Como o maior fabricante aeronáutico do mundo entrou em uma crise sem precedentes
Por Edmundo Ubiratan Publicado em 21/02/2022, às 14h00
O Boeing 737 MAX voltou a operar apenas em dezembro de 2020, mais de vinte meses após ficar proibido de operar em todo o mundo. Com a retomada das atividades, mesmo com consequências financeiras importantes, a situação está voltando ao normal, mas a sequência de acontecimentos protagonizada pelo maior conglomerado aeroespacial do mundo nos últimos anos já tem um lugar de destaque na linha do tempo da aviação por seu ineditismo.
A Netflix lançou na última sexta-feira (18) o documentário Queda Livre: A Tragédia do Caso Boeing, onde explora a cadeia de eventos que levaram a Boeing a sua maior crise em mais de 100 anos de história.
Em dezembro de 2019, na edição 307, a AERO Magazine publicou a matéria "Boeing em crise - Uma década turbulenta para o maior conglomerado aeroespacial do mundo", que republicamos agora com algumas adaptações nas informações sobre o 737 MAX, que na época ainda estava proibido de voar.
Na história da indústria aeronáutica, nenhum avião além do MAX ficou tanto tempo fora de serviço, nem nos primórdios da era do jato, em meados dos anos 1950, e nenhum fabricante senão a Boeing teve dois aviões proibidos de voar – curiosamente, ambos com projetos que prometiam (e ainda prometem) revolucionar o segmento, tudo isso na mesma década.
A crise começou em janeiro de 2013, quando o 787 Dreamliner, que tinha poucos meses de operação, foi proibido de voar. Na ocasião, falhas nas baterias podiam levar a um incêndio em voo e colocar em risco todos a bordo. A solução foi um redesenho do projeto das baterias e do compartimento de armazenamento nas baias do avião. Em abril do mesmo ano, o Dreamliner, pejorativamente apelidado de “Fireliner” por alguns, voltou a voar. Embora o avião tenha se mostrado um sucesso comercial e um dos aviões mais avançados de todos os tempos, a imagem da Boeing estava chamuscada. Mas o pior estava por vir: a falha no 787 era apenas o primeiro solavanco de uma turbulência que causaria danos severos à reputação tanto da Boeing como de seu principal avião, o 737.
Ao longo de mais de 100 anos, a Boeing se estabeleceu como um dos mais admirados e consagrados fabricantes aeroespaciais do mundo. Enquanto empresas rivais surgiam, fundiam-se e sumiam, a indústria de aviões de Seattle, no noroeste dos Estados Unidos, firmava-se como um nome respeitado por todos, inclusive rivais maiores e mais poderosos.
A Boeing despontou como um importante e confiável fabricante durante a Segunda Guerra, porém, o nome Boeing, iria se consolidar com o lançamento do 707, que, além de ser o primeiro avião a jato de sucesso, encurtou distancias e deu origem às séries 727 e 737, este quase sinônimo de aviação doméstica.
Se o 707 encurtou distancias e encerrou o domínio dos navios no transporte regular de passageiros, um feito e tanto considerando que este era o meio de locomoção da humanidade desde o Egito antigo, o 747, conhecido como Jumbo Jet, um gigante de 70 metros e capacidade para 500 pessoas, massificou o transporte aéreo. Na época, a frase “If not Boeing, I'm not going” se tornou quase um lema para muitos passageiros e empresas aéreas. Mas, em meados da virada do milênio, algo saiu errado.
A chegada dos anos 2000 marcava um período repleto de expectativas para a humanidade, com o início do segundo milênio da era Cristã e debates que iam de carros voadores, passando apocalipses, até o malfadado bug do milênio. Enquanto o mundo refletia sobre a virada do calendário, a Boeing celebrava sucessos inquestionáveis. O fabricante de Seattle havia recém-absorvido a rival McDonnell Douglas, que, por anos, fora sinônimo de aviação civil e militar, mas que havia se tornado um problema maior do que seu legado.
