Um raio-x da crise da Boeing

A Boeing acumula más notícias desde 2013 e vê seu poder comercial se enfraquecer ano a ano

Por Edmundo Ubiratan Publicado em 16/04/2024, às 12h00

- Boeing

Há uma década, a Boeing vive um pesadelo intermitente. O recente caso de desprendimento de um tampão da porta de emergência em pleno voo redirecionou os holofotes para os problemas da Boeing, que pareciam próximos do fim. No dia 5 de janeiro, o 737 MAX 9, de matrícula N704AL, reportou emergência após decolar de Portland, nos Estados Unidos. Uma das portas de emergência havia sido arrancada da aeronave.  

Na verdade, a porta estava ali como uma espécie de “tampão” para uma saída de emergência não utilizada. Os modelos 737-900, 737 MAX 9 e 737 MAX 10 contam com saídas de emergências adicionais, montadas logo após as asas. Elas são utilizadas quando o operador opta por uma configuração de alta densidade.

Em casos como esse da Alaska, que voa com menos assentos, as portas não são instaladas e no seu lugar é fixado um tampão. A Boeing optou, de maneira assertiva, por produzir todos os aviões alongados da família 737 com a provisão da porta de emergência e, assim, independentemente da configuração adotada por um operador, o seguinte tem a opção de voar com mais ou menos assentos.

Além disso, a decisão facilita a gestão da linha de produção. Imagine o tamanho do custo adicional apenas na cadeia produtiva se a Boeing tivesse de produzir um avião com e outro sem porta. 

Repercussão entre clientes 

Interior do 737 MAX 9 da Alaska Airlines que perdeu o tampão de uma das portas o dia 5 de janeiro de 2024

 

O que o fabricante norte-americano ainda não conseguiu explicar é como diversos aviões da família 737 MAX 9 foram entregues com parafusos de fixação do tampão da porta soltos ou mal instalados – e o pior, mesmo após passar por um amplo escrutínio da FAA, a agência de aviação civil dos Estados Unidos, e da opinião pública.

O caso gerou a paralisação temporária de todos os 737 MAX 9 e criou um mal-estar com os principais operadores. O CEO da American Airlines, Robert Isom, afirmou durante uma teleconferência sobre os resultados que o caso da porta era inaceitável: “A Boeing precisa agir em conjunto. As questões com as quais eles têm lidado, e que remontam a alguns anos atrás, são inaceitáveis”. 

Apenas na primeira semana de paralisação dos voos com o avião, a Alaska Airlines reportou perdas diretas na ordem de 150 milhões de dólares e que teria de desacelerar seu plano de crescimento. Recentemente, a empresa havia anunciado que iria se desfazer de todos os seus Airbus da família A320 e padronizar a frota com os 737 MAX, que considera mais adequado para seus planos de rota e expansão.

Com o problema da porta, o tom ficou mais áspero e uma série de críticas publicas foram emitidas. “Manteremos os pés da Boeing no fogo para garantir que obtenhamos bons aviões”, afirmou Ben Minicucci, CEO da Alaska Airlines. 

Já a Southwest, o principal cliente do 737 nos Estados Unidos há décadas, disse que não prevê receber 737 MAX 7 este ano e reduziu o número de entregas de aeronaves para 2024, por “contínuos desafios da cadeia de suprimentos da Boeing”, mas continua confiante na qualidade do avião. “Até este incidente, estávamos felizes com o Max”, comentou Bob Jordan, CEO da Southwest. 

Talvez a fala mais dura e preocupante tenha vindo da United Airlines, que retirou dos seus planos de frota o 737 MAX 10, o maior avião da família e que deveria estar certificado e em voo há cinco anos. Segundo o CEO Scott Kirby, a United “está trabalhando no que isso significa exatamente para a Boeing”.

Em entrevista à CNBC, Kirby disse que trabalha em um plano que não incluí o MAX 10 na frota e que “a paralisação do MAX 9 é provavelmente a gota d’água”, afirmou durante a participação no programa Squawk Box.

Ameaça de greve  

A mudança da linha de produção do 787 para a planta de North Charleston, na Carolina do Sul liberou espaço em Everett para o futuro 777X e envolveu disputas com sindicatos

 

Se a crise com os principais clientes já não fosse um pesadelo, a Boeing agora terá de enfrentar uma ruptura trabalhista que está em formação há 10 anos. O processo é bastante similar ao enfrentado pela McDonnell Douglas nos anos 1990, quando passou por um período bastante turbulento, iniciado uma década antes e culminou com uma crise com trabalhadores, que ironicamente viam na Boeing a melhor saída.

