiro quem também deu asas à primeira passageira a voar num balão, aliás, uma compatriota. Eglantina Prado, esposa do empresário paulista Antônio da Silva Prado, subiu aos céus de Paris a bordo do balão Lutèce em 10 de agosto de 1907.

JOVEM ACROBATA

Eglantina não ganhou tanto destaque na mídia quanto as primeiras aviadoras brasileiras que, por mérito, são lembradas pelos grandes feitos na história da aviação. Elas arriscaram a vida e venceram preconceitos e até mesmo a desaprovação de familiares. A paulista Joana Martins Castilho D'Alessandro foi uma das raras exceções. Ela, ao contrário de outras, foi muito incentivada pelos pais e acabou se tornando a aviadora acrobata mais jovem do mundo, fato que lhe rendeu menção no Guiness Book, o livro dos recordes. Com apenas 14 anos de idade, realizou o voo solo e, com 15 completos, ganhou o primeiro campeonato de acrobacia em 26 de outubro de 1940. Na época, ficou conhecida como a "namorada dos ares" e disse a um repórter da Folha da Noite que fazia loopings sem qualquer tipo de dificuldade ou receio. Na "Semana da Asa" de 1941 foi novamente campeã.


Thereza (esq.) e Anésia

A precocidade chamou atenção das autoridades. Recebeu o brevê das mãos do então presidente da República, Getúlio Vargas, que ainda prometeu dar-lhe de presente 100 horas de voo. Pura demagogia. No final das contas, o governo não pagou uma hora de voo sequer, mas também não fizeram a menor falta. Joana continuou recebendo do pai os subsídios necessários para a realização dos voos, que tinham como principal cunho o incentivo para que outras mulheres pudessem se engajar na carreira aeronáutica. A divulgação não poderia ter caído em melhores mãos. O magnata das comunicações, Assis Chateaubriant, encarregou-se pessoalmente das reportagens nos Diários Associados, dando destaque para a destreza da aviadora na pilotagem da aeronave Bücker, além de ótima performance também como paraquedista.

Joana, que nasceu em 10 de novembro de 1924 na cidade de São Paulo, considerava-se cidadã de Taubaté, onde morou boa parte da vida. Sua foto estampou até o rótulo de um refrigerante que era produzido na região pela companhia Bebidas Mariotto Ind. e Com. Ltda. Ficou conhecido como "Guaraná Joaninha", uma alusão ao apelido carinhoso atribuído à aviadora. O refrigerante não existe mais, porém, Joana jamais caiu no esquecimento, pelo menos entre a população de Taubaté. Seu nome foi escolhido para batizar um dos hangares do aeroclube, além de ruas do município, e até uma unidade regional do Rotary Clube. Quem também pretende perpetuar a memória da aviadora é um dos seus quatro filhos, o médico mastologista Adalgir D'Alessandro, que reside em São Paulo e coleciona grande acervo com fotos e reportagens sobre Joana. Seu maior sonho: assistir a um documentário ou ler um livro sobre a história da vida de Joana. A aviadora faleceu no dia 14 de junho de 1991, e seus restos mortais estão sepultados no Cemitério da Quarta Parada, na cidade de São Paulo.

A PRIMEIRA BREVETADA

Ainda hoje paira uma dúvida sobre qual aviadora realmente teria sido a primeira a receber o brevê no Brasil: Thereza de Marzo ou Anésia Pinheiro Machado. Para o jornalista especializado em aviação e historiador, Roberto Pereira, não há dúvidas. "As duas receberam os brevês com a diferença de apenas um dia e, sem dúvida nenhuma, Thereza foi a nossa pioneira", afirma Pereira. A aviadora nasceu em 6 de agosto de 1903, em São Paulo, e desde cedo cultivou o gosto pela aviação. No entanto, encontrou logo de início uma grade barreira para realizar seu sonho: seu pai, o italiano Alfonso de Marzo. Para o industrial, lugar de mulher era dentro do lar, cuidando da família. Um pensamento um tanto machista, mas comum entre a maioria dos homens no início do século 20. As dificuldades só foram superadas quando Thereza de Marzo conseguiu convencer o pai ao ganhar o apoio da mãe, Maria Riparullo.

