O anfíbio Super Petrel une desempenho e versatilidade

No outono de 2005 exploramos em detalhes o Super Petrel e um ensaio completo que comprovou o desempenho e versatilidade desse anfíbio de alma brasileira

Hernani Dippólito Publicado em 14/10/2024, às 16h00

Com boas características de voo, o Super Petrel cruza a 165 km/h; dois tanques de combustível, de 40 litros cada, garantem uma autonomia de 04h30mim - Márcio Jumpei

História do avião que estou prestes a ensaiar começou em 1985 quando, o engenheiro Claude Tisserand, natural da Córsega, ilha francesa situada no Mar Mediterrâneo, iniciou a construção do projeto "Hydroplum-II", um biplano anfíbio com dois assentos lado a lado. Mas os primeiros voos, no final de 1986, apresentaram problemas que comprometiam as qualidades de voo, como estabilidade, controle e hidrodinâmica.

Após dois anos de trabalhosos acertos, a empresa francesa SMAN (Société Morbihannaise d’Aéro Navigation) começou a construir em série o projeto de Tisserand, rebatizado Petrel. No final de 1989, André Reynier, então presidente da indústria brasileira Edra Aeronáutica, começou a montar a infraestrutura necessária para a produção do Petrel no Brasil, investimento que envolvia a compra de ferramental para manusear materiais como fibra de carbono, kevlar, tubos de alumínio e madeira.

Com o apoio da SMAN, a Edra iniciou a montagem de um dos ultraleves mais charmosos fabricados no país. Desde então, a empresa paulista produziu mais de 150 unidades do Petrel, vendidos em kit ou totalmente montados, muitos deles para clientes estrangeiros.

Ao comprar o projeto do Petrel, a Edra Aeronáutica, cuja sede fica na pequena cidade de Ipeúna, no interior do estado de São Paulo, passou a fabricar o avião com exclusividade. Além disso, resolveu aperfeiçoar a máquina, criando uma nova versão, o Super Petrel.

O engenheiro mecânico e piloto Fernando Abbud, sócio da Edra no projeto do Super Petrel, é responsável por muitas das melhorias propostas. Abbud e Maurício Lanza, engenheiro aeronáutico e gerente técnico da Edra, me mostram a linha de montagem do ultraleve. Fico impressionado com a organização e a beleza do lugar.

Os dois hangares destinados à montagem do Super Petrel, que reúnem as formas e os gabaritos de todas as peças, ficam próximos a uma charmosa pista de grama. A fuselagem-casco é toda moldada em material composto e demanda um trabalho minucioso de confecção dos gabaritos para receber o sanduíche entre a fibra de carbono e uma espuma de PVC de célula fechada, o que lhe confere resistência e flexibilidade para operações na água.

Tecidos de kevlar são empregados em regiões mais exigidas, como a base do berço do motor e o assoalho na área dos assentos. São utilizadas, conforme a técnica adequada para cada componente, resinas epóxi e estervinílicas da mais alta qualidade.

Um engenhoso e prático gabarito serve para a montagem simultânea das duas asas. O perfil das asas, NACA-2412, o mesmo do Cessna 182 Skylane, é formado por nervuras de material composto. A asa superior tem uma longarina de liga de alumínio aeronáutico certificada, enquanto a inferior tem uma longarina mista de fibra de carbono e fibra de vidro, abandonando a utilização de madeira, como acontecia no modelo anterior.

A fixação das nervuras nas longarinas é uma obra-prima, assim como o acabamento. Também foi feito um trabalho de torção a cada nervura, em todo o comprimento da asa, conhecido como washout, para melhorar a característica de estol. A estrutura do tubo do cone de cauda é de fibra de carbono e espuma de PVC, com nervuras internas. Nos testes de certificação, o tubo aguentou mais de 20 G.

"É a peça mais superdimensionada do avião", revela o gerente técnico Maurício Lanza. Outra inovação: todas as conexões estruturais que usavam pinos e travas no antigo Petrel foram substituídas por parafusos e porcas autofrenantes, inclusive os pinos de fixação das asas na fuselagem.

Os flutuadores foram fixados junto ao intermontante de forma a não interferir na continuidade do fluxo de ar no intradorso

Os flutuadores, que eram incorporados à asa inferior em suas extremidades, agora são instalados sob a asa, fixados junto ao intermontante de forma a não interferir na continuidade do fluxo de ar no intradorso.

Todo o sistema de acionamento dos ailerons foi modificado, adotando um cabo de acionamento primário duplo com rolamentos e terminais rotulares para a fixação. A asa superior possui winglets enflechados que, além de sua função primária de reduzir o consumo em cruzeiro, aumentam a estabilidade lateral.