A reorganização da fusão gerou um novo logo, que incorporou o desenho do globo circum-navegado por um avião, e agregou diversos projetos ao portfólio da Boeing, com destaque para o cargueiro militar C-17 Globemaster III e os caças F/A-18 Hornet e F-15 Eagle. Na divisão comercial, a Boeing herdava o azarão MD-11 e a série MD-90, derivada dos DC-9 que faziam algum sucesso no mercado norte-americano, ainda que tivessem sido deixados para trás pelo rival europeu, o atrevido A320 da Airbus.
Ciente da baixa probabilidade de sucesso do MD-11, a Boeing retirou o modelo de linha já em 2000, quando entregou o último avião para a Lufthansa Cargo. E deu continuidade ao programa MD-95, que previa um jato voltado para o mercado doméstico com capacidade na faixa dos 100 assentos. Para padronizar a linha, batizou o avião de 717, a única sequência entre o 707 e 777 que estava disponível. O modelo logo se provou um completo fracasso. Era vendido como Boeing, mas não tinha qualquer familiaridade com nenhum projeto de Seattle, de forma nada elogiosa e menos ainda politicamente correta, o 717 ficou conhecido por muitos como “Menino de Rua”, pois não tinha família.
O apelido não era apenas horrível do ponto de vista da sensibilidade social, mas mostrava que algo de estranho rondava a admirada Boeing. O avião conquistou poucos clientes, já que rivalizava com o então recém-lançado 737-600 em um mercado que se mostrava cada vez menos atraente para esse tipo de aeronave. A faixa de 100 aos 120 assentos estava prestes a ser dominada pelo E-Jet da Embraer, um projeto feito dentro das especificações de mercado do início dos anos 2000. Os rivais A318, 737-600 e 717 se mostravam pouco atraentes. Por azar ou não, a Boeing tinha dois dos três aviões que o mercado definitivamente não queria. No segmento militar, a Boeing perdia o bilionário contrato do Joint Strike Fighter para a Lockheed Martin e seu F-35. O F-22 Raptor, construído justamente em parceria com a Lockheed, estava prestes a ver seu pedido encolher para menos de 190 encomendas.
Enquanto a Boeing tentava convencer o mundo de que o 717 era a melhor opção só abaixo do 737-600, a Airbus confirmava o lançamento do A380, um gigante que prometia transportar mais de mil passageiros na versão A380-900. Na ocasião, parecia bastante óbvio que o mundo deveria adotar o conceito de hub-and-spoke, com grandes aviões voando para grandes aeroportos, que redistribuiriam o tráfego regionalmente. A Boeing havia tentado convencer o mercado disso com seus 747-500 e 747-600, versões alongadas do 747-400. O modelo -600 tinha mais de 80 metros de comprimento, o que claramente se mostrava inviável, visto que o limite para um modelo comercial é de 80 metros.
Não houve interessados nos novos jumbos, o incrível estava acontecendo. O mercado rejeitava não um, mas quatro projetos da Boeing, dos quais dois estavam prontos e sendo comercializados. “A Boeing enxergou rapidamente que o mercado de superjumbos não seria viável. Não por uma visão estratégica, mas pela falta de interesse das empresas quando ofereceu as duas variantes de um 747 Stretched”, analisa Ian Müller, ex-engenheiro da McDonell Douglas. “Apenas perceberam o óbvio e não insistiram no que a Airbus apostava que seria o futuro”.
A aposta foi duramente criticada na época. A resposta da Boeing foi pouco ortodoxa, passando a oferecer ao mercado o Sonic Cruiser, um avião de dimensões e capacidades similares às do 777-200, mas capaz de voar transônico, em uma faixa de velocidade muito próxima à do som, que permitia reduzir em ao menos duas horas um voo de 12 horas, só que com um consumo maior do que o de qualquer avião subsônico. Mais uma ironia, o Concorde era retirado de operação justamente por conta de seu elevado consumo e o então recém-lançado 777-300ER começava a absorver os pedidos do 747-400 por ser mais econômico, mesmo tendo uma capacidade ligeiramente inferior. O mundo dava sinais de que também não tinha qualquer interesse no Sonic Cruiser. “Aparentemente, nem a Boeing acreditava no Sonic Cruiser, ela nunca especificou o avião. O máximo que fez foi discutir com potenciais clientes o programa e apresentou algumas maquetes em eventos aeronáuticos do mundo”, lembra Müller.
