O modelo de propriedade compartilhada mudou para sempre o mercado de transporte aéreo privado e derivados como cartão de horas ajudaram a fomentar ainda mais o setor
Por David Clark* Publicado em 19/01/2024, às 14h00
Há um antigo provérbio nórdico que diz: “Alegria compartilhada é alegria em dobro”. Todas as culturas ao redor do mundo ensinam, universalmente, desde a infância, o conceito de compartilhar coisas.
O uso partilhado de amenidades não é nenhuma novidade. Nos tempos modernos, o exemplo mais comum e difundido é o do conceito de timeshare – popularizado nos anos 1980 e 1990 em condomínios no México, frequentados por norte-americanos e canadenses, que desejavam fugir do frio do inverno. Eles compravam uma “fração” do imóvel, usavam a habitação durante duas semanas por ano e “compartilhavam-na” com estranhos, que faziam o mesmo – claro, compartilhando os custos fixos de mantê-lo. Uma alegria compartilhada, de fato!
Em algum lugar ao longo desse caminho, algumas mentes jovens e empreendedoras pensaram: o mesmo conceito poderia ser aplicado à aviação? Afinal, tais máquinas, caríssimas, muitas vezes, podem ser necessárias apenas algumas vezes ao ano – e por que não “compartilhar a alegria” com quatro, oito ou mais pessoas, sem nome nem rosto? Assim, nasceu a propriedade fracionada de aeronaves.
Por questões culturais, o salto para que as pessoas aceitassem um modelo de propriedade condominial do tipo timeshare se mostrou relativamente fácil. Até porque, o hábito de dormir em uma cama que outra pessoa ocupara apenas dezesseis horas antes não era novo. Turistas compartilham quartos de hotel, ainda que em horários e datas diferentes, com estranhos há milênios.
Mas, com aviões particulares, as coisas eram diferentes. Por definição, eles eram privados. Muito do que se pagava como proprietário de uma aeronave particular era para que esse espaço fosse um ambiente absolutamente controlado, onde apenas o dono e seus convidados (escolhidos a dedo) pudessem viajar. No entanto, isso começou a ser questionado por um subgrupo de viajantes mais interessados em chegar ao ponto B do que nas particularidades da experiência.
À medida que a aviação privada começou a amadurecer e a ganhar força nas décadas de 1960 e 1970, o conceito de empresa de gerenciamento e fretamento de aeronaves começou a tomar forma.
Esses grupos com gestores, pilotos e mecânicos experientes começaram a operar pequenas frotas de aeronaves para proprietários ocupados, o que, em si, já caracterizava uma “propriedade compartilhada de um departamento de voo” – distribuindo os custos fixos e recursos entre vários proprietários em vez de cada um ficar sobrecarregado com tudo, individualmente.
Uma dessas primeiras empresas foi a Executive Jet Airways, fundada em 1964, quando alguns generais aposentados da Força Aérea dos Estados Unidos (USAF, na sigla em inglês) se associaram para facilitar a administração da propriedade de suas aeronaves. Operando originalmente dez Learjet 23, a frota da empresa estava disponível, também, para fretamentos “por hora” – um conceito igualmente novo, na época.
Vinte anos depois, a renomeada Executive Jet Aviation (EJA) acabou comprada por Richard Santulli, um jovem PhD em Matemática, que havia sido executivo do grupo Goldman Sachs. Ele cogitava prover propriedade fracionada de aeronaves executando modelos matemáticos complexos, baseados na propriedade compartilhada de ativos fixos.
Respeitada e experimentada operadora de aeronaves, a Executive Jet Aviation seria a plataforma perfeita para testar o conceito de Santulli. Ele acreditava que haveria um novo mercado para um estilo diferente de propriedade de aeronaves. Assim, em vez de comprar uma aeronave integralmente, os proprietários poderiam adquirir uma participação percentual de um avião, com outros interessados também ficando com cotas da mesma máquina. Isso daria aos donos o benefício de possuir uma aeronave, sem ter o grande dispêndio de capital inicial normalmente necessário para adquiri-la. Os custos operacionais fixos também poderiam ser “compartilhados”.
A nova empresa foi lançada em 1986, com uma frota de oito jatos Cessna Citation II. Vendo um aumento na popularidade da internet, Santulli chamou a companhia emergente de Netjets.
Como acontece com qualquer novo conceito, não foi um sucesso da noite para o dia. Levaria mais de dez anos antes de a Netjets ser adquirida pela Berkshire Hathaway (por 725 milhões de dólares, metade em dinheiro, metade em ações da Berkshire). Fechada a compra, a empresa logo se expandiu para a Europa e, depois, para a Rússia. Em 2006, já era a maior operadora de jatos de negócios da Europa.
