Filho de piloto de avião, o eterno as da Fórmula 1 também pilotava aeronaves
Por Giuliano Agmont Publicado em 01/05/2019, às 08h00 - Atualizado em 10/05/2019, às 18h23
Ayrton e o comandante Nelson Loureiro a bordo do Esquilo do tricampeão de Fórmula 1
Milton Guirado Theodoro da Silva moldou facetas emblemáticas da personalidade do filho, Ayrton Senna. A timidez e a obstinação incorporadas em meio a uma educação rígida são quase tão famosas quanto o próprio tricampeão mundial de Fórmula 1. O que nem todos sabem é que nas veias daquele menino franzino, nascido e criado na Zona Norte da cidade de São Paulo, próximo à Praça 14 Bis e ao Campo de Marte, também corria sangue de aviador. Ainda garoto, viu o pai comprar o primeiro avião, um Skylane, e se tornar piloto. Depois, vieram máquinas como Seneca I, Comanche e Seneca III, este presente do filho, na ocasião, já um mito das pistas. Da paixão por aviação herdada do pai veio o brevê de piloto privado de helicóptero, tirado por Ayrton em 1993.
“Ele voava seguro, padronizado”, lembra o comandante Nelson da Silva Loureiro, amigo, instrutor e piloto de Senna. “A história do PT-VAZ (o Seneca III) é curiosa. O Ayrton comprou uma Mercedes, trocou pelo avião e deu para o pai”. Acostumado com o ambiente aeronáutico não só pelas experiências a bordo das aeronaves da família, mas também pelo uso regular de jatos e helicópteros nos deslocamentos entre uma corrida e outra, Senna sempre demonstrou uma inclinação pelas asas rotativas. Ele teve três Esquilos, e pilotou dois deles, o HYO e o HNY. No total, cumpriu pouco mais de 101 horas de voo, registradas na CIV (Caderneta de Informações de Voo) guardada com zelo até hoje por Loureiro. Sua última decolagem aconteceu no dia 3 de abril de 1994, partindo de sua fazenda em Tatuí (SDDL) para o Campo de Marte (SBMT), praticamente um mês antes do acidente em Ímola, durante o Grande Prêmio de San Marino, há 20 anos.
Foi a última vez que o comandante viu o amigo com vida. Ele prefere dizer que Ayrton viajou para a Europa e ainda não voltou: “Para mim, ele não morreu. Um dia ele volta”. Os dois se conheceram em 1978, quando Nelson voava para a Transzero, uma transportadora de carros pertencente a um sócio do pai de Ayrton Senna nas fazendas da família na época e primeira patrocinadora do futuro campeão. “Ele era mais novo do que eu e tinha vergonha de todo mundo”, recorda o piloto, sorrindo. “Ficamos amigos, emprestava até meu carro para ele dirigir, um Opala Comodoro, acredita?”.
Com o tempo e o apoio do “Seu Milton”, que o deixava cumprir horas de voo no Comanche, Loureiro se tornou comandante da frota da Transzero e passou a voar também para Ayrton, ainda em começo de carreira. “Não dava para saber que ele se tornaria o Senna. Na época, a gente pousava em Congonhas e ele sempre me oferecia carona, era caminho. Pois é, quem pode dizer que teve o Senna de motorista, numa perua da Mercedes, aquela azul (risos)?”, brinca o piloto, que continuou trabalhando para a família por mais 18 anos depois da morte de Ayrton.
Nelson Loureiro acompanhou de perto a trajetória de Senna desde o princípio, dentro e fora das pistas. Costumava dar força para o campeão em seus badalados namoros. “Seu Milton era muito severo, não gostava que o Ayrton usasse o helicóptero sem necessidade. Mas, de vez em quando, por uma causa nobre, quebrávamos essa regra. Eu levava bilhetes da Adriane Galisteu para ele e depois entregava mensagens dele para ela, uma espécie de correio aéreo elegante”, confidencia o piloto, que recebeu do casal o apelido de “Nersu da Capitinga”, em alusão a um personagem humorístico de então. “Com a Xuxa, na primeira vez que pousamos na casa dela, contrariando a ordem do Ayrton, cortei o motor da aeronave e disse: ‘Vai lá, você não tem tempo para cerimônias, temos de voltar para os treinos’. Ele era realmente muito tímido”.
O aviador Senna teve outros instrutores, mas Loureiro foi o mais próximo. Ele cuidou dos trâmites para o piloto de Fórmula 1 fazer tanto o exame médico quanto o teórico até tirar o brevê com o prático. “Embora já fosse muito famoso, a única regalia que o Ayrton teve foi uma banca especial em Brasília, em 1992, para checar o teórico, por causa de agenda. O teste prático foi complicado, no meio de uma negociação dura com a McLaren. O coronel Fiúza, preocupado com a responsabilidade que tinha sobre os ombros, incluiu manobras como autorrotação a 180 e 360 graus, simulação de pane hidráulica e pouso corrido. Tinha coisa que nem eu sabia. No final, deu certo, o voo em Tatuí transcorreu sem anormalidades e a licença de piloto de helicóptero, um sonho antigo do Ayrton, saiu”, relata Nelson Loureiro, que devolveu a carteira para a família, mas guarda cópias em tamanho grande do exame médico e do brevê enquadradas.
No mesmo ano em que obteve a licença, Senna decidiu comprar um avião. Nelson achou um King Air na Alemanha, um F-90, e foi buscá-lo. Fez apenas pintura e interior e cravou na matrícula “PT-ASN”, as iniciais de Ayrton Senna e Nelson. Tanta cumplicidade não podia dar em outra coisa, gostavam de pregar peças em todo mundo. “Ele tinha um amigo muito medroso, com pavor de voar. Uma vez escondemos uma garrafa de uísque pela metade embaixo do assento e, no meio do voo, o Ayrton pega a bebida e grita: ‘Voltou a beber, Nelson, não é possível, olha o risco que estamos correndo’. Dá para imaginar o desespero do nosso passageiro no banco de trás?”.
A despedida do amigo não poderia ser mais simbólica, aconteceu no dia do enterro de Senna, ao sobrevoar inesperadamente o cortejo em homenagem ao ídolo pelas ruas de São Paulo. “Quando vi aquela multidão seguindo o carro do Corpo de Bombeiros, o coração disparou, achei que não fosse conseguir controlar o helicóptero. Tive de inventar uma desculpa para pousar a aeronave o mais rápido possível”.