Incursões de pista são um risco real na aviação mundial

As medidas para reduzir o risco de acidentes e incidentes determinados por incursões de pista

Por Francisco Augusto Costa* Publicado em 05/01/2024, às 08h00

Dash-8 se chocou com o A350 poucos metros após a marca de 1.000 pés da pista 34R do aeroporto de Haneda, em Tóquio - Arte: AERO Magazine | Imagem de Satélite: Google Earth

No dia 2 de janeiro um grave acidente envolvendo um Airbus A350 da Japan Airlines e um Dash-8 de patrulha marítima da Guarda Costeira do Japão ganhou as manchetes do mundo. Ainda que sob investigação inicial, o caso chamou atenção pelo fato do Dash-8 ingressar na pista no mesmo momento que o A350 pousava, dando indícios de um caso de incursão de pista.

Dois anos, antes, em fevereiro de 2022. Durante aproximação em São Paulo, um Boeing 737 MAX 8 se preparava para o flare. As boas condições meteorológicas colaboram com a visibilidade e a tripulação, já vigilante em relação à movimentação de uma aeronave saindo do pátio 12 do aeroporto internacional de Guarulhos, não é surpreendida ao receber da torre uma instrução de arremetida, prontamente cumprida.

Um Learjet ultrapassou as marcas demarcadoras do ponto de espera e avançou perigosamente em direção à pista sul, exatamente na zona de toque da cabeceira 10R, a mais utilizada para pousos no principal aeroporto brasileiro.

A aerodrome chart de Guarulhos e mostra a proximidade local das duas ocorrências

Menos de um mês depois, um A320neo também recebe ordem de arremetida exatamente no mesmo local, desta vez, em função da perda de separação com um Bandeirante, que havia pousado antes do Airbus, e que ainda não havia livrado a pista via taxiway Tango. 

Mas não foi somente a proximidade local e temporal que marcou os dois eventos: o fato de terem ocorrido em período diurno, em boas condições meteorológicas e com alta consciência situacional dos pilotos – e, principalmente, dos controladores – colaborou para o desfecho seguro de ambos.

A história é rica em eventos similares com desfechos trágicos durante operações noturnas, em condições meteorológicas de voo por instrumentos (IMC) ou em aeroportos que não contam com equipamentos de segurança que colaboram com os controladores de tráfego aéreo nos principais terminais do mundo.

O que é incursão de pista? 

As ocorrências em aeródromo envolvendo a presença incorreta de aeronave, veículo ou pessoa na área protegida de uma superfície designada para pouso e decolagem de aeronaves são definidas, segundo o RBAC 153, como “incursão de pista”.

Entende-se como presença incorreta o posicionamento ou movimento inseguro ou indesejável de aeronave, veículo ou pessoa na área protegida. Área protegida, por sua vez, é a área que compreende a pista de pouso e decolagem, a stopway, o comprimento da faixa de pista, a área de segurança de fim de pista (RESA) e, se existente, a zona desimpedida (clearway). 

A incursão de pista, em conjunto com outras quatro categorias de acidentes aeronáuticos, foi definida pela Organização de Aviação Civil Internacional (ICAO, na sigla em inglês) como uma das cinco high-risk categories (HRC), que se caracterizam por um destes marcadores a seguir, ou uma combinação deles: alto número absoluto de fatalidades, alto número de fatalidades por evento e número absoluto de eventos, sejam eles acidentes ou incidentes.

As HRC estão nominalmente citadas no Documento 10004 da ICAO, o Global Aviation Safety Plan 2023-2025 (GASP), fazendo valer o principal objetivo de segurança operacional da entidade. O próprio GASP identifica vários fatores contribuintes para a ocorrência desses eventos, incluindo design do aeroporto, carga de trabalho de pilotos e controladores e uso de fraseologia fora de padrão. Somam-se a estes outros já citados, como operações noturnas, sob baixa visibilidade ou com infraestrutura aeroportuária deficiente.

O cenário brasileiro

 

Uma consulta às estatísticas do Sistema de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos, o Painel Sipaer, que fornece um panorama da segurança operacional da aviação brasileira nos últimos dez anos, exibe 46 eventos de incursão em pista, sendo alguns registros em duplicidade (quando envolvem duas aeronaves).

Uma breve comparação com os 1.696 eventos registrados em 2022 e com os mais de 600 eventos registrados apenas até maio de 2023 pela agência de aviação civil norte-americana (FAA) levanta uma suspeita de subnotificação dos eventos no Brasil.