Mas a Netjets não foi a única empresa de propriedade compartilhada de aeronaves a explorar esse segmento. Logo, outras empresas começaram a surgir, apoiadas pelos fabricantes – uma reviravolta da lógica de marketing, que permitiu a um público totalmente novo “experimentar antes de comprar”, adquirindo pequenas cotas, na esperança de que esses proprietários se tornassem proprietários de aeronaves inteiras.
Empresas como CitationShares, FlexJet, Flight Options e Raytheon TravelAir surgiram para competir com a Netjets. Porém, em meados da década de 2000, a Netjets havia se tornado o maior player desse mercado. Estava encomendando, regularmente, grandes quantidades de aeronaves em lotes de 50, 75 e até 100 unidades.
Após a crise financeira de 2008 nos Estados Unidos, o modelo de negócios assegurou que a indústria de aeronaves de negócios não entrasse em colapso. O conceito de propriedade compartilhada mostrava ao mercado que tinha vindo para ficar.
Paralelamente aos pilares sobre as quais a Netjets fora construída, outro produto começou a surgir. Parte do custo de se operar uma empresa de aeronaves compartilhadas vinha (e ainda vem) das chamadas empty legs (ou pernas vazias), que são viagens sem ninguém a bordo), realizadas para que a aeronave possa ser reposicionada entre uma missão e outra. Naquela época, até 40% dos voos de uma empresa de propriedade fracionada aconteciam com “pernas vazias”.
Em 2001, um jovem empresário chamado Kenny Dichter lançou o Marquis Jet Card, que vendia blocos de 25 horas para ajudar a preencher essas “pernas vazias”. Ele ganhou um impulso em 2003, durante o segundo episódio do programa The Apprentice (predecessor de “O Aprendiz” no Brasil), apresentado por Donald Trump, e se tornou muito popular.
Não por acaso, em 2011, a Netjets comprou a Marquis Jet, seu maior cliente, e começou a comercializar os cartões por conta própria. Naquela época, o conceito de se beneficiar da experiência em torno de um bem sem deter sua propriedade se tornou parte da cultura popular, com a ascensão da Netflix, do AirBnb e do Uber, alimentando ainda mais a ascensão dos “jet cards”, do fretamento “por assento” e dos sites de fretamento unilateral, que permitiam aos viajantes comprar “pernas vazias” por uma fração do custo real do fretamento tradicional de ida e volta.
Kenny Dichter voltou a cena em julho de 2021, quando tocou a campainha na Bolsa de Valores de Nova York, tornando a Wheels Up (sua última startup) a primeira empresa de aviação privada a ser listada na bolsa e levantando mais de 650 milhões de dólares para a expansão da empresa.
E quanto à Netjets? Logo após a retomada da econômia, dos efeitos da crise sanitária, eles tiveram de parar de vender cotas e horas de voo de aeronaves pequenas (modelos Phenom 300 e Citation XLS), porque estavam, literalmente, sem horas para vender.
“Em 57 anos, a empresa nunca viu tanta demanda. Mas não iremos prejudicar a experiência do cliente vendendo em excesso”, disse na ocasião Pat Gallagher, presidente de Vendas e Marketing da Netjets.
No Brasil o conceito de propriedade compartilhada e cartão de horas foi adotado por diversas empresas, como a Amaro Aviation, Líder Aviação, Avantoo, entre outras. E após o projeto Voo Simples, criado pela ANAC para simplificar a operação de empresas de fretamento, o modelo de pernas vazias e cartão de horas ganhou maior destaque.
“Para quem tem uma utilização entre 100 e 400 horas, nós recomendamos a propriedade compartilhada. Menos de 100 horas o cartão de horas é uma opção, pois a pessoa não tem nenhum tipo de procupação”, comentou Marcos Amaro, CEO da Amaro Aviation. “Hoje os cartões de hora são o carro chefe da nossa empresa. O cartão de horas é uma comodidade para o cliente que deseja uma simplicidade e simplificação [da operação], que acaba comprando determinadas horas com um prazo de utilização dependendo da sua necessidade”.
Temos uma tempestade perfeita de aceitação de propriedade compartilhada, um grande aumento na demanda por viagens privadas pós-pandemia e uma nova geração com foco na experiência, não na propriedade.
Esse combustível manterá a aviação privada funcionando por muito tempo. Bem-vindo à “uberização” da aviação!
* David Clark é diretor executivo da consultoria Integris Aviation
Texto publicado originalmente na edição 327 de AERO Magazine,
foi atualizado na versão online.