Após a fusão com a problemática McDonnell Douglas, a Boeing de maneira inexplicável manteve os executivos da rival em cargos-chave e passou a adotar práticas que pouco mais de 25 anos depois a trouxeram para o momento atual. 

Há dez anos, durante as incertezas causadas pelos problemas do 787, a Boeing e a Associação Internacional de Operários e Trabalhadores Aeroespaciais, firmaram um acordo que sacrificou pensões, garantiu aumentos mínimos e amarrou as mãos de ativistas durante uma década.

Agora, o sindicato planeja 40% de reajuste, para compensar as perdas salariais da última década e a forte inflação que atingiu os Estados Unidos recentemente. “Nosso objetivo é negociar um contrato”, afirmou Jon Holden, presidente do IAM Distrito 751, que representa 32 mil mecânicos da Boeing apenas na área de Seattle. “Não encaramos a greve levianamente. Mas estamos dispostos a fazê-la”. 

A última greve ocorreu justamente em um momento em que a Boeing enfrentava diversos atrasos no programa 787, o que gerou grande pressão de clientes e acionistas. Anos depois, o problema da Boeing com a porta do 737 e as crises com mercado ser revelam novos capítulos de uma história tétrica, que se tornou pública em 2013 e já matou mais de 346 pessoas.

Pesadelo com o Dreamliner 

Produção dos aviões comerciais da Boeing sofreram com gestão focada em corte de custos e prioridade no mercado financeiro

 

Sim, os problemas já eram evidentes internamente antes de 2013, mas quando o 787 Dreamliner foi proibido de voar, em janeiro daquele ano, a mensagem que algo de muito errado estava acontecendo dentro da Boeing se tornou pública.

Pela primeira vez na história, um avião da Boeing era proibido de voar. A última vez que um avião havia sido “groundeado” nos Estados Unidos tinha sido nos anos 1970, quando o problemático DC-10 sofreu algumas restrições de voo. Assim, o Dreamliner, o avião dos sonhos, tornava-se um pesadelo e seus incêndios nas baterias de lítio evidenciavam desafios que pareciam fora do controle do fabricante que se notabilizou por quebrar barreiras. 

Quando foi anunciado no início dos anos 2000, o 787 Dreamliner prometia revolucionar o transporte aéreo, oferecendo custos operacionais menores do que o rival A330, até então um sucesso da Airbus, com uma cabine mais larga, mais confortável e fazendo amplo uso de tecnologias avançadas, como materiais compostos e fibra de carbono na fuselagem e sistemas elétricos de última geração.

O nome Dreamliner foi escolhido em uma votação popular e deveria ser a cartada da Boeing contra os avanços da Airbus. Se o consórcio europeu apostava alto nos aviões de grande capacidade, como o A380, a Boeing afirmava que o mundo preferia voos ponto a ponto, com um avião avançado e confortável. 

Parece um paradoxo afirmar, mas o 787 foi o último grande acerto da Boeing, mesmo tenho sido o primeiro grande erro. O acerto foi em desenvolver um avião para um mercado em crescimento, que poderia substituir com grandes vantagens os já veteranos 767, 777-200, A300, A330 e A340-200 e A340-300.

O uso de tecnologias revolucionárias na aviação comercial não era um problema para a Boeing, que havia décadas rompia com o comum. Foi assim com o 707, que ainda deu origem a dois outros best sellers, o 727 e 737; o 747 chocou o mundo por sua grandiosidade e nem mesmo seus desafios tecnológicos foram capazes de impedir a Boeing de alçar sucesso com seus Jumbo. Isso sem falar no sucesso de vendas do 767 e 757. Quando o 777 foi anunciado, os desafios de um bimotor de grande capacidade não assustaram a Boeing e sua versão alongada e de longo alcance, o 777-300ER, tornou-se o avião padrão das empresas aéreas em rotas de grande capacidade e longo alcance. 

Porém, em 2013, tudo começava a mudar. Os problemas do 787 mostravam que o caso estava muito além da engenharia. Uma falha em uma tecnologia recém-concebida, com o uso de um sistema elétrico faminto por energia, era aceitável... não deveria ter ocorrido, mas era admissível tendo em vista sua estrutura baseada nas instáveis baterias de lítio.