Ainda assim, os 46 eventos registrados no país demonstram uma tendência: dos sete acidentes registrados, cinco foram relacionados à presença de pessoas nas proximidades da pista de pouso, sempre em localidades com pouca infraestrutura, notadamente em aeroportos não controlados.  

Os registros de incidentes e incidentes graves remanescentes envolvem fatos como pouso ou decolagem em pista diferente da autorizada pelo controle de tráfego aéreo (ATC), em aeroportos com duas pistas, ultrapassagem não autorizada da barra de paradas ou, ainda, autorização de pouso ou decolagem para uma aeronave enquanto outra ocupava a pista em uso.

A suspeita de subnotificação é reforçada, por exemplo, pela ausência de relatos de incursões relacionadas a veículos, uma subcategoria de runway incursion que voltou a chamar a atenção após as fortes cenas da colisão do Airbus CC-BHB com um caminhão de bombeiros no final de 2022.

O evento de Lima 

A TRAGÉDIA DE TENERIFE
O pior acidente da história da aviação ocorreu após um evento de incursão de pista  
 
O acidente do aeroporto de Tenerife de 1977 permanece como o pior desastre da história da aviação comercial, com 583 fatalidades. Na ocasião, dois Boeing 747 foram totalmente destruídos quando um 747-200 da KLM, que havia iniciado a decolagem sem a autorização da torre de controle, colidiu com um 747-100 na PanAm, no aeroporto de Los Rodeos. Resultado de um evento de incursão em pista, o pior acidente da aviação mundial é nominalmente citado pela ICAO no seu Plano Global de Segurança como motivação para a vigilância constante contra os eventos de runway incursion

Na tarde de 18 de novembro de 2022, um A320neo da Latam Peru iniciou a decolagem de Lima, cumprindo o voo 2213, que se destinava a Juliaca, cidade distante 850 quilômetros a sudeste da capital peruana. Simultaneamente à autorização de decolagem da aeronave da Latam, iniciava-se um exercício das equipes de bombeiros do aeroporto de Lima.

Praticamente sem notar a aceleração do avião na pista, o primeiro de um conjunto de três caminhões da equipe de socorristas de resgate colidiu com asa e motor direitos do Airbus, que, no momento da incursão em pista, já havia ultrapassado a velocidade de 120 nós.

Apesar da ausência de feridos graves no avião, dois bombeiros perderam a vida e um ficou gravemente ferido como resultado da colisão.  

Cabe destacar que, a despeito do exercício da equipe de socorro ter sido autorizado e coordenado previamente com a administração aeroportuária, essa autorização não inclui, de forma implícita, a autorização para entrada e uso indiscriminado da área protegida, que deve sempre ser precedida da autorização pelo controle de tráfego aéreo.

Neste aspecto, é importante enfatizar exatamente este ponto: entre os principais fatores contribuintes para eventos de incursão em pista no mundo está a entrada na pista, seja por aeronaves, pessoas ou equipamentos, sem a devida autorização ATC ou, onde é aplicável, sem a devida coordenação do serviço de tráfego aéreo (ATS).

Prevenção 

Apenas em 2022 os Estados Unidos registraram 1.696 eventos de incursão de pista

Sabendo que os eventos de incursão de pista são um risco real, conhecendo a gravidade dos eventos, sobretudo aqueles que envolvem colisão entre aeronaves, e tendo identificado os fatores contribuintes, é necessário conhecer as medidas de mitigação para prevenção de novas ocorrências.

Essas medidas não pretendem ser exaustivas, ou seja, às medidas apresentadas a seguir se somam outras identificadas por organizações, operadores e reguladores que militam na segurança operacional.  

Sob a ótica da administração aeroportuária, algumas das medidas mitigatórias possíveis são o redesign nas áreas críticas (quando possível), reforço nas sinalizações de solo, instalação de radar de solo e treinamento de operadores de equipamentos de solo.

Sob a ótica das tripulações, boas medidas incluem o briefing prévio da operação de táxi, a atenção às instruções ATC e às comunicações rádio em geral e o conhecimento das sinalizações aeroportuárias e de outros recursos de treinamento (há vários bons materiais acessíveis gratuitamente na internet).

Outros atores como controle de tráfego aéreo, operadores e reguladores também exercem papel fundamental na prevenção desse tipo de evento e deles se espera uma contribuição significativa para que a ICAO atinja seu ousado objetivo delineado no GASP 2023-2025: atingir, no ano de 2030, um zero absoluto de fatalidades na aviação comercial.

*Francisco Augusto Costa é piloto de A320 e
mestre em Transporte Aéreo e Aeroportos pelo ITA.

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