Acompanhado pelo fotógrafo Márcio Jumpei, chego tarde às instalações da Edra. Assim, aproveitamos as últimas horas do dia para conhecer os detalhes do projeto e fazer algumas fotos no solo. No dia seguinte, chegamos ao hangar às 05h15 e somos recebidos por Rodrigo Scoda, presidente da Edra, que vai pilotar a aeronave paquera, um ultraleve avançado Ikarus C-42 (AERO, ed. 122 – jul/04). Fernando Abbud voará comigo no PU-CEB.

Durante a inspeção externa, percebo algumas diferenças no casco em relação ao modelo anterior: linhas bem definidas e um bom conjunto com o esquema de pintura. Encontro na proa uma funcional escotilha que permite o acesso ao tanque de água, de 20 litros, utilizado como lastro nos voos solo.

Na proa uma funcional escotilha permite o acesso ao tanque de água, de 20 litros, utilizado como lastro nos voos solo
No cone de cauda as conexões dos estabilizadores e dos estais merecem atenção especial
O acesso ao cockpit é simples e a posição do assento é confortável

Confiro o sistema de retração do trem de nariz e os cabos de atuação do leme. Os cabos saem dos pedais e passam sob o assoalho, sem interferir na cabine de comando.

Na lateral direita da cabine existe um dreno de combustível que é instalado na parte interna do ultraleve e, portanto, não fica em contato com a água durante as amerissagens. Todas as conexões das superfícies aerodinâmicas e dos comandos de voo são verificadas. O entelamento das asas é de excelente qualidade.

No grupo motopropulsor, a carenagem praticamente “veste” o motor, dando a impressão de ser uma peça única até o spinner da hélice tripá Arplast, de fabricação francesa, com cubo de alumínio. Retiramos o capô para uma inspeção geral. Os radiadores de água e de óleo ficam embutidos na carenagem, com refrigeração garantida pelo fluxo de ar através do motor.

Seguimos checando o cone de cauda, cujas conexões dos estabilizadores e dos estais merecem atenção especial. O ajuste do profundor (trim tab) é acionado eletricamente.

Termino o cheque externo verificando o trem de pouso. As pernas do trem de pouso são fabricadas em fibra de vidro e tanto a geometria do trem como a fixação dos amortecedores seguem o padrão adotado no Petrel.

As únicas diferenças são que agora as rodas e os freios são fornecidos por um fabricante brasileiro e o sistema de retração e extensão do trem de pouso utiliza cabos de aço, em vez de hastes de alumínio.

Por dentro, a cabine é espaçosa e com bom acabamento. As portas se abrem para a frente, como as de um carro, mas com 180 graus de deflexão. Logo atrás dos assentos estão os dois tanques de combustível, com capacidade para 40 litros cada. Acima dos tanques há um funcional bagageiro com capacidade de 120 litros.

Como na maioria dos anfíbios, há uma bomba de porão para eventual escoamento de água acumulada durante as amerissagens e para drenar a água usada como lastro. O acesso ao cockpit é simples e a posição do assento é confortável.

Ajusto o cinto de quatro pontos e repasso os últimos detalhes da operação na água com Fernando Abbud, ciente de minha restrita experiência neste tipo de operação. Ajusto o afogador, com magnetos e a chave master ligados, aguardo alguns segundos para a bomba elétrica de combustível pressurizar a linha e giro o starter.

O motor Rotax 912S pega fácil, com 2200 rotações por minuto (rpm) no aquecimento. Aproveito então para ir me acostumando com a disposição dos instrumentos. A vibração é muito leve, uma vez que o motor é preso à fuselagem utilizando o berço desenvolvido pela Rotax.

Encontro todos os comandos de voo com facilidade. Durante o taxiamento, aplico o freio diferencial para direcionar o PU-CEB, que tem bequilha do tipo louca, enquanto Abbud me orienta a dar pequenas “rajadas” de manete para obter uma melhor eficácia do leme. O amortecedor hidropneumático funciona bem nas partes irregulares da pista de grama.

Posicionado na cabeceira e alinhado com o eixo, executo o cheque de magnetos e de comandos livres. Ligo a bomba de combustível e observo o C-42 decolar com Rodrigo e Márcio a bordo.

São exatamente 06h00 quando acelero o motor do Super Petrel e inicio a corrida. Com pouco mais de 50 milhas por hora (mph), o anfíbio levanta voo após uma leve pressão no manche. Recolho o trem utilizando uma alavanca que fica entre os assentos, do tipo “barra Johnson”, com atuação de retração muito fácil.

Por dentro, a cabine é espaçosa e com bom acabamento. As portas se abrem para a frente, como as de um carro, mas com 180 graus de deflexão

 

Ajusto o motor para manter 5.200 rpm e 65 mph na subida enquanto observo uma razão de subida de 750 pés/minuto. Detalhe: estamos em dois e com mais de 50 litros de combustível.