Na ocasião, até mesmo o comandante Chesley "Sully" Sullenberger, famoso por seu pouso no rio Hudson, em Nova York, comentou sobre os riscos das baterias de lítio, mesmo quando transportadas como carga. “[Os regulamentos] precisam ser analisados com muita atenção à luz fria do dia, especialmente com o que aconteceu com as baterias do 787”, afirmou na época ao US Today. As regras sobre transporte de baterias e o seu uso no 787 foram alteradas pela FAA, a agência de aviação civil dos Estados Unidos, para se adequar aos padrões exigidos pelo Congresso.  

Após a proibição de voo com o 787, que durou praticamente cinco meses, muitos acreditavam que o caso havia sido um problema pontual que envolvia uma série de fatores alheios ao completo controle da Boeing.

Poucos na indústria podiam prever que as coisas estavam piorando rapidamente na outrora referência em aviação comercial, como sugere o slogan “If It's Not Boeing, I'm Not Going”, que refletiu por décadas o poderio da Boeing!

Ofensiva da Airbus

Sucesso da família A320neo colocou mais pressão sobre a Boeing, especialmente o A321XLR que segue sem concorrente

 

Ao longo de vários meses, o 787 seguiu nos noticiários, com algumas falhas relativamente simples, mas mostrando que algo mais sério continuava ocorrendo dentro da toda poderosa Boeing.

Quando a Airbus anunciou seus planos de tornar o A321 um avião para além de rotas médias e densas, ampliando sua capacidade para voos de longa duração e atendendo ao mercado do 757, era esperada uma reação da Boeing. Afinal, o 757 vendeu mais de 1.000 unidades e estavam se aproximando do final da vida útil.  

Ainda que nos últimos anos de produção a demanda não fosse das maiores, o crescimento do mercado mostrava que a Airbus estava correta na sua análise. Uma ironia, pois a campanha de vendas estava justamente se baseando no argumento de mais rotas ponto a ponto, permitindo inclusive a criação de voos inexistentes ou inviáveis com aviões de corredor duplo. Exatamente o oposto do que a própria Airbus dizia nos anos 2000. Se o A380 não foi o esperado, o A321neo e sua versão de alcance estendido, o A321XLR, mostrava um enorme sucesso.  

O problema é que a Boeing não tinha como responder à capacidade do rival com nenhuma versão do 737 MAX, então o mercado passou a esperar a confirmação do chamado Boeing New Midsize Airplane (ou NMA), que seria um novo avião de corredor único capaz de rivalizar com A321XLR e ainda ser o potencial substituto do 737.

Seria uma aposta ousada, afinal, envolveria convencer grandes operadores do 737NG e 737 MAX de mudar de família. Isso abriria margens para a Airbus tentar contratos gigantescos com Southwest, Ryanair, Gol, entre outras operadoras exclusivas do 737. Por outro lado, se o NMA fosse realmente superior à família A320, garantiria novos mercados para a Boeing.

De maneira surpreendente, os executivos da Boeing passaram a dar pistas de que o NMA na verdade seria o substituto do 767! O argumento era o ainda amplo mercado existente e a inexistência de um avião similar. Mas o 787-8 seria justamente esse substituto, ao menos quando foi lançado era o argumento de vendas utilizado.

Dois acidentes com o MAX

Ao oferecer um projeto para substituir o 767, alguns analistas acreditaram que a Boeing estava na realidade apenas usando um artificio para não chamar atenção pública para o NMA. Seja como for, o projeto nem sequer teve tempo de ser formalizado ou anunciado, pois, na época, a Boeing se viu em meio aos dois acidentes com o 737 MAX 8, que ocorreram em um intervalo de apenas cinco meses.  

Com o 737 MAX proibido de voar em praticamente todos os países do mundo, a Boeing enfrentou seu maior desafio de gestão de crise e de engenharia. Os problemas com o Maneuvering Characteristics Augmentation System (MCAS) eram anunciados como uma falha pontual e que seriam solucionados no curto prazo.

Possivelmente, nenhum dos executivos da Boeing, que foram duramente criticados pela opinião pública norte-americana, poderiam prever que o tal curto prazo teria duração de exatamente um ano, oito meses e cinco dias. Foram 619 dias com seu principal avião proibido de voar.