Fato é que o Sonic Cruiser foi abandonado sem grandes alardes enquanto a Boeing mudava sua sede de Seattle para Chicago, posicionando-se mais próxima dos centros de negócios do Estados Unidos. Além de facilitar a visita de executivos à sua sede, a empresa alterava sua estratégia de mercado no segmento comercial. O 717 chegava ao fim em 2005, quando foi anunciado que seu programa seria encerrado, menos de cinco anos após o lançamento. Ainda mais surpreendente, o 757, um bimotor de fuselagem estreita e queridinho das empresas aéreas norte-americanas, especialmente por sua capacidade de voar longo curso com custos próximos aos de um 737 Classic, com capacidade próxima de um 767-200, também seria retirado de linha. A justificativa era que o já veterano 757 rivalizava com o recém-lançado 737-900, que tinha a mesma capacidade de assentos, nada mais.
Sem um rival para o A380, a Boeing apostou em um avião de fuselagem larga intermediário entre o 767-300 e o 777-200. Nascia o 787 Dreamliner. O modelo, em poucas semanas, acumulava mais de 500 pedidos e, em meses, batia a marca dos 1.000 aviões encomendados. O avião era a prova de que a Boeing estava viva e era capaz de oferecer ao mercado exatamente o que ele desejava. O problema foi tentar inovar demais, não apenas em termos de engenharia, mas em logística. A Boeing seguiu a cartilha da indústria ao terceirizar o máximo de sua produção, uma receita que havia dado certo para a Airbus.
O problema foi que muitos parceiros não tinham condições de atender à demanda e às exigências de um projeto como o do 787. Como resultado houve uma sequência de atrasos no cronograma. O avião realizou o rollout em 2007, num celebrado 8 de julho (7/8/07, no formato americano), mas havia apenas a estrutura básica – sistemas e certificações ainda não estavam prontos.
Uma greve tomou conta da Boeing por semanas, atrasando ainda mais o cronograma. O primeiro voo ocorreu apenas em dezembro de 2009, após uma série de problemas, incluindo falhas estruturais descobertas ao longo do desenvolvimento. A primeira operação comercial ocorreu em agosto de 2011, mas logo as baterias se tornaram um grave problema e a Boeing viu pela primeira vez um de seus aviões ser proibido de voar por quase quatro meses.
Nesse meio tempo, a Boeing lançou o 747-8, que obteve relativo sucesso na versão cargueira, mas, conforme o previsto, obteve apenas encomendas pontuais na versão de passageiros, tendo como principal cliente a Lufthansa com somente 19 encomendas firmes. Ao mesmo tempo, a Airbus respondia ao programa CSeries da Bombardier lançando a primeira modernização da família A320, que recebeu novos motores e alguns refinamentos aerodinâmicos, dando origem ao A320neo. Se o 787 foi um sucesso, o A320neo foi um fenômeno de vendas.
O modelo original já mostrava que o veterano 737 não teria mais fôlego para disputar a corrida, quando a Airbus levava seis de cada dez pedidos do segmento. O A320neo prometia ampliar essa diferença para sete, quem sabe oito pedidos para cada dez. A Boeing tardiamente respondeu com o 737 MAX, que, rapidamente, obteve uma resposta equilibrada do mercado, mantendo a divisão de quase meio a meio nas encomendas.
Só que havia uma questão importante. O A320 enfrentava sua primeira modernização enquanto o 737 encarava a quarta cirurgia e o 737 Next Generation parecia ser o limite do projeto dos anos 1960. Mudanças no centro de gravidade, nova aviônica, redesenho dos estabilizadores horizontais, mudanças na posição dos motores e novo trem de pouso no 737 MAX 10 criaram a necessidade de avançar na automação do avião. O objetivo era apenas manter o controle da aeronave, surgindo, assim, o famoso dispositivo designado pela sigla MCAS, que se tornou o maior pesadelo da Boeing em mais de 100 anos.
