O debate sobre voos com um piloto se intensifica

Discussões sobre regulamentação de voos single-pilot em operações comerciais e privadas aumentam com evolução da tecnologia embarcada

Por Edmundo Ubiratan Publicado em 21/10/2024, às 06h00

Aviões comerciais e de negócios de grande porte poderão ser certificados no futuro para voos com um único piloto - Dassault Falcon

Os aviões autônomos ainda estão longe de se tornar realidade na aviação civil, dependendo principalmente de uma completa e complexa revisão dos processos de certificação. Ainda que, do ponto de vista tecnológico, veículos autônomos já demonstrem sua viabilidade, restam diversos ajustes, e a questão legal parece longe de ser resolvida.

Os eVTOL, os veículos aéreos urbanos, surgiram há quase 10 anos com a promessa de serem autônomos e entrar sem serviço em 2025, mas, se algum entrar em operação no próximo ano, será tripulado e longe da promessa de voar sozinho, apenas baseado em algoritmos sofisticados.

Por outro lado, a indústria avalia a viabilidade técnica, operacional e legal de voos com apenas um piloto na aviação comercial e de negócios. A tecnologia já existe e, com os avanços no aprendizado de máquina, sobretudo em deep learning, é questão de tempo para o penúltimo tripulante se despedir do cockpit, ou seja, o copiloto ou primeiro oficial, se preferir.

Se hoje parece contrassenso, há 40 anos, tirar o engenheiro de voo era impensável. Sim, nos anos 1960, ninguém pensava em remover o navegador. Seja como for, existe uma chance real de voos comerciais, especialmente de longo curso, em um futuro não tão distante, ser tripulado por apenas um aviador.

O engenheiro de voo foi o último tripulante que foi aposentado pelos sistemas automatizado, após o navegador e radioperador terem desembarcado uma década antes

Todavia, grupos de pilotos continuam na defensiva contra esse aparentemente inevitável cenário de voos single-pilot. Organizações com Air Line Pilots Association (ALPA), International Federation of Air Line Pilots’ Associations (Ifalpa) e European Cockpit Association (ECA), encabeçam um movimento contra a possibilidade de retirar mais um piloto da cabine.

Se já existem aviões de negócios leves single-pilot e tecnologia para levar esse sistema para um jato comercial, ambas as associações planejam provar que a ideia beira o absurdo, ao menos, por ora.

Alguns projetos em andamento estudam a capacidade de complexos sistemas atuarem como um copiloto artificial, executando tarefas que seriam feitas por humanos, em todas as fases do voo. A Airbus e a FedEx têm estudos conjuntos para tal conceito em aviões cargueiros.

Tripulação mínima

A ALPA realizou um painel sobre o tema durante seu fórum anual sobre segurança, que contou inclusive com o presidente da ECA, Otjan de Bruijn. A preocupação do grupo se ateve sobre estudos recentes da Agência de Segurança da Aviação da União Europeia (EASA, na sigla em inglês) após solicitações específicas da Airbus e da Dassault para operações de tripulação mínima estendida (eMCO) em voos de longo curso.

O chamado eMCO é atualmente um estudo de regulamentação em andamento na EASA, que considera o progresso feito em automação, design do cockpit e sistemas de monitoramento provavelmente já garantem operar com segurança com apenas um piloto em segmentos não críticos na fase de voo de cruzeiro.

O grupo de trabalho avalia a possibilidade de autorizar no futuro a presença de apenas um piloto no cockpit na fase de cruzeiro, em voos longos ou muito longos, podendo permitir o fim da tripulação composta.

A função do piloto adicional, na função de Pilot Moniroring (PM), poderia ser assumida pelos sistemas do avião, sem sobrecarregar o piloto humano, que ficaria sozinho no cockpit. Caso um dia seja aprovado, o sistema permitirá uma considerável redução nos custos, ao tornar necessário três ou quatro pilotos em um voo. Os argumentos de economia são muitos, desde melhor gestão do quadro de pilotos até redução no consumo de combustível.

Europa avalia o fim das tripulações compostas, usando sistemas automatizados para assumir a função do segundo piloto

 

O conceito eMCO surgiu em meados de 2017, ainda sob a sigla RCO, quando os fabricantes e algumas empresas apresentaram a EASA sugestões para melhor aproveitamento dos pilotos, baseado nos avanços tecnológicos já existentes ou em fase avançada de estudos.