Os primeiros raios do sol deixam o horizonte avermelhado enquanto seguimos na proa da Represa do Broa, na cidade de Itirapina. Logo iniciamos a sessão de fotos, aproveitando a bela paisagem da manhã de verão. Rapidamente estou confortável com o voo. O Super Petrel não exige muito o uso do trim tab, pois tem uma boa harmonia de comandos com estabilidade dinâmica e estática corretas.

O painel simples, equipado com os instrumentos para voos visuais, tem espaço para a instalação de um receptor GPS

 

Chegando na represa, o visual é maravilhoso. A água espelhada reflete a bela vegetação que nasce na margem, iluminada pela luz da manhã. Fernando Abbud executa os primeiros pousos e fico impressionado com a simplicidade da operação. Mas é preciso muita atenção com a posição do trem de pouso. Pouso na água, trem em cima! Uma luz azul no painel indica o trem recolhido (azul = água) e uma luz verde indica o trem embaixo e travado (verde = grama).

No primeiro pouso, fico aguardando aquele barulho característico do casco tocando na água, mas tenho uma boa surpresa: não há praticamente barulho algum. O toque é suave e deixa o piloto completamente seguro. Abbud me explica que o casco é construído de forma a absorver com suavidade os impactos do pouso na água. Continuamos com as amerissagens e arremetidas. Alinho na final e reduzo a velocidade para 60 mph. Mantenho o motor próximo de 3.000 rotações e dou um rasante sobre a água.

O casco é construído de forma a absorver com suavidade os impactos do pouso na água

 

Como o vento está calmo, a água fica espelhada e a noção de profundidade fica um pouco prejudicada. Abbud vai me auxiliando e o toque acontece de forma macia. A asa inferior funciona como um defletor do spray formado pela água, preservando assim a integridade da hélice. Executamos mais alguns pousos e resolvemos mudar da água para o asfalto.

Ganho um pouco de altura e, em menos de três minutos de voo, estamos sobrevoando a bela pista do Condomínio Broa. Na vertical da pista, com 2.000 pés de altura, checo bem a área e começo um exercício de voo a baixa velocidade. Reduzo o motor para 4.500 rpm e, com climb zerado, resolvo realizar uma análise do voo no pré-estol; o ultraleve mantém 45 mph de velocidade.

Faço várias curvas a fim de induzi-lo ao início do estol, mas sem sucesso, além de curvas usando apenas o pedal e curvas com pequenas amplitudes de aileron. Os comandos nos três eixos permanecem íntegros nessa velocidade.

• GOSTEI 👍
Atuação do conjunto do trem de pouso e sistema de retração, simplicidade e segurança da operação na água
• NÃO GOSTEI 👎
Falta de uma hélice de passo variável como opcional

Retomo o voo nivelado e vou ajustando bem devagar para a marcha lenta. Anoto a marca de 30 mph com um estol muito suave. Não há tendência de queda de asa no estol sem motor. Com motor, percebo uma pequena tendência de queda para a direita no estol.

Todas as recuperações dos estóis são simples e rápidas, bastando apenas aliviar o manche para a frente. Entro no circuito do Broa, a 700 pés de altura, ajustando a velocidade, e empurro a alavanca do trem de pouso para a frente. Luz verde checada e giro base pela esquerda. Fernando Abbud começa a chamar minha atenção para a velocidade, que está muito alta. É impressionante, mas não me sinto seguro para manter velocidades abaixo de 70 mph, mesmo após realizar os pousos na água a 60 mph e os estóis a 30 mph.

Abbud continua me alertando e, na aproximação final, solta o seguinte comentário: “a pista é grande...”. Dito e feito, o Super Petrel flutua sobre a pista sem querer pousar e, nesse instante, percebo como estávamos velozes. Faço um toque e arremetida e então resolvo atender às orientações do Abbud. Executo um novo circuito e cruzo a cabeceira com 60 mph.

Desta vez é bem mais simples e o arredondamento acontece sem maiores problemas.
O centro de pressão da aeronave fica em uma posição intermediária entre as duas asas, assegurando assim uma qualidade de voo semelhante a uma aeronave de asa média.

Uma pequena pausa e retornamos para a represa. Voamos durante toda a manhã, com algumas pausas para andar “de lancha”. Na volta para a pista da Edra, comprovo o bom rendimento em voo de cruzeiro. Com 5.000 rpm observo uma velocidade indicada de 100 mph.

Em resumo, quem procura um avião esportivo com bom desempenho e versatilidade tem uma boa opção no Super Petrel. Vale a pena conhecer esse anfíbio que já tem alma de brasileiro.

* Publicado originalmente na AERO Magazine 133 · Maio/2005

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