Após duas décadas de desenvolvimento e promessas, o ambicioso jato supersônico de negócios da Aerion foi cancelado sem despertar qualquer atenção
Por Edmundo Ubiratan Publicado em 08/10/2024, às 07h00
A Aerion, ao longo de mais de 20 anos, trabalhou no projeto que prometia um avião de negócios supersônico capaz de atingir Mach 1.15. Inicialmente, previa-se uma velocidade acima de Mach 1.5, mas revisões no projeto ao longo da última década reduziram a ambição de velocidade elevada.
Ainda assim, a ideia era sustentar um voo de cruzeiro na ordem de 1.400 quilômetros por hora, quase o dobro da maior parte dos aviões a jato do mundo. A intenção era criar um avião executivo que pudesse voar mais rápido que qualquer rival. Comparado com a nova geração de jatos de negócios de longo e ultralongo alcance recém-certificados, como o Gulfstream G700, a velocidade máxima é de Mach 0.935.
Embora a diferença entre Mach 0.935 (1.154 km/h*) e Mach 1.15 (1.420 km/h*) não pareça expressiva ao ponto de justificar o aumento considerável no consumo, a Aerion justificava que seu avião sustentaria um voo supersônico por praticamente todo o cruzeiro, exceto se voando em áreas proibidas. Já aviões como o G700 mantêm uma velocidade de cruzeiro máxima de Mach 0.90 (1.111 km/h*) e um cruzeiro de longo alcance de Mach 0.85 (1.049 km/h*).
Após uma série de revisões adicionais, que envolveu a presença de inúmeros parceiros que desistiam logo da aliança ou entravam apenas como consultores, incluindo Airbus, Boeing, Lockheed Martin, GE Aviation (atual GE Aerospace), Pratt & Whitney, entre outros, a Aerion reprojetou diversas vezes seu avião, rebatizando-o AS2 (o “dois” em referência a ser o segundo).
Os engenheiros propuseram um perfil mais aerodinâmico para a aeronave, com amplo uso da regra de área (as áreas das seções retas do avião ao longo do eixo longitudinal formam uma curva contínua, sem mudanças bruscas ao longo do seu comprimento, para reduzir o arrasto) e a montagem dos motores um e três em casulos sob as asas, e do motor dois na cauda.
Curiosamente, a Aerion sempre trabalhou com um projeto trimotor, algo inédito na aviação supersônica. A Boom Supersonic seguiu a mesma estratégia com o demonstrador de tecnologia XB-1, que conta com três motores General Electric J85-15 de 4.300 lbf (19 kN) cada.
O AS2 contou com diversos parceiros, como a francesa Safran, que deveria fornecer o trem de pouso, freios e demais componentes do sistema, além das nacelas dos motores. Já a britânica BAe Systems foi escolhida para desenvolver e integrar o sistema de controle de voo, incluindo o fly-by-wire. A suíte de aviônicos não havia sido definida, mas seria criada pela Honeywell, provavelmente o Anthem, que foi confirmado como o escolhido pela Boom Supersonic. Sistemas hidráulicos e elétricos, especialmente os atuadores, seriam fornecidos pela Collins Aerospace.
Outra empresa anunciada como parceira era a problemática Spirit, especializada na produção de fuselagens. Segundo nota oficial na época, a previsão era de que a empresa fosse capaz de fornecer até 36 seções dianteiras da fuselagem para a Aerion, o que oferecia uma perspectiva da cadência de entregas máximas do AS2.
Uma curiosidade é que a seção central, que tinha uma importância fundamental no projeto por sua regra de área, seria produzida pela espanhola Aernnova, que possui ampla expertise na produção de seções em materiais compostos.
Ao longo de vários anos, a Aerion trabalhou para formalizar seus fornecedores, muito por conta de sua falta de experiência no setor aeroespacial.
Considerando que aceitar ser parceiro de um programa de desenvolvimento é algo arriscado e caro, especialmente tratando-se de um modelo supersônico, a Aerion teve de comprovar não apenas sua capacidade financeira, mas também que seus estudos eram viáveis do ponto de vista técnico.
Em dezembro de 2020, o fabricante anunciou que havia cumprido mais de 78 mil milhas náuticas em ensaios em túnel de vento. A validação do design básico do avião permitiria congelar o programa, dando início à fase mais crítica: a construção do protótipo.
Nessa fase, a Aerion deveria demonstrar sua capacidade de certificar a aeronave. E, como apontamos em uma reportagem na época, publicada na edição 321, não raro, um programa atrasa meses ou anos por falhar justamente na construção, deixando passar detalhes imperceptíveis, mas fundamentais no processo. Isso ocorre antes mesmo de passar para a campanha de ensaios estáticos ou em voo, mostrando o enorme desafio que vem pela frente.
Em 2021, quando havia anunciado até a construção de uma fábrica na Flórida, com a presença inclusive de autoridades, a Aerion surpreendeu o mundo ao desistir do projeto alegando apenas problemas de financiamento, sem sequer construir um único modelo real, nem mesmo um demonstrador de tecnologia.
A empresa alegou problemas relacionados à falta de interesse de investidores e aos altos custos do projeto, somados à ausência de compromissos formais para vendas que justificassem o risco do negócio. Inicialmente, havia a possibilidade de vender o programa AS2, mas, até o momento, ninguém se interessou em levar adiante a ideia.
* O valor de conversão de Mach para Km/h é estimado, considerando uma velocidade
do som de 340 m/s, entretanto o valor varia com o conjunto temperatura-pressão