Assim, seria possível que um dos pilotos pudesse dormir no próprio assento, ou sair do cockpit para descansar, sem ser substituído. A ideia não é exatamente nova, no passado, a FAA chegou a avaliar que um piloto pudesse sair do cokpit e tirar um cochilo enquanto o outro estivesse trabalhando. A pressão das associações vetou o projeto ainda no nicho.

Os contrapontos

Agora, com o eMCO, as organizações de pilotos voltam a colocar em dúvidas a segurança de uma operação com apenas um piloto em algumas fases de voo, e especialmente contra a possibilidade de operação single-pilot nos futuros aviões.

Um white paper da ALPA destaca a evolução da segurança no transporte aéreo e afirma que “o notável histórico de segurança da indústria aérea depende da exigência de dois pilotos na cabine de comando”.

Do ponto de vista tecnológico existe condições de programar um sistema que realize um voo completamente autônomo, o desafio prático é a regulamentação

O documento público afirma ainda que as tecnologias de automação existentes ou em desenvolvimento “não representam uma solução aceitável ou equivalência de segurança ao modelo de dois pilotos”. Já alguns analistas e especialistas em automação afirmam que hoje já existem tecnologias que poderiam permitir uma operação single piloto ou eMCO com elevado grau de segurança.

O sistema de pouso autônomo da Garmin, conhecido como Autonomí Autonomous Safety-enhancing Technologies, permite pousar em segurança sem interferência humana

Alguns sistemas já em uso, como o sistema de pouso autônomo da Garmin, conhecido como Autonomí Autonomous Safety-enhancing Technologies, já permite que aeronaves pousem em segurança ao toque de um botão, tendo sido adotado por Cessna, Beechcraft, Piper, Daher e Cirrus. Além disso, sistemas avançados como o existente nas naves espaciais CrewDragon, da SpaceX, e Starliner, da Boeing, permitem total controle autônomo de todos os processos.

O senão, neste caso, a ICAO observou em um recente documento publicado em 2022 (A41-WP/101) que, embora a automação possa realmente permitir voos seguros com apenas um piloto, qualquer redução de custos associados à força de trabalho realizada por meio de operações de tripulação reduzidas terá como contraparte custos operacionais mais altos, assim como alta nos gastos com treinamento, infraestrutura e manutenção. “Custos adicionais potenciais relacionados ao suporte terrestre de nível mais alto e comunicações bidirecionais também devem ser considerados”, pontua a ICAO.

Alguns pilotos ainda destacam que a operação baseada em minimum equipment list (MEL) só é possível pela presença de dois pilotos a bordo. Uma eventual operação single pilot, eMCO ou mesmo autônoma tornará inviável o despacho que aeronaves com qualquer item inoperante, o que se traduz em despesas maiores e o risco de inviabilizar diariamente dezenas ou centenas de voos.

Outro ponto, não menos importante, é relacionado à questão de saúde dos pilotos. A ICAO no documento A41-WP/101 destaca que um dos desafios da operação eMCO será coletar dados significativos para apoiar decisões sobre requisitos médicos para operações de piloto único. “Os atuais critérios médicos de classe um devem ser revisados ​​em relação aos requisitos de eMCO ou SiPO”, destaca.

Tecnologia para voo single-pilot existe, mas custos podem aumentar para as empresas aéreas que serão obrigadas a manter maior rigor na manutenção e terão pouca ou nenhuma margem para voos dentro dos limites do MEL (Minimum Equipment List)

 

Além disso, a ICAO afirma que a indústria e operadores terão de garantir o monitoramento em tempo real do estado de alerta e desempenho do piloto, permitindo assim a rápida e necessária identificação de fadiga ou incapacitação.

Mesmo com aprendizado de máquina avançado, poderosos computadores, e custos tecnológicos realmente competitivos, para não dizer mais baratos do que a mão de obra quando analisado no médio e longo prazo, ainda existe um complexo caminho para afirmar se é seguro e viável voar com apenas um piloto a bordo.

A maioria das questões segue em aberto e devem permanecer assim por longos anos, sobretudo quanto a regulamentação do tema. As associações de pilotos e mesmo a ICAO têm trabalhado para entender a demanda e ressaltar questões chaves que geralmente passam despercebidas quando vistas apenas do ponto de vista tecnológico.

Por fim, caso tais questões sejam sanadas, não é difícil realizar que antes do final do século teremos aviões voando sozinho com centenas de passageiros a bordo. Ainda assim, o caminho é longo.

* Publicado originalmente na AERO Magazine 365 · Outubro/2024

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