A crise com as empresas aéreas obrigou a Boeing a fechar diversos acordos compensatórios, enquanto lutava para resolver uma série de problemas internos que se mostraram bastante graves.

Pandemia e 787

Após ficar proibido de voar em 2013, o 787 ainda enfrentou diversos problemas que atrasaram sua entrega

 

Se ter o 737 proibido de voar não fosse um pesadelo bastante assustador, o mundo assistiu à pandemia de covid-19 paralisar a economia, afastar as relações sociais e gerar milhares de mortes. O transporte aéreo foi duramente afetado, em especial em 2020, o que tornou o caixa das empresas aéreas ainda mais restritos a quaisquer perdas.

Poucas semanas após o início da pandemia, em abril de 2020, a Boeing desistiu da compra da área de aviação comercial da Embraer, com foco especial nas equipes de engenharia, cujas negociações tinham começado em 2018.

Por outro lado, a menor pressão pela retomada dos voos com o 737 MAX deu um certo alívio para a Boeing, ao menos nos primeiros meses, até um problema no para-brisa do 787 evidenciar mais um problema grave.  

Com a pandemia, a Boeing havia aproveitado para transferir integralmente a produção do 787 de Everett, nos arredores de Seattle, para as instalações de North Charleston, no estado da Carolina do Sul, que havia sido construída como uma segunda linha de montagem para o Dreamliner. A boa capacidade da planta da Carolina do Sul atenderia à demanda projetada para o 787, ao mesmo tempo que abria espaço em Everett para o início da produção do 777-9.

A mudança gerou uma série de problemas na qualidade final dos aviões, que passaram a apresentar falhas de montagem e acabamento. Além disso, alguns fornecedores, como o do para-brisa, mudaram seus processos de produção, para além da certificação.  

O problema se tornou público quando um 787 da American Airlines, que voava até Lima, no Peru, apresentou trincas no para-brisa. Uma análise constatou que o fornecedor havia mudado o processo de manufatura do vidro para um modelo não previsto na certificação.

Outros problemas foram constatados na linha de produção, mais de oitenta 787 tiveram de ser inspecionados, por diversas razões, enquanto os aviões que estavam sendo montados eram estacionados no pátio e impedidos de voar.

O 787 enfrentava sua segunda proibição, mas neste caso de entregas, não de voo dos aviões já em serviço. Ainda assim, um cenário que fabricante algum deseja enfrentar.  

As entregas foram paralisadas em outubro de 2020, com perspectivas de retomada no início de 2021. As entregas voltaram em abril, já no segundo trimestre de 2021, mas foram paralisadas no mês seguinte.

O processo de montagem de alguns componentes havia extrapolado o torque superior ao especificado, o que comprometia a vida útil e poderia em último caso gerar uma falha estrutural. Uma falha no controle de dualidade no revestimento interno comprometia a durabilidade dos painéis, além de oferecer um aspecto áspero.

Por fim, um defeito estrutural gerou algumas lacunas na união de alguns componentes o que causava pressão em anteparos. Novamente uma revisão dos aviões já montados e alguns entregues.

Triplo sete também

A Boeing havia planejado entregar os primeiros 777-9 em 2020, mas segue sem um prazo definido

 

Enquanto o 737 MAX e o 787 enfrentavam seus tormentos, o 777-9 encarava desafios antes mesmo de nascer. O novo triplo sete havia sido lançado com a promessa de substituir nada menos que o 747 e o 777-300ER, dois aviões que se tornaram líderes em seus segmentos.

Se o Jumbo estava próximo da aposentadoria, o 777-300ER havia se tornado o modelo padrão dos voos intercontinentais de alta capacidade, conseguindo a façanha de substituir os 747-400 em quase todas as rotas e ainda ser o responsável pelo baixo interesse do mercado no 747-8. Na verdade, apenas a Lufthansa fez um pedido expressivo, para dezenove 747-8 na versão de transporte de passageiros. O restante do mundo seguia usufruindo das excelentes características do 777-300ER.  

A proposta da Boeing parecia simples, já que o 777-9 era uma versão remotorizada, alongada e com maior capacidade que seu antecessor. Com isso, o novo avião poderia ainda substituir sem dificuldades os A380 na maioria das rotas. A Boeing, porém, foi além de uma versão remotorizada e com fuselagem alongada.

