Balão concebido pelo inventor nordestino Augusto Severo inaugurou as atividades da Aeronáutica no país em 1894
Por Rodrigo Moura Visoni Publicado em 25/01/2022, às 13h00 - Atualizado às 15h37
Pax fora do hangar de Vaugirard (Paris, França), em maio de 1902
O acontecimento era inédito: pela primeira vez, numa experiência promovida pelo Ministério da Guerra, um dirigível alçaria voo no Brasil. Não um dirigível comum, mas uma máquina revolucionária, que devia ter aplicação imediata no combate à Segunda Revolta da Armada, séria ameaça ao governo do presidente Floriano Peixoto (1839-1895). O local era o Campo de Tiro de Realengo, no Rio de Janeiro, e a data, que não seria registrada em nenhum livro de História, 7 de março de 1894. A importação do aeróstato da Europa – mais barca, bateria elétrica, motor, 15.000 kg de ácido sulfúrico e a aparelhagem necessária para a produção de gás hidrogênio – havia custado quase 20 contos de réis.
A aeronave tinha 2.000 m de cubagem, 60 de comprimento e 15 de diâmetro. A quilha média 52 m. Uma inovadora estrutura trapezoidal sustentava, ao mesmo tempo, a gôndola onde iam os aeronautas e uma grande hélice estrategicamente disposta bem na frente do eixo longitudinal do balão, de modo a evitar a tangagem, uma trepidação que assolava os balões motorizados, prejudicial ao equilíbrio e à marcha.
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Nos projetos anteriores de dirigíveis, a tangagem surgia em decorrência da colocação das hélices propulsoras na barquinha, que ficavam, deste modo, afastadas do eixo horizontal do balão, onde atuava a maior parte da resistência do ar. Em razão dos pontos de aplicação das forças de tração e de arrasto não serem diametralmente opostos, a estabilidade ficava comprometida.
O emprego de uma estrutura preenchendo parcialmente o interior do balão possibilitava colocar e sustentar a hélice do veículo diretamente no eixo longitudinal, sem inviabilizar a ascensão do aeróstato pelo peso descomunal de todo um esqueleto rijo, o que jamais havia sido feito. Essa tecnologia fazia do Bartholomeu de Gusmão – nome da nova arma de guerra – o pioneiro de um tipo até então inexistente de dirigíveis, os semirrígidos.
O arcabouço interno deveria dificultar a deformação do invólucro pelo vento e com isso permitir ao Bartholomeu de Gusmão alcançar velocidades e alturas superiores ao melhor dirigível já experimentado, o La France, de 1884, que manteve uma média de 20 km/h ao longo de 7.600 m. Outra vantagem é que o arranjo simétrico das quatro forças aerodinâmicas fundamentais (o empuxo, o peso, a tração e o arrasto) otimizava a segurança e o controle direcional, eliminando torques indesejáveis.
O inventor da máquina era o deputado norte-riograndense Augusto Severo de Albuquerque Maranhão (1864-1902), que patenteara os planos da aeronave no Brasil e na França desde 1892. Depois de o projeto receber parecer favorável de renomados professores da Escola Politécnica, Augusto Severo, como era mais conhecido, apresentou a ideia ao governo brasileiro, que se interessou pelo possível uso bélico do invento e concedeu- -lhe os meios necessários para a montagem.
O invólucro e as diversas peças do Bartholomeu de Gusmão chegaram a bordo do paquete Charrente em março de 1893, mas devido à escassez de operários capacitados e a entraves burocráticos, o dirigível não pôde ser inflado na ocasião, ficando meses abrigado num galpão construído defronte ao Quartel do Realengo. Só após a eclosão da Segunda Revolta da Armada, em setembro de 1893, o anda- mento dos trabalhos ganhou um novo impulso de Floriano Peixoto, que pretendia usar a aeronave nos bombardeios aos navios rebeldes atracados na Baía de Guanabara.
O enchimento do balão foi feito pelo químico pernambucano Domingos Barros (1865-1938). No dia 6 de março de 1894, véspera da experiência oficial, faltando o aeróstato receber ainda 500 m3 de gás, o Bartholomeu de Gusmão levantou do assoalho sete sacos com 20 kg de areia cada um, demonstrando grande força ascensional.
Esquema básico com as forças exercidas pelo balão
No dia 7, finalmente, na presença de militares, fotógrafos e jornalistas, o dirigível saiu do galpão carregando 560 kg de lastro e elevou-se a 8 m de altura, momento em que os 20 homens responsáveis por segurar as cordas que prendiam o veículo quase foram suspensos no ar!