A jovem foi orientada na época por vários aviadores, alguns veteranos da Primeira Guerra Mundial, entre eles os irmãos italianos Enrico e João Robba, e o principal incentivador, Fritz Roesler, alemão natural de Estrasburgo e que obteve a cidadania brasileira em 1932. Thereza de Marzo evoluiu muito bem na pilotagem da própria aeronave, um francês Caudron G-3, de 90 kW (120 hp), comprado na época por oito contos de réis. No dia 17 de março de 1922 realizou o voo solo e o check aconteceu poucos dias depois, quando foi aprovada com distinção pela banca examinadora formada por Luís Ferreira Guimarães, diretor do Aeroclube do Brasil; o instrutor Fritz Roesler; o piloto e instrutor João Robba; e os deputados Manuel Lacerda Franco e Amadeu Saraiva. A aviadora recebeu o brevê nº 76 de Piloto-Aviador da Fédération Aeronautique Internacionale no dia 8 de abril de 1922, tornando-se oficialmente a primeira aviadora brasileira.


Ada Rogato recebe a 1ª Licensa feminina como piloto de planador, em 1934, no Clube Paulista de Planadores - Campo de Cumbica

Thereza de Marzo acabou se casando com o instrutor Fritz Roesler em 25 de setembro de 1926. Só o que ninguém esperava era que o até então grande incentivador cortaria as asas da piloto de uma maneira tão drástica. O fantasma dos velhos preconceitos se fez presente, e o ciumento Roesler determinou que ela deixasse de voar alegando que bastava um aviador na família. A aviadora se resignou, abandonando a grande paixão de voar, com um total de 329 horas e cinquenta e quatro minutos de voo em caderneta. Ainda teve destaque no histórico reide aéreo entre São Paulo e Santos, por ocasião das comemorações do centenário da Independência, em 1922, que reuniu diversas personalidades ligadas à aviação, entre elas Sacadura Cabral e Gago Coutinho. Thereza de Marzo, aliás, foi cicerone dos aviadores portugueses, que ficaram famosos por terem realizado a primeira travessia aérea do Atlântico Sul.

Apesar de abandonar a pilotagem, Thereza de Marzo continuou trabalhando ao lado do marido em empreendimentos voltados para a aviação, que incluíram a criação da Escola de Pilotagem e do Clube de Planadores, no Campo de Marte, em São Paulo. Nos hangares, Roesler, que também era engenheiro, construiu os primeiros planadores EAY-101 e aviões "Paulistinha" EAY-201, modelo que tinha projeto baseado na versão americana do Taylor Cub.

Em 1976, já com 73 anos de idade, Thereza de Marzo foi condecorada com a Ordem do Mérito Aeronáutico. Faleceu dez anos depois, em 9 de fevereiro de 1986, e seu corpo está sepultado no cemitério do Araçá, em São Paulo.

Os brevês das primeiras aviadoras brasileiras: Thereza ficou com o número 76, enquanto Anésia obteve a carteira com o número 77

SOBRE OS ANDES

Contemporânea de Thereza de Marzo, a aviadora Anésia Pinheiro Machado tem história semelhante, mas foi mais feliz, já que ninguém interrompeu sua jornada na aviação, tendo realizado diversos reides ao longo de três décadas. Nascida no dia 5 de junho de 1904, em Itapetininga, interior paulista, Anésia iniciou as atividades aeronáuticas na mesma época que Thereza e também teve o mesmo instrutor, o alemão Fritz Roesler. O voo solo aconteceu na mesma data que o de Thereza de Marzo, em 17 de março de 1922, mas o brevê, de número 77, acabou emitido no dia seguinte, em 9 de abril de 1922.