As janelas dos passageiros foram substituídas por um modelo similar ao do 787, o diferencial de cabine foi alterado, para valores incomuns para uma aeronave de fuselagem metálica e os motores da GE Aviation não estavam conseguindo cumprir todos os requisitos no prazo. Para piorar, uma falha estrutural durante os ensaios estáticos levou a engenharia da Boeing a revisar diversos pontos do projeto. 

Na época, a Boeing estava envolvida na recertificação do 737 MAX e o problema da explosão foi mal-recebido pelo mercado. A Emirates Airline, a principal cliente do 777-9 passou a cobrar explicações e exigir que a Boeing cumprisse o cronograma de certificação. A previsão era que o 777-9 entrasse em serviço no final de 2020, mas ainda hoje não existe um prazo para a certificação. Recentemente, o CEO da Emirates, Tim Clark, afirmou que possivelmente só deva colocar o 777-9 em serviço em meados de 2026, ou seja, seis anos após o cronograma inicial.

Evidentemente que a pandemia atrasou a campanha de testes em voo, assim como a quebra na cadeia de produção global atrasou todos os projetos em andamento, qualquer que fosse o segmento.

Reabastecedor militar

Programa do KC-46 enfrentou alta nos custos e falhas consideradas graves pela Força Aérea dos EUA

 

A aviação militar dos Estados Unidos sempre foi um porto seguro para todos os fabricantes do setor aeroespacial. Na verdade, qualquer transação que envolvesse o Pentágono sempre representou uma fonte quase certa de lucros.

Algumas mudanças na lei, em especial após a gestão Donald Trump, obrigou fabricantes e fornecedores militares a arcarem com eventuais custos adicionais no projeto. Ainda que não seja uma cláusula absoluta, com o governo ainda custeando eventuais altas nas despesas, geralmente, se o valor disparar, o contribuinte não arca com o ônus.  

O KC-46, o novo reabastecedor da Força Aérea dos Estados Unidos (USAF), foi criado sobre a plataforma básica do 767-200ER, para substituir o lendário KC-135. A Boeing estava trabalhando sobre um avião de sucesso, com um projeto relativamente simples e bastante confiável, para substituir o avião que ajudou o nome Boeing se tornar referência em aviões comerciais. O que poderia dar errado? 

Na verdade, quase tudo. O programa que deu origem ao KC-46 Pegasus foi bastante controverso desde o início. Em 2001, a USAF planejava substituir seus KC-135E pelos KC-767, que seriam alugados da Boeing, como uma alternativa de reduzir os custos de aquisição. Na época, diversos senadores, incluindo o republicano John McCain, criticaram a proposta de arrendamento de 100 unidades do KC-767, alegando que o projeto era um desperdício de dinheiro e bastante problemático.  

A USAF tentou rever o projeto, afirmando que compraria oitenta aviões e alugaria outros vinte. O que não convenceu os congressistas e ainda deu início a uma investigação sobre uma alegada corrupção no processo, o que levou à prisão de um dos seus antigos executivos de compras do Pentágono que se candidatou para trabalhar para a Boeing.

O Pentágono abriu uma concorrência para compra de um novo reabastecedor e, originalmente, a USAF havia escolhido a proposta da Northrop Grumman/EADS, que previa um avião de reabastecimento derivado do A330-200, em detrimento do KC-767.  

A Boeing protestou no Congresso e o programa KC-X foi paralisado e posteriormente revisto, com a vitória agora da Boeing com o KC-46. Basicamente, a Boeing revisou sua oferta, saindo do 767 Tanker, uma versão de transporte e reabastecimendo derivado do 767, mas sem grandes mudanças, para o KC-46, que agregava uma série de características da proposta da Airbus e que haviam sido um requisito da USAF.

Em resumo, ao invés de uma abordagem simplificada como no KC-767, o novo avião era muito mais complexo e sofisticado. O resultado foram problemas de projeto, passando por falhas no processo de qualidade até limitações severas de capacidade. A USAF chegou a classificar os problemas como “Categoria 1”, considerada a mais grave e que, potencialmente, pode ocasionar um acidente.

Além dos atrasos nas entregas dos aviões e nos recall necessários, a Boeing passou a acumular consideráveis prejuízos com o programa KC-46.

Caças pouco competitivos

A Boeing planeja encerrar a produção do F/A-18 Super Hornet até o final da década

 

No segmento de caças a Boeing se encontra em uma difícil situação. Seus dois principais produtos, o F-15 e o F/A-18, embora famosos por suas capacidades, estão em fase final de uso pelos militares dos Estados Unidos.

