Conheça os desafios de voar durante os dias quentes do verão

O verão apresenta condições que devem ser bem compreendidos por pilotos

Por Paulo Marcelo Soares Publicado em 05/12/2023, às 12h00

O calor interfere na operação e pode significar desde uma redução na quantidade de bagagem a bordo, passando pela inclusão de um pouso intermediário, até ou cancelamento do voo - Pilatus

O verão apresenta condições que devem ser bem compreendidos por pilotos e proprietários de aeronaves para reduzir riscos, tornando seus voos seguros. A estação mais quente do ano é marcada por duas características fundamentais, altas temperaturas e elevada umidade atmosférica. Ou seja, há uma redução da densidade do ar.

O ar menos denso afeta a performance de uma aeronave de três maneiras, reduzindo a potência de motores, a tração de hélices e a sustentação. Na prática, isso se traduz em uma maior corrida de decolagem e menor gradiente de subida para um determinado peso.

Aeronaves com motores turbocharged teoricamente não perderiam potência em dias quentes, já que o turbo compensa a menor densidade do ar admitido pelo motor. Entretanto, a hélice e as asas sofrem o mesmo efeito de perda de sustentação causado pelo ar menos denso.

A degradação de performance é diretamente proporcional a elevação do aeródromo de partida, temperatura e umidade do ar (medida pela diferença entre temperatura e ponto de orvalho) e inversamente proporcional ao QNH (pressão barométrica reduzida ao nível do mar pelo gradiente vertical da atmosfera padrão, cuja inserção no altímetro é denominada “ajuste de altímetro” e expressa em hectopascais, ou Hpa).

Decolagem

Para possibilitar ao piloto quantificar essa perda de performance, criou-se o conceito “altitude-densidade”. Basicamente, uma determinada condição de temperatura, pressão, elevação e umidade corresponde a uma dada altitude em uma atmosfera padrão.

Por exemplo: uma aeronave decolando de Brasília (3.497 ft acima do nível do mar), em um dia típico de verão (temperatura em 30⁰C, ponto de orvalho 25⁰C, QNH 1003 Hpa) terá performance equivalente à de uma aeronave decolando de um aeródromo a 6.768 ft de elevação em uma atmosfera padrão ISA.

A título de comparação, uma aeronave que precise de 600 metros de pista para decolar de um aeródromo ao nível do mar, em um dia de atmosfera ISA, necessitará de 1.130 metros para decolar de Brasília com 30⁰C. Mesmo que haja pista suficiente, a performance de subida também será limitada, e ela pode não ser capaz de livrar os obstáculos na trajetória de subida. Alguns bimotores leves, em especial os dotados de motores aspirados, simplesmente “não” vão conseguir sustentar um voo monomotor nessas condições.  

Sabendo a altitude-densidade do momento (obtida por meio de um computador de voo, ou de aplicativos), o piloto deve consultar os gráficos e/ou tabelas de performance para saber se sua aeronave terá condições de decolar com um determinado peso em função do comprimento de pista disponível e dos obstáculos na trajetória de subida.

Caso o peso atual esteja acima do peso máximo para aquela altitude-densidade, o piloto não tem alternativa senão desembarcar carga e/ou passageiros, reduzir a quantidade de combustível ou, em último caso, aguardar melhores condições de temperatura e pressão.

KochChart auxilia noscálculos tanto docomprimento depista necessáriopara decolagemcomo da razão desubida em funçãode altitude etemperatura

Se não tiver os valores para uma determinada altitude-densidade, o comandante pode ainda usar a Koch Chart para determinar aproximadamente o aumento do comprimento de pista necessário e a redução em razão de subida em função da elevação da pista e da temperatura. 

Quando operando em altitudes-densidade elevadas (superiores a 5.000 ft), o piloto de uma aeronave com motor aspirado ainda deve fazer uma correção de mistura, empobrecendo-a, de modo a extrair a máxima potência em uma decolagem ou arremetida (cada motor tem uma técnica específica para essa correção, constante em seu manual de operação).

Motores turbocharged não necessitam de correção e devem ser operados com mistura toda rica nessas condições.  

Cruzeiro e pouso  

Mesmo que a decolagem tenha sido bem-sucedida, as altas temperaturas continuarão a afetar sua performance ao longo do voo. Durante a subida, o piloto deverá prestar atenção constante às temperaturas de cabeça de cilindro e de óleo, operando os cowl-flaps, reduzindo sua razão de subida de modo a aumentar a velocidade (para obter mais refrigeração nos cilindros) e, eventualmente, usando menos potência.

Seu teto de serviço será reduzido e, em áreas montanhosas, pode ser que a aeronave não tenha performance para superar os obstáculos, obrigando-o a permanecer VFR ou buscar outra rota com relevo mais baixo.  

