O nível de fadiga dos pilotos brasileiros

Projeto Fadigômetro é uma evolução dos estudos sobre o estado de alerta e o nível de fadiga dos pilotos brasileiros

Por Paulo Licati*, especial para AERO Magazine Publicado em 12/12/2023, às 13h40

- Divulgação

Uma evolução tecnológica capaz de ajudar os pesquisadores na análise de dados sobre fadiga dos tripulantes de forma rápida e segura. Em resumo, essa seria a definição para o chamado “Fadigômetro”.

Com essa ferramenta, concebida no Brasil, se estabeleceu uma abordagem multidisciplinar que permite aos estudiosos da aviação revisitar os conceitos e as parametrizações dos modelos biomatemáticos à luz dos dados disponíveis para a análise. Além de desenvolver metodologias adequadas para a quantificação do risco da fadiga e suas eventuais consequências no modal aéreo.

O Projeto Fadigômetro é um estudo idealizado e financiado por diversas entidades, incluindo a Associação Brasileira de Pilotos da Aviação Civil (Abrapac), a Associação dos Aeronautas da Gol (AsaGol), a Associação dos Tripulantes da Latam (ATL) e o Sindicato Nacional dos Aeronautas (SNA), em parceria com o Instituto de Física, o Instituto de Biociências e a Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.

Seu objetivo é analisar indicadores de fadiga mental de pilotos e comissários de voo da aviação regular brasileira por intermédio do modelo biomatemático “Safte-Fast”.

Uso dos dados coletados  

Os dados são obtidos por intermédio do envio espontâneo e anônimo das escalas de voo para uma plataforma de internet, que armazena os arquivos e os converte para um formato padrão compatível com o software.

O algoritmo se baseia em um modelo biomatemático que leva em conta o processo homeostático (estado de equilíbrio do corpo) e os ritmos circadianos (ciclo de um dia), associados à atenção-vigília e à inércia do sono. 

Resultados e privacidade 

Os resultados obtidos pela equipe do Fadigômetro poderão ser acessados não somente pelos participantes, mas, também, pela sociedade brasileira em geral e a comunidade aeronáutica internacional.

Serão produzidos relatórios e publicados artigos científicos em revistas especializadas. Com protocolos rígidos, o projeto garante que os nomes tanto dos participantes como das empresas aéreas serão preservados. Ou seja, ninguém é identificado, apenas os resultados são divulgados. 

O projeto de pesquisa, intitulado “Análise dos Riscos da Fadiga Humana na Aviação Civil Brasileira”, foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa - Seres Humanos (CEP) do Instituto de Biociências da USP, que avalia as pesquisas desenvolvidas em seres humanos, sob os aspectos éticos e jurídicos (enquadramento do trabalho na legislação vigente). Essa aprovação garante que os pesquisadores irão promover a pesquisa de forma a respeitar a privacidade e a saúde dos participantes. 

Como tudo começou  

A partir de 2008, os estudos sobre fadiga no transporte aéreo brasileiro começaram a ganhar força, com a realização de importantes trabalhos científicos voltados aos pilotos da aviação civil.

O primeiro estudo (Relationship between Brazilian airline pilot erros and time of day) analisou 155.327 horas de voos entre abril e setembro de 2005 e classificou os horários em que os pilotos cometeram mais erros.

A pesquisa teve como base o Programa de Acompanhamento e Análise de Dados de Voo (PAADV), também conhecido como FOQA, demonstrando que os pilotos erraram aproximadamente 50% a mais no período da madrugada, em comparação com outros horários.  

Um segundo estudo naquele mesmo ano, chamado “Efeitos da Jornada de Trabalho nos Estados de Humor dos Pilotos Comerciais”, colheu informações e observou que o estado de humor de 91 pilotos também se mostrou reduzido no período da madrugada. 

Esses dois trabalhos levaram a comunidade aeronáutica a uma reflexão sobre o desenvolvimento da fadiga dos pilotos em uma jornada de trabalho. Já sabíamos os horários durante os quais os pilotos erravam mais, e também que a variação do humor para o negativo (um dos indicadores da fadiga) coincidia com esse período do dia. Era preciso prosseguir com os estudos. 

ICAO 

Nesse período, o grupo de trabalho sobre fadiga humana da Organização Internacional para a Aviação Civil (ICAO) ganhou relevância, sendo destaque em congressos e seminários ao redor do mundo.

Em 2011, a ICAO anunciou recomendações aos países signatários para que implementassem o Sistema de Gerenciamento de Risco de Fadiga (FRMS, na sigla em inglês). Assim, cada país poderia seguir as diretrizes (indicadas no DOC 9966) sem deixar de desenvolver suas próprias bases científicas, procurando evitar o “copia e cola” entre os órgãos reguladores e, consequentemente, entre operadores. Essa recomendação surgiu para evitar influências de peculiaridades culturais, legislativas e operacionais que poderiam se apresentar em um país e, em outros, não.  

No mesmo ano em que a ICAO anunciou essas novas recomendações, o Senado Federal discutiu um projeto de lei (PLS 434/2011) que propunha alterações nos limites das jornadas de trabalho dos aeronautas, mas que não atendia às recomendações da ICAO sobre fadiga humana.

Entre os anos de 2011 e 2017, o tema se manteve em pauta, com a realização inclusive de nova pesquisa para entender como a fadiga dos pilotos se desenvolvia durante a jornada de trabalho. 

Sem estatísticas   

Essa pesquisa surgiu da necessidade de dar respostas a uma pergunta dos parlamentares sobre estatísticas de acidentes aéreos causados por fadiga no Brasil. Em suma, não havia uma metodologia estabelecida pelo órgão de investigação de acidentes aéreos no Brasil (o Cenipa) nem números reais para apresentar. A partir dessa indagação, a então recém-criada

Abrapac liderou os estudos.  

Um dos quesitos que chamou a atenção dos pesquisadores foi o bocejo, uma reação corporal que liderava os chamados itens fisiológicos reportados pelos pilotos. O achado despertou a curiosidade dos estudiosos, que passaram a investigar a ocorrência de bocejos pouco antes de acidentes.

O resultado foi impressionante: nos dois últimos desastres dramáticos ocorridos no Brasil, há registro de bocejo nos gravadores de voz das cabines de comando.  

Os pesquisadores levaram os resultados parciais da pesquisa ao Comitê Nacional de Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (CNPAA). O objetivo era chamar atenção do Parlamento para a necessidade de se criar um guia para os investigadores sobre como avaliar a fadiga humana nas ocorrências aeronáuticas.

Com aprovação unânime no ano de 2014, o Congresso Nacional criou a Comissão Nacional de Fadiga Humana (CNFH), que já divulgou a terceira edição do guia para investigação da fadiga humana em casos de acidentes e incidentes aéreos.  

Para entender quais dados devem ser coletados, como e onde coletá-los, de que maneira analisar e divulgar os resultados – considerando que se trata de um tema novo e complexo para a sociedade –, foi necessário buscar ajuda da tecnologia e, assim, nasceu o Projeto Fadigômetro.

O estudo já produziu artigos científicos e está em constante aprimoramento, sendo reconhecido inclusive pela Azul Linhas Aéreas, que se tornou parceira oficial do projeto.

Conforme AERO Magazine vem divulgando desde 2008, o Sistema de Gerenciamento de Risco de Fadiga está deixando de ser um um safety case para se tornar um business case.

Para participar entre no link www.fadigometro.com.br    

*Paulo Licati é comandante de Boeing 737-400F
Texto publicado originalmente na edição 316 de AERO Magazine 

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