Para que serve o relatório de investigação de acidentes aeronáuticos?

Documento é utilizado para prevenir novos casos e não pode ser usado como prova para responsabilizar os envolvidos

Redação Publicado em 17/11/2020, às 14h00 - Atualizado às 14h50

Por Jorge Fausto de Souza Neto* - Especial para AERO Magazine

No dia 29 de outubro, dois relatórios de investigação de acidentes aéreos do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa) protagonizados por personalidades brasileiras foram divulgados. Os trágicos acidentes que vitimaram o jornalista Ricardo Boechat e o cantor Gabriel Diniz entristeceram o Brasil, e, por isso, as divulgações das conclusões acerca das causas dos acidentes foram um dos assuntos mais comentados nas redes sociais.

As manifestações, na sua maioria, culpavam os pilotos, qualificando-os como criminosos pelas mortes das personalidades, o que demonstra o desconhecimento de muitos em relação à finalidade do relatório de investigação.

Por isso, o presente artigo pretende demonstrar qual a finalidade do relatório de investigação de acidente aeronáutico e se este pode ser utilizado como prova em ação judicial para atribuir responsabilidade criminal, civil ou administrativa em desfavor dos envolvidos. 

O senso comum acredita que o relatório de investigação tem o objetivo de identificar os culpados pelo acidente com o intuito de responsabilizá-los. Todavia, não é esta a finalidade do documento.

A Convenção sobre Aviação Civil Internacional de 1944, conhecida como Convenção de Chicago, norma basilar da aviação civil mundial, da qual o Brasil é signatário, em seu Anexo 13 dispõe que o único objetivo da investigação de um acidente ou incidente será a prevenção, não sendo o propósito da atividade atribuir culpa ou responsabilidade.

De acordo com o Código Brasileiro de Aeronáutica (CBAer), por meio da Lei nº 7.565/86, a investigação tem como único objetivo a prevenção de outros acidentes ou incidentes aeronáuticos, alcançada por meio da identificação dos fatores que tenham contribuído para a ocorrência, de forma direta ou indireta, bem como por meio das recomendações de segurança operacional.

Na mesma trilha, a Norma do Sistema do Comando da Aeronáutica (NSCA) 3-6, documento que estabelece protocolos, responsabilidades e atribuições referentes às investigações de acidentes ou incidentes aeronáuticos, conceitua o relatório final como sendo um documento formal destinado a divulgar a conclusão oficial do Sistema de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Sipaer), fundamentado nos elementos de investigação, na análise, na própria conclusão e nas recomendações de segurança de voo relativas ao sinistro, visando, exclusivamente, à prevenção de novas ocorrências. A NSCA 3-6 ressalta que não é propósito da investigação de acidente ou incidente aeronáutico a atribuição de culpa ou responsabilidade aos envolvidos na ocorrência.

Com efeito, um acidente ou incidente aéreo nunca é causado por apenas uma ação isolada, mas, sim, por uma cadeia de fatores, diretos ou indiretos, humanos (aspectos fisiológico, psicológico e operacional) ou mecânicos (aspectos de projeto, fabricação e de manuseio do material) que, somados, contribuem para a ocorrência do sinistro.

Desta feita, a emissão do relatório final de investigação representa o pronunciamento da autoridade sobre os possíveis fatores que contribuíram para a ocorrência de determinado acidente aeronáutico, identificados, inclusive, de forma isolada, sem quantificação quanto ao grau de contribuição.

Nele, a autoridade emite as respectivas recomendações obtidas após a análise das causas do evento, unicamente em proveito da segurança operacional da atividade aérea, destinadas aos operadores (proprietários de aeronaves, companhias aéreas), tripulação, fabricantes e, com maior frequência, à Agência Nacional da Aviação Civil (Anac).

Outrossim, o Código Brasileiro de Aeronáutica preceitua que, se no curso da investigação forem encontrados indícios de crime, relacionados ou não à cadeia de eventos do acidente, a autoridade policial competente deverá ser comunicada.

Caso sejam constatados, durante as investigações, indícios que denotem a existência de crime, contravenção, transporte intencional de substância ou material perigoso ou proibido, omissão ou ação intencional que contrarie os regulamentos aeronáuticos vigentes, o NSCA 3-6 dispõe que as autoridades deverão ser comunicadas e que, se verificada relação entre o ilícito e a ocorrência, a investigação poderá ser encerrada a qualquer momento. Tal decisão deverá levar em conta os benefícios para a prevenção de novas ocorrências aeronáuticas.

Com efeito, a jurisprudência se posiciona no sentido de reconhecer que o relatório de investigação de acidentes não deve ser utilizado para apurar a responsabilidade do acidente aéreo:

O relatório do Cenipa não deve ser empregado para determinar excludente de responsabilidade. Relatório destinado a apurar os fatores contributivos para o sinistro, com vistas à melhoria das condições de segurança das operações aéreas, e que deve se manter afastado do juízo de culpabilidade a fim de estimular que os atuantes na indústria aérea colaborem com as investigações. Responsabilidade que deriva do defeito na prestação do serviço de transporte. (TJSP. Proc. nº 1027041-72.2014.8.26.0053. Publicado em 3 de fevereiro de 2020).

Embora o Poder Judiciário reconheça a finalidade do relatório de investigação, há o entendimento de que as informações nele contidas podem ser somadas às demais provas produzidas no processo para apuração da responsabilidade civil dos proprietários da aeronave envolvida:

Apelação - danos morais - acidente com avião - morte dos ocupantes - relatório do Cenipa (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos) - que se soma aos demais elementos do processo - validade - responsabilidade civil dos proprietários da aeronave demonstrada - teoria da responsabilidade pelo fato da coisa - danos morais verificados - valor razoável - apelação desprovida - sentença mantida (...)

Embora as informações do relatório do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos não tenham o condão de apurar responsabilidade civil, revelam-se aptas a somar aos demais elementos do processo, máxime por se tratar de prova lícita, submetida ao contraditório, cuja requisição de juntada ao processo, aliás, sequer foi questionada no momento oportuno. (...). (TJMT. Proc. nº 0001662-05.2007.8.11.0088. Publicado em 13 de julho de 2015).

Portanto, o relatório de investigação de acidente aeronáutico é documento oficial elaborado com a finalidade de identificar os fatores que contribuíram para o ocorrido e de emitir recomendações visando ao aperfeiçoamento da segurança da aviação. Logo, não tem o objetivo de apurar culpa ou responsabilidade dos envolvidos, embora possa ser utilizado como elemento para corroborar provas produzidas em ação judicial, cujo valor das informações será dado conforme o livre convencimento do juiz para embasar as suas decisões.

*Jorge Fausto de Souza Neto é advogado do departamento de Direito Administrativo e especialista em Direito Aeroportuário de Martorelli Advogados

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