Duas décadas de pesquisas e testes colocaram as aeronaves movidas a energia solar no ar. Agora, os fabricantes se preparam para conquistar o mercado
O e-Genius é resultado da colaboração de uma impressionante equipe de gigantes, que inclui a Airbus e a Universidade de Stuttgart, na Alemanha |
Os aviões elétricos decolam da ficção científica para a realidade. Os pioneiros desse novo nicho de mercado já comercializam em seus países de origem modelos leves, com capacidade para até duas pessoas, e pretendem, em médio prazo, vencer as restrições regulatórias entre fronteiras para exportar as novidades. "Há dois anos, pensar em voar entre 100 e 200 milhas [185 e 370 quilômetros] por hora em um avião elétrico era pura ficção científica", atestou Jack Langelaan, chefe da equipe Pipistrel, em outubro, quando a companhia venceu o prêmio Green Flight Challenge 2011, promovido pela NASA, com o Taurus G4, que usa energia solar para alimentar sua bateria.
Pela primeira vez, durante o Green Flight, o mundo pôde assistir a uma demonstração de voos cross-country sem a emissão de gases poluentes. Os organizadores da competição a consideraram "um marco histórico". O concurso recebeu inscrições de aeronaves com motores a combustão à base de biocombustível, aviões elétricos e equipamentos com motorização híbrida. A NASA, com patrocínio do Google, desafiou os fabricantes a obter a maior eficiência energética possível, permanecer o máximo de tempo em voo e alcançar as maiores distâncias com a menor quantidade de combustível. Os dois primeiros vencedores foram elétricos, com os melhores desempenhos em todos os quesitos (veja box). O Taurus G4 garantiu para sua equipe o prêmio de US$ 1,65 milhão, o maior da aviação até hoje.
Inspirada no North American Twin Mustang e no mais recente Scaled Composites White Knight Two, a aeronave possui dois cockpits independentes e quatro assentos, interligados pelo motor na base central entre as duas unidades. O motor mostrou uma eficiência impressionante: o Taurus G4 percorreu 200 milhas e gastou o equivalente a menos de 2 litros de combustível por passageiro. A aeronave carrega baterias de 499 quilos de polímero de lítio, abastecidas com energia solar.
Para o CEO da Pipistrel, Ivo Boscarol, as aeronaves movidas por motores elétricos ainda precisam de aperfeiçoamentos. "O peso das baterias continua alto enquanto o número de ciclos de carga (vida útil) se mantém relativamente baixo", afirma Boscarol. Segundo ele, a substituição completa do motor aeronáutico clássico pelo elétrico ainda não é possível. "A aplicação mais plausível de motor elétrico de propulsão aponta para planadores motorizados", pondera o executivo. Para a NASA, no entanto, o resultado do concurso evidencia o poder dos elétricos e "o início de uma nova era na eficiência da aviação". Foi a primeira vez também que aviões elétricos em escala normal participaram da competição, apesar de já estarem presentes no dia a dia. O modelo anterior ao Taurus G4, o Taurus Electro G2, está à venda na Eslovênia e na França, a um preço relativamente acessível.
O custo para produzir um avião elétrico, em média, é menor que o valor de venda de um automóvel importado no Brasil. Um dos entraves para conquistar o mercado é burocrático, afirma o esloveno Boscarol, que tem representação no Rio de Janeiro. "O principal problema é que a FAA (Federal Aviation Administration) ainda não aprovou os padrões da ASTM International (American Society for Testing and Materials) para aeronaves elétricas. Por isso não podemos vender aviões aos Estados Unidos ou a qualquer outro país que adote as mesmas regras", explica. "Até o momento, o único lugar em que podemos comercializar nossos aviões elétricos é na França, pois o país adaptou suas leis para aceitar os elétricos, mas o processo durou dois anos. Os clientes que estavam esperando tanto tempo pela decisão acabaram cancelando a compra durante esse intervalo. O mesmo aconteceu com outros países. Apesar de termos recebido vários pedidos, não podemos vendê-lo ainda", lamenta. Ele diz que a empresa não recebeu encomendas de clientes brasileiros.
Oficialmente, o Brasil não possui projetos de montagem de aeronaves elétricas. É o que informa o ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica) e a Embraer. Mas há informações não oficiais de que o ITA vem promovendo testes de motores elétricos para a propulsão de aviões. No mercado internacional, a Boeing lidera o projeto FCD (Fuel Cell Demonstrator), em parceria com empresas de energia, motores, baterias e testes de voo, para colocar no ar uma aeronave elétrica leve com capacidade para duas pessoas. Os primeiros testes de voo aconteceram em março de 2008. O FCD recebe energia de células de hidrogênio, um forte candidato entre as fontes de energias renováveis.
Elektra One faturou o prêmio Lindbergh Prize for Electric Aircraft - Vision Award |
Células solares
O primeiro resultado prático da pesquisa com motor elétrico abastecido pela energia solar, em aviões, ocorreu no início dos anos 1970, com o lançamento da AstroFlight Sunrise, uma pequena aeronave não tripulada de 12 quilos. O marco oficial da conquista, porém, deu-se com o Solar Riser Mauro, tripulado pelo próprio construtor, Larry Mauro, em abril de 1979. Ele se inspirou no UFM Easy Rise, uma espécie de asa delta biplana, dos Estados Unidos. A aeronave utilizava células fotovoltaicas, que captavam a energia solar e produziam 350 watts a 30 volts. Elas carregavam uma bateria de helicóptero Hughes 500 que, por sua vez, era ligada ao motor elétrico da aeronave. O sistema era capaz de alimentar o motor por no máximo cinco minutos, após uma carga de uma hora e meia, o que o permitia alcançar uma altitude de planeio.