De olho no sucesso de Thereza de Marzo e no destaque que a mídia deu ao reide da Independência realizado entre São Paulo e Santos, Anésia resolveu apostar num voo mais longo para que pudesse também merecer a atenção da imprensa e das autoridades. Executou um trecho interestadual entre as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. O voo foi operado em monomotor Caudron G3, o mesmo tipo operado por Thereza, batizado com o nome de "Bandeirante". Nos dias atuais, um voo neste trecho é realizado em apenas 40 minutos em aeronaves a jato, mas, naquela época, representava um grande desafio. Anésia levou quatro dias para chegar ao seu destino final, mas voava apenas uma hora e meia por dia, já que tinha que parar para reabastecer e executar a manutenção de rotina. Na chegada ao Rio de Janeiro, foi recepcionada por autoridades governamentais e o aviador Alberto Santos Dumont, que lhe deu uma medalha de ouro, réplica de uma condecoração que recebeu da princesa Isabel. A medalha virou amuleto da sorte de Anésia, que a carregou consigo até o final da vida.

Do pequeno voo entre São Paulo e Rio de Janeiro, a aviadora mais tarde cruzou as Américas, percorrendo pouco mais de 17.000 km. Destaque para o voo entre Nova York e o Rio de Janeiro realizado em aeronave monomotora Kian-Navion Super 260 e o cruzamento da Cordilheira dos Andes, de Santiago do Chile a Mendoza, na Argentina.

Foram muitos desafios, que exigiram coragem, superação e boa pilotagem. Anésia Pinheiro Machado acabou oficialmente reconhecida e proclamada como Decana Mundial da Aviação Feminina, em 1954, pela Federação Aeronáutica Internacional (FAI), durante a Conferência de Istambul, na Turquia. Anos antes, fora convidada pelo governo norte-americano para realizar um curso avançado de aviação na CAA (Civil Aviation Administration), hoje denominada FAA, a administração federal de aviação civil dos Estados Unidos. Também frequentou as aulas de voos por instrumentos ministradas em Nova York nas instalações da Pan American World Airways, sendo que o convite partira da própria companhia norte-americana.

Anésia ganhou tanto prestígio na América do Norte que, durante uma de suas viagens, conseguiu atrair atenção das autoridades ligadas à exploração espacial. Ela fazia campanha para que uma das crateras da Lua recebesse o nome de Alberto Santos Dumont e, no final das contas, seu esforço acabou sendo recompensado. Durante a 15ª Assembleia Geral da União Aeronáutica Internacional, realizada na Austrália, foi aprovado o nome do aviador como nova designação da cratera, antes batizada como Hadley-B. Detalhe: até hoje nenhuma área da Lua tem o nome dos irmãos Wright, considerados pelos norte-americanos os verdadeiros inventores do avião. A cratera Santos Dumont está localizada nas imediações do lugar onde pousou a nave espacial Apollo 15, que executou a primeira missão de caráter eminentemente científico e a primeira que utilizou o jipe lunar.

Anésia faleceu no dia 10 de maio de 1999. Cremada, teve as cinzas transferidas para uma urna, hoje exposta no acervo do Museu do Cabangu, localizado na cidade mineira de Santos Dumont, e que se dedica à preservação da memória do chamado "pai da aviação".

Thereza de Marzo ao lado do instrutor e futuro marido Fritz Roesler, que ficou conhecido como o "pai" do Paulistinha e, mais tarde, um dos fundadores da Vasp

AVIAÇÃO NAS VEIAS

A aviadora Ada Leda Rogato, ou simplesmente Ada Rogato, como ficou conhecida, certamente é uma das mais lembradas pelos feitos históricos, que não foram poucos. Nascida em 22 de dezembro de 1910, na capital paulista, ela começou a vida trabalhando como funcionária pública, mas, cultivou desde cedo sua paixão pelo voo, lendo nos jornais todas as notícias sobre os reides e as novas façanhas dos ases em suas máquinas voadoras. Os recordes eram batidos e os aviões melhorados, tornando-se cada vez mais seguros.

