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Muito além do tri

Há mais de 100 anos a Argentina ficava mais perto do Brasil

O reide Rio – Buenos Aires foi feito há mais de 100 anos e Edu Chaves fez o Brasil ficar mais perto da Argentina


Edu Chaves com Robert Thierry, no campo de Guapira, em frente ao avião São Paulo
Edu Chaves com Robert Thierry, no campo de Guapira, em frente ao avião São Paulo

Com o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), as incursões pelo ar entre localidades distantes entre si passaram a ser internacionais. Tinha início a era dos chamados reides aéreos.

Na América do Sul, o grande desafio era cumprir o voo de Buenos Aires ao Rio de Janeiro (ou inverso), perfazendo 1.966 quilômetros. Tentativas de ligar por via aérea as duas maiores cidades sul-americanas da época começaram a ser feitas em 1919.

Incursões frustradas

Em 13 de setembro daquele ano, o oficial italiano Antonio Locatelli (1895-1936) decolou de Buenos Aires em um veloz biplano militar, o Ansalvo SVA-5, muito utilizado na Primeira Guerra em missões de reconhecimento e bombardeiro.

Com o equipamento de 220 cavalos de potência, autonomia de seis horas, o aviador fez escalas em San Roman, no Departamento de Canelones (Uruguai), e em Canoas, no Rio Grande do Sul (Brasil), antes de aterrissar em Porto Alegre, a capital gaúcha. Mas, na sequência do reide, já a caminho de Santos, no litoral paulista, uma pane de motor o fez descer em Tijucas, em Santa Catarina. Devido à natureza pantanosa do terreno, o avião capotou e ficou irreparavelmente avariado, além de catapultar o piloto, que sobreviveu ao desastre.

Oficial italiano Antonio Locatelli capotou com seu veloz biplano Ansalvo SVA-5, em Tijucas (SC
Oficial italiano Antonio Locatelli capotou com seu veloz biplano Ansalvo SVA-5, em Tijucas, SC

Nova tentativa se deu em 10 de agosto de 1920. O tenente brasileiro Aliatar de Araújo Martins (1893-1920) e o inglês John Pinder (1898-1920), este considerado um ás da Primeira Guerra, partiram do Rio de Janeiro no hidroplano italiano Macchi M9, de 350 cavalos de potência.

Eles chegaram a fazer escalas em Santos, em São Paulo, e em Paranaguá, no Paraná, antes de sofrerem uma pane, em 17 de agosto, que os obrigou a aterrissar na Lagoa dos Esteves, em Içara, Santa Catarina. Pinder tentou salvar Martins, que havia caído acidentalmente na água, selando o destino dos expedicionários.

Já o piloto Virginius Brito de Lamare (1883-1956) e o mecânico Antônio da Silva Júnior, brasileiros, tentaram o reide em 6 de outubro de 1920, com uma versão aprimorada do mesmo hidroplano, o M9bis.

Saíram da Escola de Aviação Naval, na capital fluminense, e pousaram sucessivamente em Santos (SP), Paranaguá (PR), Ilha de Anhatomirim (SC), Florianópolis (SC), Lagoa dos Patos (RS), Porto Alegre (RS) e Rio Grande (RS). No dia 30 de outubro, quando o M9bis estava sendo içado por um guindaste para o cais do porto de Rio Grande, o cabo de aço se partiu e o avião caiu de três de altura, espatifando-se.

A vez de Edu Chaves

Chegou então a vez do já consagrado piloto paulistano Eduardo Pacheco e Chaves (1887-1975), ganhador de diversos prêmios aeronáuticos no Brasil e no exterior.

Edu Chaves, como era mais conhecido, se tornou nacionalmente famoso ao se tornar, em 1912, não só o primeiro brasileiro a pilotar um avião no Brasil, como também o pioneiro do reide Santos-São Paulo, de 40 quilômetros.

Ele tentaria completar o reide Rio – Buenos Aires juntamente com o mecânico francês Robert Thierry, mas teve problemas antes mesmo de começar a prova: em 4 de novembro de 1920, ao decolar com um Caudron de São Paulo para ir ao Rio de Janeiro iniciar o reide, uma rajada de vento atingiu o avião, que capotou e ficou inutilizável.

No dia 12 de novembro, Chaves se encontrou com o governador do estado de São Paulo, Washington Luís (1869-1957), e lhe pediu emprestado um dos aeroplanos da Força Pública.

Curtiss Oriole
O Oriole foi o primeiro avião da Curtiss projetado para o transporte de passageiros

O governador aquiesceu e o aviador escolheu, no campo da escola de aviação da dita força, um Curtiss Oriole de 150 cavalos de potência, com onze metros de envergadura, nove metros de comprimento e 22 metros quadrados de superfície alar.