Assim como na decolagem, altas temperaturas farão com que sua aeronave precise de mais pista para o pouso (o ar está menos denso e, portanto, uma mesma velocidade indicada na aproximação corresponderá a uma velocidade aerodinâmica maior). Em caso de arremetida, seu gradiente de subida também será reduzido.

Mesmo depois de um pouso seguro, lembre-se de preparar sua aeronave para um eventual pernoite em condições desfavoráveis. Calços, capas e amarração adequada da aeronave podem lhe poupar de surpresas desagradáveis.  

Fadiga e tempestades  

Outra característica meteorológica desta época do ano é a intensa atividade convectiva, especialmente no período da tarde, gerando turbulência que, além de causar desconforto aos seus passageiros, vai aumentar seu nível de fadiga.

Some-se a isso um voo a altitudes elevadas (numa tentativa de escapar da turbulência). Calor e ar seco podem levar a uma eventual desidratação e, sem perceber, sua capacidade de pilotagem e julgamento estarão sensivelmente reduzidas ao final de uma longa jornada.  

Não podemos falar em verão sem mencionar as tempestades. Normalmente encontradas no final da tarde, constituem-se em grave ameaça no interior das nuvens cúmulo-nimbos e cúmulo-torres (towering cumulus) por meio de turbulência severa, raios, granizo e formação de gelo e, também, durante o pouso com windshear, redução de visibilidade na aproximação, rajadas de vento e aquaplanagem por chuva intensa na pista.  

Planejamento  

A melhor defesa para todas essas ameaças é um rigoroso planejamento de voo. Uma análise cuidadosa dos avisos de aeródromo, METAR e TAF do destino e das alternativas, além do SIGMET da região a ser sobrevoada e, se possível, um briefing meteorológico na sala AIS, irão lhe orientar na escolha da rota mais adequada, dos aeródromos de alternativa (e, consequentemente, dos requerimentos de combustível) ou, eventualmente, até mesmo recomendar o adiamento ou cancelamento do voo, caso as condições estejam marginais ou desfavoráveis para sua habilitação/aeronave.  

Programe seus voos para o início do dia, de modo a obter temperaturas mais baixas e menor chance de encontro com tempestades. Durante o voo, acompanhe a evolução das condições meteorológicas do seu destino e alternados (por meio do VOLMET, ATIS, ACARS) e tenha sempre um “plano B” no caso de as condições meteorológicas se deteriorarem.

Um pouso em um aeródromo intermediário enquanto aguarda uma melhoria da meteorologia do destino é muitas vezes mais seguro (e certamente bem mais confortável e econômico) do que prosseguir sob condições desfavoráveis e encarar uma espera em voo ante um aeródromo de destino fechado por mau tempo. 

Planeje uma reserva adicional de combustível: tempestades causadas por nuvens convectivas podem requerer grandes desvios ou esperas, caso o aeródromo de destino esteja abaixo dos mínimos. Uma reserva adicional pode ser a diferença entre um pouso seguro após a tempestade passar, ou uma tentativa desesperada de pousar a qualquer custo, o que pode resultar em incidente ou acidente.  Tempestades localizadas normalmente não duram mais que alguns minutos.  

Calcule a performance de decolagem e pouso considerando todas as variáveis: altas temperaturas irão reduzir a performance e, por conseguinte, o peso máximo de decolagem de sua aeronave. Pode ser necessário reduzir o payload, ou planejar um pouso intermediário de modo a manter reservas adequadas de combustível. 

Saiba usar seu radar meteorológico (caso tenha um). Trata-se de uma ferramenta importante, mas o seu uso seguro exige uma boa capacidade de interpretação, conhecimento do equipamento e de suas limitações técnicas. Lembre-se de que o radar é um instrumento para lhe ajudar a desviar do mau tempo. Ter um radar instalado não garante que você irá atravessar incólume uma tempestade. 

Esteja familiarizado com os procedimentos específicos da sua aeronave. Muitas têm capítulos específicos de “Adverse Weather” em seus manuais, com informações úteis de como proceder em caso de windshear, formação de gelo, voo em turbulência severa, aquaplanagem, operação em aeródromos com elevada altitude-densidade, operação do motor em condições de alta temperatura e assim por diante.  

Por fim, respeite suas limitações e as de sua aeronave. Não tente um voo que resultará em entrada em condições IFR se sua aeronave não está equipada ou você não está habilitado nem tem proficiência para tal. Mesmo aeronaves de grande porte podem ser severamente danificadas por tempestades.

Tenha em mente que seu desgaste físico aumenta (ainda mais em operações single-pilot). Não hesite em dizer NÃO se, no seu julgamento, as condições estiverem abaixo do que você considera seguro.

Paulo Marcelo Soares é comandante de Airbus A320 e instrutor

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