Filha de Maria Rosa e Guglielmo Rogato, imigrantes italianos, Ada tornou-se a primeira mulher a obter o brevê de piloto de planador e de paraquedista, e a terceira a conseguir a licença para operar aeronaves convencionais, em 1935. Antes de se lançar em reides históricos durante a década de 1950, a aviadora já ganhava destaque em todo o território, utilizando suas habilidades para atrair o público em diversos shows aéreos. Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, realizou voluntariamente nada menos que 213 voos de patrulhamento no litoral do estado de São Paulo e, em 1948, tornou-se pioneira do polvilhamento aéreo, quando foi convidada pelas autoridades para ajudar no combate à praga da broca-do-café.

Durante os anos 1950, o nome de Ada Rogato passou a ser pronunciado em todos os cantos das Américas. Em 1956, ela foi convidada para participar da comissão organizadora das comemorações pelo cinquentenário do 1º voo do 14-Bis. Voou de Norte a Sul do país, percorrendo nada menos que 25.000 km em 163 horas de voo. Além de divulgar os feitos de Santos Dumont, Rogato também transportou uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, atendendo a um pedido das autoridades eclesiásticas. O interessante é que os voos não se restringiram às áreas mais populosas. A aviadora cruzou a selva amazônica, sem se perder, utilizando apenas uma bússola. Foi justamente graças a essa excelente habilidade como navegadora, que Ada Rogato conseguiu anos antes cruzar as Américas, chegando até o estado norte-americano do Alasca, a noroeste do Canadá.

Para a jornada, utilizou um pequeno monomotor Cessna 140 prefixo PT-ADV, batizado com o nome "Brasil", atualmente exposto no Museu TAM, localizado em São Carlos, interior de São Paulo. O reide se iniciou no dia 5 de abril de 1951 e só foi finalizado em 27 de novembro daquele mesmo ano, com um total de 51.064 km percorridos em 364 horas de voo solo. Parece loucura, mas nessa viagem, a aviadora superou sozinha os Andes e o desafio dos fortes ventos de barlavento e sotavento, além das altas altitudes, uma temeridade se levarmos em conta que o avião tinha um motor a pistão de apenas 67 kW (90 hp), 11 m de envergadura e velocidade máxima de 160 km/h.

O voo da Ada Rogato praticamente coincidiu com o reide pelas Américas de Anésia Pinheiro Machado sendo que, enquanto sua contemporânea recebia homenagens no Chile, ela partia do Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro. Os detalhes dessa interessante viagem entre outras curiosidades estão descritos com muita precisão no livro "Ada - Mulher, Pioneira, Aviadora", de Lucita Briza, que pode ser encontrado em grandes livrarias.


A paulista Joana Martins Castilho D' Alessandro recebe prêmio de campeã em campeonato de acrobacia realizado no Rio de Janeiro

A aviadora recebeu diversas homenagens e condecorações ao longo da vida e também póstumas, lembrando que os correios lançaram, em março do ano 2000, selos postais estampando as mulheres pioneiras da aviação brasileira incluindo uma imagem comemorativa dos 50 anos do primeiro sobrevoo dos Andes por Ada Rogato e o seu "Brasileirinho", um avião do modelo CAP-4. Seus últimos anos de vida foram dedicados à preservação do antigo Museu de Aeronáutica de São Paulo, que funcionava no Parque do Ibirapuera, mas que acabou sucumbindo aos cupins e principalmente à falta de vontade política em preservar a memória da aviação no Brasil. Talvez o desgosto por ver tamanho descaso tenha acelerado o processo de degradação do seu corpo diante de um tumor maligno. Ada Rogato faleceu em 15 de novembro de 1986, aos 76 anos. Seu corpo foi velado no Museu de Aeronáutica e as homenagens ficaram por conta de uma apresentação especial da Esquadrilha da Fumaça. Os restos mortais da aviadora estão depositados atualmente na gaveta de número 368 do ossário do cemitério de Santana, em São Paulo.

Por Robert Zwerdling | Fotos Arquivos Pessoais
Publicado em 08/03/2016, às 14h03 - Atualizado às 14h21


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