Os desafios da aviação comercial no Brasil

Transporte aéreo se popularizou nas últimas décadas, mas cenário econômico, infraestrutura e resquícios da crise sanitária são desafios para a aviação no Brasil

Por Wesley Lichmann Publicado em 01/03/2023, às 09h30

Azul, Gol e Latam possuem juntas 99% do mercado e companhias buscam reestruturar dívidas - Divulgação

O transporte aéreo brasileiro conquistou novos clientes nas duas últimas décadas, recebeu empresas mais eficientes e assistiu a melhora na gestão. Em vinte anos a aviação comercial tornou-se o principal modal de transporte em ligações de média e longa distância dentro do país, substituindo o ônibus que reinava absoluto por várias décadas.

Segundo dados da ANAC, apenas em 2022, foram transportados 98 milhões de passageiros em voos domésticos e internacionais, maior marca desde o início da crise sanitária, há três anos. Ainda assim, inferior a série histórica que em alguns momentos esteve acima dos 100 milhões.

Em 2022, a demanda por voos nacionais registrou crescimento de 28,3% em relação a 2021, enquanto a capacidade aumentou 30% frente um ano antes, resultando em uma taxa de ocupação consolidada nas operações domésticas de 79,4%. O mercado doméstico movimentou 82,2 milhões de passageiros, alta de 31,4% em relação ao mesmo período de 2021.

Como comparação, o número de embarques e desembarques em voos nacionais realizados no ano passado representa 86,5% do volume obtido em 2019, ano pré-crise sanitária.

Participação mercado doméstico em 2022, dados da ANAC.

 

Mesmo com a retomada do mercado e com os consecutivos aumentos na demanda e oferta, o setor ainda sente os resquícios da maior crise registrada na história do transporte aéreo. Com a quase completa paralisação das atividades a partir de abril de 2020, as companhias aéreas brasileiras buscaram meios de capitalização.

Sem ajuda governamental, Azul, Gol e Latam renegociaram seus pagamentos e tentaram viabilizar o fluxo de caixa junto ao mercado. As três principais companhias do país concentram 99,5% do transporte aéreo comercial doméstico.

Com dívidas junto aos seus principais fornecedores e empresas de arrendamento, e com os custos atrelados ao dólar e somado as variações positivas no preço do combustível, as companhias aéreas brasileiras enfrentam desafios financeiros agravados pela incerteza causada pela rede varejista Americanas.

Além disso o setor aponta que a falta de estratégia e planos de longo prazo no âmbito federal agravou os efeitos gerados pela crise sanitária e pelos constantes problemas do mercado interno brasileiro. Ainda assim, nos últimos três anos a ANAC promoveu uma série de reformas no setor aéreo, inclusive no transporte aéreo regular. Porém, não existe uma política pública definida para o setor.

Nos últimos três anos o preço médio do querosene de aviação (QAV) registrou alta de 115%, com o litro passando de R$ 3,85 para R$ 5,50. Os gastos de combustível representam cerca de 45% dos custos de uma companhia aérea brasileira, um dos mais altos do mundo.

Um levantamento feito pela Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear) mostrou que o preço do QAV no Brasil custa 32,3% mais caro do que nos Estados Unidos. Ainda segundo o estudo, os preços nas refinarias brasileiras são 5,1% maiores quando comparado com os valores cobrados no maior mercado de aviação mundial.

Preço do combustivel aumentou 115% nos últimos três anos.

 

Além do combustível, a desvalorização do real frente o dólar tem gerado impacto negativo. A moeda norte-americana registrou alta de 30% nos últimos três anos, passando de R$ 3,95 para R$ 5,15.

A infraestrutura ainda é um fator crônico na aviação brasileira. Mesmo com as concessões dos aeroportos na última década e avanços no gerenciamento do trafego aéreo, alguns recursos ainda estão aquém dos já utilizados nos principais países da Europa e nos Estados Unidos. Simples mudanças de procedimentos e novas estruturas nos terminais aéreos ajudariam no desenvolvimento da malha aérea em um país com dimensões continentais.

Por fim, a carga tributária brasileira, uma das mais altas do mundo, segue sendo um entrave no desenvolvimento da aviação comercial, impactando de forma direta no preço das passagens aéreas e nas dificuldades de um planejamento de longo prazo.

Neste cenário Azul e Gol estão reestruturando suas respectivas análises financeiras. De acordo com o Air Finance Journal, a Azul contratou o escritório Seabury Capital e a equipe de advogados da Weil Gotshal & Manges para assessorar uma possível restruturação. A companhia pretende uma reorganização interna, evitando assim protocolar um processo de recuperação judicial, mas não descarta um pedido na justiça americana, no famoso Capítulo 11 (Chapter 11).

Já a Gol reorganizará sua dívida com a injeção de capital da Abra Group Limited, a holding criada em parceria com a Avianca e que terá sede em Londres, no Reino Unido. O grupo se comprometeu a investir cerca de 1,4 bilhão de dólares por meio da emissão de títulos de dívida (bonds), e em financiamento direto no caixa da Gol.

A Latam, líder do mercado no Brasil, com 36,5% de participação nos voos domésticos, possui atualmente uma condição melhor que suas concorrentes. O grupo sul-americano, com sede em Santiago, no Chile, protocolou ainda em 2020 um pedido de recuperação judicial junto a lei norte-americana. Na ocasião a estratégia foi amplamente criticada por ocorrer em paralelo com o início da crise sanitária, sendo visto como arriscado por alguns analistas. Porém, após vários meses de negociações, em um período de baixa demanda de viagens aéreas, a Latam saiu do processo de recuperação judicial com as dívidas reestruturadas e maior fôlego no caixa. A maior empresa aérea da América Latina conseguiu ainda garantir linhas de financiamento aprovadas pelos credores.

De acordo com Roberto Alvo, CEO do grupo Latam, o setor só deve consolidar a recuperação em 2024. Diferentemente dos Estados Unidos e Europa, as empresas latino-americanas não receberam ajuda governamental, que em alguns casos foi cedido em termos de fundo perdido (ou seja, sem perspectivas de retorno do capital público com juros e correções). No Brasil as companhias aéreas seguem atuando de maneira independente na solução da crise, enfrentando até mesmo problemas alheios a suas responsabilidade, como turbulências políticas e contabilidade criativa de grandes empresas listadas na bolsa.

* Colaborou Edmundo Ubiratan

Embraer Airbus Azul Latam Boeing Gol passageiros Anac Transporte Mercado economia

Leia também

Azul tem nota de crédito rebaixada por agência de classificação de risco
Gol tem nota de crédito cortada por agência de risco