Para piorar, o F/A-18 perdeu todas as concorrências recentes para o F-35, da Lockheed Martin, e o F-15EX, a versão mais recente do Strike Eagle, ainda não convenceu o Pentágono de sua viabilidade. A proposta inicial é para até 144 unidades do novo caça. O F-15EX é uma versão criada para a USAF, derivado do F-15QA, destinado ao Qatar, que oferece uma série de novos recursos e sistemas.  

A proposta de compra dos novos F-15 visa atender a uma necessidade da USAF que assiste a aposentadoria dos seus F-15C/D e F-15E. Originalmente, o F-22 deveria ser o substituto de todos os F-15, mas seu elevado custo e na época uma revisão orçamentária levou ao final do projeto com apenas 187 unidades operacionais entregues, distante dos quase dois mil F-15 entregues no mundo.

McDonnell Douglas e espaço

Nave Starliner segue sem previsão de quando fará o transporte de astronautas até a Estação Espacial Internacional

 

Por vários anos, o C-17 foi uma das principais aeronaves militares da Boeing, mas sua produção foi encerrada em 2015 e o Pentágono não tem nenhum plano no curto ou médio prazos para substituir seus cargueiros de grande capacidade, seja o C-17 ou C-5.

Outra ironia, os três principais aviões militares da Boeing eram na realidade projetos herdados da problemática McDonnell Douglas. O processo de fusão entre os dois fabricantes previa que a Boeing receberia os maiores ativos da antiga rival, sobretudo os projetos militares, o que realmente ocorreu. O que ninguém esperava era que a cultura administrativa também fosse ser internalizada pela Boeing. A McDonnell Douglas, a partir dos anos 1980, ficou famosa por sua sequência de erros estratégicos, de projeto, produção e gerenciamento do negócio.  

Desde meados dos anos 2000, a Boeing cometeu graves erros, que ela jamais havia cometido no passado, como aposta em mercados inexistentes, demora na resposta aos concorrentes, falhas no gerenciamento de projetos e até mesmo erros elementares como esquecer ferramentas dentro dos aviões entregues até problemas nos parafusos das portas.

Tanto que, mesmo o segmento espacial, no qual a Boeing jamais enfrentou grandes problemas, tornou-se problemático. A nave Starliner, uma das vencedoras do programa da NASA para levar astronautas até a Estação Espacial Internacional, continua longe de realizar seu primeiro voo bem-sucedido. Enquanto a SpaceX fez dos lançamentos da Crew Dragon uma rotina no Keneddy Space Center desde 2019, a Boeing nem sequer conseguiu resolver os problemas da sua nave espacial.

A previsão agora, após um sem-fim de cancelamentos, é que a primeira missão espacial de testes ocorra em 14 de abril, com o início das missões a partir de 2025. O senão é que a NASA, a principal financiadora da Estação Espacial, e a russa Roscosmos planejam desativar o laboratório espacial em janeiro de 2031. 

Enquanto a Boeing tenta solucionar problemas da Starliner, a SpaceX parece ter solucionado a maioria dos problemas do gigantesco foguete Super Heavy, que promete uma carga paga, na órbita baixa, de até 150 toneladas. Um recorde absoluto e que pode mudar completamente a exploração espacial. Além disso, a nave Starship, que será acoplada ao Super Heavy para missões lunares, está em estágio avançado de desenvolvimento. 

Já a rival Airbus, além de um backlog sólido com mais de oito mil aviões, faz um progresso constante no desenvolvimento do A321XLR e do A350F, este último que promete desafiar o domínio da Boeing no mercado cargueiro. Seus maiores desafios atuais são alheios a suas funções, como os ainda instáveis motores PW1000G e agora alguns contratempos adicionais com os Leap 1A.

Acionistas acima de tudo

 

Uma das críticas ao modelo adotado pela Boeing nas duas últimas décadas foi a forma como passou a lidar com a relação entre negócio e acionistas. Evidentemente, qualquer empresa lista em bolsa tem obrigação de gerar dividendos para seus investidores, é a regra básica do jogo. Todavia, um dos maiores erros é priorizar o pagamento de dividendos e a alta nas ações sem uma preocupação com o negócio básico, que no caso da Boeing é o segmento aeroespacial.