A experiência teve que ser logo interrompida porque a barca, feita de pinho branco, puxada em sentidos opostos pelos operários inexperientes, acabou sofrendo flexão. Devido ao risco de ruptura, o balão foi recolhido. Graças ao relato enviado ao jornal A República por uma das testemunhas do acontecimento, o coronel Eduardo de Borja Reis, pôde-se resgatar a data e saber alguns detalhes desse feito memorável da Aeronáutica Brasileira.
Dias depois, o Bartholomeu de Gusmão, embora abrigado, foi destruído por um vendaval. Com o fim da revolta, o Ministério da Guerra não voltou a investir em dirigíveis e Severo, sem abandonar a política, passou a dedicar-se a novas invenções: em 19 de abril de 1896, ele patenteou, no Rio de Janeiro, um “turbo-motor com expansões múltiplas e continuadas” e, em 27 de julho de 1899, um novo balão dirigível, também semirrígido, o Paz (posteriormente, o nome seria latinizado para Pax); por fim, em 23 de julho de 1901, ele pediu privilégio para uma máquina a vapor rotativa e reversível, com a qual os navios poderiam atingir velocidades superiores.
Meses depois, Augusto Severo partiu para a França, a fim de tentar o Prêmio Deutsch, criado no ano anterior pelo empresário francês Henri Deutsch de la Meurthe (1846- 1919), magnata do petróleo, que concederia 100.000 francos (20.000 dólares em valores da época), para o piloto que, num voo sem escalas e supervisionado por uma comissão do Aeroclube da França, partisse e retornas- se ao Parque de Aerostação de Paris no tempo máximo de meia hora, cumprindo um trajeto pré-estabelecido de 11 km, estando a Torre Eiffel no meio desse percurso.
Severo chegou a Paris em 5 de outubro de 1901 e no dia imediato entregou os planos do novo semirrígido que idealizara, o Pax, à Casa Lachambre, famosa fabricante de balões. Essa mesma fábrica havia tecido, nove anos antes, o invólucro do Bartholomeu de Gusmão.
Em menos de duas sema- nas, Severo elevou, no bairro de Vaugirard, um galpão de 35 m de comprimento por 17 de altura e 15 de largura.
Toda essa pressa era justificada: Alberto Santos Dumont, abastado balconista brasileiro que desde 1898 vinha fazendo animadoras experiências de condução com balões alongados dotados de motores a gasolina, era um forte concorrente ao Prêmio Deutsch, para o qual inclusive já fizera duas tentativas com o dirigível No 5: uma no dia 13 de julho e outra em 8 de agosto de 1901. Na primeira vez, ele perdeu o prêmio por haver ultrapassado em dez minutos o tempo limite estipulado para a prova, e acabou batendo o No 5 numa árvore; na segunda vez, ele chocou o dirigível contra um prédio. O aparelho ficou destruído, mas o piloto, surpreendentemente, nada sofreu.
Quando ficou pronto, o Pax media 2.334 m de cubagem, 30 de comprimento, 20 de altura e 13 de diâmetro.
A construção do aeróstato consumiu oito meses de trabalho e toda a fortuna de Severo – 175.000 francos, quase o dobro do valor pago pelo Prêmio Deutsch. O voo inaugural, postergado diversas vezes devido a problemas técnicos ou mau tempo, foi enfim marcado para 12 de maio de 1902. A essa altura, Severo já havia perdido o prêmio para Santos Dumont, que fora reconheci- do ganhador em 4 de novembro de 1901, por uma prova muito contestada realizada no dia 19 do mês anterior com o dirigível No 6.
No dia 12, às 5h30min, o Pax decolou e subiu até 400 m de altura, levando a bordo Severo e o mecânico francês Georges Saché (1876-1902), que supervisionaria o funcionamento dos motores. Com menos de 15 minutos de voo, percebeu-se um princípio de incêndio na popa. As chamas rapidamente atingiram o invólucro do balão e provocaram a explosão do gás hidrogênio. Uma detonação assustadora foi ouvida. Sem a sustentação proporcionada pelo gás, a quilha que carregava os dois homens desabou e se espatifou no pavimento da Avenue du Maine.
Não houve sobreviventes. Costuma-se atribuir o desastre a alguma falha mecânica ou de projeto. A concepção de Severo, no entanto, se mostraria correta apenas seis meses depois, quando, no dia 13 de novembro de 1902, levantou voo o primeiro semirrígido de sucesso, o Lébaudy, projetado pelo francês Henri Julliot (1855-1923). A aeronave demonstrou possuir excelente manobrabilidade e quebrou diversos recordes no ano seguinte. Também foi um semirrígido a primeira aeronave a atingir o Polo Norte: o Norge, do projetista italiano Umberto Nobile (1885-1978), em 12 de maio de 1926 – coincidentemente, data de 24 anos da queda do Pax.
* Publicado originalmente na edição 281 de AERO Magazine