A aviação europeia estimula tecnologias menos poluentes com o programa clean sky
Outras conquistas na pesquisa experimental marcaram também a década de 80, embora a grande propulsão no desenvolvimento das aeronaves elétricas, completamente à base de energia solar, viria a se consolidar nos anos seguintes. A virada daquela década foi do Sunseeker que, em 1990, conseguiu cruzar os Estados Unidos com o engenheiro aeronáutico Eric Raymond no comando. Ele usou uma pequena bateria carregada por células solares nas asas, que movimentavam uma hélice para a decolagem. Chegou a voar usando apenas energia solar direta. Conseguiu, ainda, aproveitar as condições favoráveis de captação para subir.
Raymond é hoje um dos grandes nomes quando o assunto é avião elétrico. O piloto norte-americano esteve presente no Green Flight Challenge. Conquistou a segunda posição com o e-Genius, de motor elétrico de 60 kW e uma hélice de amplo diâmetro. O Genius é resultado da colaboração de uma impressionante equipe de gigantes, que inclui a Airbus e a Universidade de Stuttgart, na Alemanha. A aeronave é registrada, atende às normas de inspeção da FAA e está em voo atualmente.
Em 2008, a aviação europeia passou a estimular o desenvolvimento de novas tecnologias para motores menos poluentes ao lançar o programa Clean Sky (Céu Limpo). O projeto reúne 86 organizações de 16 países e 54 empresas, com a participação de Airbus, Dassault, AgustaWestland, Eurocopter, entre outras, além de 15 centros de investigação e 17 universidades. O objetivo é reduzir em 50% a produção de dióxido de carbono na aviação civil até 2020. Dessa perspectiva, os elétricos ganham ainda mais alguns pontos. Eles têm um motor eficiente, são mais leves, emitem menos poluentes e cooperam para a redução de CO2 por quilômetro por passageiro.
Taurus G4: vencedor do prêmio Green Flight, de US$ 1,65 milhão, concedido pela NASA |
300 quilos
A empresa alemã PC-AERO, de engenharia e certificação de aeronaves, é outra companhia que entrou na corrida para o desenvolvimento de aviões elétricos. Em setembro, o Elektra One faturou o prêmio Lindbergh Prize for Electric Aircraft - Vision Award. A aeronave foi criada pelo engenheiro Calin Gologan, fundador da empresa. O Elektra One combina longo alcance (mais de 400 quilômetros), autonomia (mais de quatro horas de voo), baixo custo (aproximadamente 35 euros por hora), emissão zero de CO2 e baixo ruído (por volta de 50 decibéis, o que é cinco vezes menos do que um avião comum produz na Alemanha, graças à engenharia elétrica, que produz menos barulho, e à hélice).
É uma aeronave leve e o comando não muda para o piloto. Gologan diz que a fórmula que representa essa leveza é o que eles chamam de 100 + 100 + 100, o que se traduz nessa distribuição de peso: 100 quilogramas do Elektra + 100 quilogramas de bateria para 4 horas de vôo + 100 quilogramas do piloto, totalizando 300 quilogramas. Quanto mais pesada uma aeronave, maior o consumo de combustível e, consequentemente, maiores índices de emissão de poluentes na atmosfera. A PC-AERO deve disponibilizar a aeronave para venda, juntamente com o sistema de hangar com reabastecimento de energia, por 100 mil euros. Por enquanto, o Elektra One é apenas um protótipo, mas já estão sendo realizados alguns testes de voo com uma autorização preliminar. A certificação deve ser concedida neste mês, na Alemanha.
Gologan explica que, para alcançar os benefícios do Elektra One, foram necessários três anos entre a pesquisa e o desenvolvimento por completo do projeto, envolvendo grandes engenheiros de diferentes países em sua fabricação. O sistema de cobertura do hangar provê energia para recarregar a bateria da aeronave. "São apenas 20 metros quadrados de teto solar capazes de gerar energia suficiente para voar 300 horas por ano. É claro que esse resultado depende da sua localização global. No Brasil, por exemplo, acredito que consiga produzir ainda mais energia", avalia o engenheiro. O sistema do Elektra ainda permite que o usuário não precise trocar de bateria. Ele a recarrega por duas a três horas no hangar, onde a energia é produzida.
A última novidade na aeronave é a possibilidade de instalar células solares na superfície das asas para que recupere energia diretamente do sol. "O Elektra One Solar, com o sistema extra de células solares, exigirá ainda menos energia do que o básico. Dessa forma será possível obter praticamente 80% da energia que precisamos para realizar um voo de baixa velocidade", afirma Gologan. Ele tem planos para produzir um Elektra com dois ou quatro lugares.
Embora a tecnologia se restrinja a aeronaves pequenas até o momento, o criador do Elektra One vislumbra sua fórmula sendo aplicada na aviação comercial um dia. Gologan ressalta a importância da fabricação rápida dessas aeronaves e a realização de um pré-design, pois o desenvolvimento leva muito tempo. "Acredito que o que estamos fazendo agora é uma ponte para a aviação comercial do futuro. No ponto em que estamos, poderemos alcançar grandes passos na tecnologia, pois temos muito menos trabalho a desenvolver", avalia. Para a empresa, o próximo passo é fabricar um táxi executivo dentro de cinco anos. Seria um avião certificado para quatro ou seis passageiros. Pensar em linhas aéreas de transporte comercial, nessa etapa, pode parecer insensato, mas não para os pesquisadores. Eles calculam que seria possível desenvolver baterias para curto alcance em mais ou menos 15 anos e, para longas distâncias, em 20 anos. De uma forma ou de outra, o futuro está apenas no início.
Andrea Polimeno
Publicado em 08/12/2011, às 09h01 - Atualizado em 27/07/2013, às 18h45
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