Por longos anos a estratégia foi gerar valor de mercado, deixando o negócio em segundo plano. Alguns especialistas avaliam que a mudança da sede de Seattle para Chicago foi um dos principais erros estratégicos. Aproximou a Boeing do mercado, mas afastou de suas fábricas e engenheiros.

Ainda que a sede administrativa não necessariamente tenha que estar fisicamente próxima das plantas industriais, é fundamental que os executivos se mantenham conectados ao negócio.

Após os problemas com o 737 MAX diversas críticas foram feitas justamente a esse respeito, a distância dos executivos do negócio básico da Boeing. De maneira surpreendente a diretoria anunciou a mudança da sede, em meios aos problemas, mas não de volta para Seattle, mas para Arlington County, nos arredores de Washington D.C, literalmente do outro lado dos Estados Unidos. A Boeing se aproximou fisicamente dos legisladores e reguladores, se afastando geograficamente ainda mais das suas principais plantas industriais.

A mudança de endereço mostrou um modelo de gestão que seguia em uma direção diferente da esperada pelo setor e recentemente surgiram críticas que a gestão do atual CEO Dave Calhoun, que assumiu a Boeing em 2020, priorizou solucionar a crise promovendo cortes profundos em gastos e gestão focada na maximização absoluta de custos. O resultado foi um impacto direto na qualidade da produção. Após a explosão da porta do 737 MAX em janeiro, o diretor financeiro, Brian West, admitiu que a Boeing priorizou a movimentação de aviões pela fábrica em vez de fazê-lo da maneira certa.

Perspectivas

A Boeing segue tentando certificar seus 737 MAX 7 e 737 MAX 10, que têm despertado a fúria de alguns operadores, com declarações nada animadoras de clientes. A United Airlines afirmou que já planeja sua frota sem o 737 MAX 10 e analistas de mercado apontam a movimentação da Airbus para conquistar esses pedidos.

Atualmente, a United conta com 277 perdidos para o 737-10, além de direitos de compra para outros 200. Uma eventual perda de contrato seria um forte revés à Boeing e à imagem do 737 MAX.

A Southwest, operadora exclusiva da família 737 desde a sua fundação, também afirmou que não conta com o 737 MAX 7 na frota, e que avalia alternativas para lidar com os atrasos. Os dois modelos deveriam ter entrado em serviço em 2020, mas até hoje não existe uma previsão realista para o início dos voos comerciais.

Por outro lado, executivos da Ryanair manifestaram interesse em assumir os pedidos do 737 MAX 10 caso empresas dos Estados Unidos desistam de suas posições na fila. 

A Boeing ainda hoje conta com um importante base de clientes e mais de 5.600 aviões comerciais, e uma eventual perda de mercado, em níveis severos, poderá comprometer toda a indústria aeroespacial mundial.

Sua cadeia de fornecedores é ligada a outras centenas de fornecedores, que trabalham para os principais fabricantes do mundo. Uma abrupta queda nos pedidos poderia impactar a capacidade de produção em nível global, gerando uma crise sem precedentes na indústria, com reflexos inclusive no Brasil. 

No dia 25 de março, Calhoun anunciou que deixará o cargo de CEO no final do ano. A renúncia ocorre em meio a uma nova onda de problemas, incertezas e críticas na forma que a Boeing vem gerenciando sua infinita crise.

O mesmo comunicado informou que o presidente do conselho, Larry Kellner, não pretende se candidatar à reeleição na próxima Assembleia Anual de Acionistas e que Stan Deal, presidente e CEO da Boeing Commercial Airplanes, se aposentaria e que Stephanie Pope foi nomeada para o seu lugar.

“Os olhos do mundo estão voltados para nós e sei que passaremos por este momento como uma empresa melhor. Continuaremos totalmente focados em concluir o trabalho que fizemos juntos para devolver a estabilidade à nossa empresa após os extraordinários desafios dos últimos cinco anos, com segurança e qualidade na vanguarda de tudo o que fazemos", afirmou Calhoun.

Resta saber como o aprendizado de uma década quase perdida será absorvido pela gigante, se como a Apple e a Embraer que renasceram líderes em seus segmentos ou como a McDonnell Douglas, que desapareceu deixando um legado sombrio na Boeing.

Publicado originalmente na AERO Magazine 357 · Fevereiro/2024
Atualizado com informações adicionais em 16 de abril de 2024

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