O Maneuvering Characteristics Augmentation System (ou Sistema de Aumento de Características de Manobra) foi desenvolvido especificamente para o 737 MAX como uma forma simplificada de corrigir a tendência de o avião estolar em determinadas condições por causa do posicionamento dos motores nas asas, mais altos e distantes da fuselagem. A explicação tão simplificada foi também utilizada pela Boeing, que suprimiu qualquer informação detalhada do sistema dos manuais. Oficialmente, a Boeing afirmava que o software “não controla a aeronave em voos normais”, mas, sim, “melhora parte de seu comportamento em condições operacionais não normais”.
O sistema não chega a ser complexo nem muito diferente do que um piloto de linha aérea espera encontrar. Segundo especialistas em segurança de voo, o principal problema foi como a Boeing apresentou o sistema durante a fase de treinamento, oferecida como uma simples atualização dos pilotos para as pontuais e quase inexistentes diferenças de operação entre o 737NG e o 737MAX. O mergulho de um 737MAX 8 da Lion Air na costa da Indonésia acendeu a luz amarela para o sistema. A resposta da Boeing continuou vaga e discreta, pelo menos até um 737 MAX 8 da Ethiopian Airlines cair logo após a decolagem, menos de seis meses após o desastre com o avião da Lion Air.
Não era apenas o Master Caution que acendia em Chicago, mas, sim, todos os avisos de emergência. Não demorou até que o processo de projeto e construção do 737MAX se tornasse suspeito. Se ter seu principal produto na mira das autoridades do mundo inteiro não fosse algo ruim o bastante, a FAA e diversas outras agências proibiram o modelo de voar. Paralelamente, investigavam a Boeing. Resultado, a empresa virava manchete por menor que fosse o motivo, e o valor de suas ações despencava a cada novo revés.
As coisas pareciam não ter como piorar quando uma falha estrutural grave acometeu alguns 737NG com menos de trinta mil ciclos, forçando uma convocação para manutenção imediata das aeronaves envolvidas. Em seguida, os KC-46, os novos aviões-tanque da força aérea dos Estados Unidos, que acumularam atrasos e custos cada vez mais elevados, foram impedidos de voar pelos militares norte-americanos. Falhas no projeto das redes e sistemas de contenção de cargas, aliadas à montagem mal realizada, com diversos componentes e fuligens soltas pela cabine, tornaram-se alvo de inquérito no Pentágono.
Como se não fosse suficiente, dias depois, o teste estático com uma célula do 777-9, o novo flagship da Boeing, apresentou uma falha catastrófica, literalmente explodindo parte da seção traseira. Àquela altura, uma espécie de CPI era instaurada no Congresso dos Estados Unidos para avaliar a Boeing. Sinônimo de aviação, o fabricante se tornou alvo de um inquérito governamental. E a FAA foi acusada de conceder a certificação dos modelos da Boeing sem realizar uma série de auditorias e analises, confiando apenas nos dados recebidos da fabricante.
As empresas aéreas que esperavam retomar os voos com o 737MAX em julho de 2019 passaram a trabalhar com agosto, setembro, outubro, janeiro de 2020, logo passaram a acreditar em uma retomada dos voos regulares em março, quando o 737MAX teria cumprido um ano sem poder voar. O que ninguém imaginava é que a FAA só iria reemitir o certificado de tipo do 737 MAX em dezembro de 2020, quase dois anos depois da proibição global. Nunca um avião ficou tanto tempo no solo. Mais de 400 aeronaves prontas não puderam ser entregues aos clientes da Boeing e alguns países só permitiram a retomada dos voos com o 737 MAX em meados de 2021.
A Boeing já gastou bilhões de dólares em indenizações para as empresas aéreas, como forma de compensar as perdas milionárias que cada companhia aérea vem acumulando com os 737MAX parados. O custo foi maior do que o valor oferecido pela joint venture com a Embraer.
Resta saber agora qual será impacto do prejuízo financeiro nos negócios da Boeing e se o governo norte-americano vai intervir de alguma maneira. Do ponto de vista operacional, pilotos ouvidos por AERO garantem que a retomada dos voos deve devolver o protagonismo à aeronave, a mais vendida da história, de modo natural. Em relação aos demais programas, sobretudo o 777X, prometem seguir com seus altos e baixos como quaisquer outros. A grande dúvida, porém, é saber o que a Boeing está fazendo para evitar de se colocar novamente em uma situação como a que viveu nesta segunda década do século.