Após uma limpeza no motor, experimentou o avião no dia 27 de novembro, com o maior êxito, conquanto jamais houvesse pilotado esse tipo de aparelho. Porém, havia concorrência à vista.

A disputa com Los Hermanos

O piloto argentino Eduardo Miguel Hearne (1895-1962) deixou Buenos Aires a bordo de um Bristol U acompanhado do mecânico Camillo Brezzi em 19 de dezembro de 1920. Os dois aterrissaram primeiramente em Passo de los Libres, na fronteira entre a Argentina e o Brasil.

Depois, já em território brasileiro, fez escalas em Cacequi (RS), Passo Fundo (RS), Ponta Grossa (PR) e Sorocaba (SP), onde baixaram no campo de Itinga, à espera da dissipação de um nevoeiro.

Após parada de duas horas, tentaram decolar comandando o Bristol entre os cupinzeiros do terreno, existentes ali em grande quantidade. Porém, ao desviarem de um dos montículos, a cauda do aeroplano bateu em outro e a fuselagem se rompeu. Hearne e Brezzi trabalharam dois dias e uma noite na reparação dos estragos.

No dia 25 de dezembro, às 9h25, eles decolaram com a intenção de alcançar o Rio de Janeiro, mas, quando já estavam a 20 metros de altura, a fuselagem se rompeu novamente e o avião caiu com violência, ficando semidestruído. A despeito do choque brutal, piloto e mecânico se salvaram.

Edu Chavez continua na disputa

Na mesma data – o Natal de 1920 –, já no Rio de Janeiro, Edu Chaves reiniciou, com Thierry, o perigoso reide. Eles partiram de madrugada do Campo dos Afonsos para São Paulo, onde aterrissaram pela manhã.

Edu Chaves com militares no Campos dos Afono
Edu Chaves com militares no Campos dos Afonsos, no Rio de Janeiro

No dia 26, voaram para Guaratuba, no Paraná, descendo em uma praia. Como a maré estava alta, quase não restava lugar para pousar e por um triz o aparelho não se estragou. No trecho de Guaratuba até Porto Alegre, cumprido no dia 27, a dupla lutou contra os ventos da região, que sopravam em sentido contrário. Já a viagem de Porto Alegre a Montevidéu, realizada no dia 28, durou quase seis horas e foi inteiramente orientada pela bússola.

No trecho final, de Montevidéu a Buenos Aires, levado a cabo no dia 29, os aeronautas cometeram um erro de navegação e pousaram no aeródromo de San Fernando, onde ninguém os esperava – o plano era pousar em Palomar. A dupla ficou ali menos de três minutos, pois logo o sargento Barrafalde, da Escola Militar de Aviação, que os avistara evoluindo na direção da costa do Rio Prata, apareceu em um aeroplano e os orientou a seguirem-no até o aeródromo correto, o que fizeram de prontidão.

Imediatamente após a aterrissagem dos dois aviões em Palomar, uma enorme multidão que aguardava a chegada de Edu Chaves tomou o campo de aviação. Em instantes, aglomeravam-se em torno do piloto brasileiro o comandante, os diretores e diversos oficiais da Escola Militar de Aviação, além de pilotos civis, do pessoal da legação brasileira e de muitos jornalistas, repórteres e fotógrafos. Abraços, cumprimentos e felicitações foram distribuídos em profusão aos heróis da travessia.

O presidente do aeroclube argentino, Alberto Mascias, pediu um “urra” ao piloto brasileiro, proferido de imediato. Durante o almoço servido no Cassino de Oficiais da Escola de Aviação, ocorreram novas aclamações e discursos cordiais de confraternidade argentino-brasileira. Em seguida, a convite do aeroclube local, Edu Chaves foi descansar no Plaza Hotel.

A realização do reide Rio – Buenos Aires era a maior aspiração de todos os aviadores sul-americanos e fora enfim completado, com apenas quatro escalas (São Paulo, Guaratuba, Porto Alegre e Montevidéu)!

Edu Chaves
A revista “A Cigarra” dedicada à vitória do brasileiro no reide Rio – Buenos Aires, em Janeiro de 1921

Logo que chegou ao Brasil a notícia da vitória de Edu Chaves, as pessoas que acompanhavam o reide pelas comunicações do fio telegráfico iniciaram grandes manifestações de regozijo ao destemido brasileiro, embandeirando as fachadas dos edifícios, soltando rojões, percorrendo as ruas em passeata e dando vivas a Edu Chaves e ao Brasil.

No Rio de Janeiro, na Câmara dos Deputados, o político João Pedro da Veiga Miranda (1881-1936) se achava na tribuna, discutindo um projeto, quando o colega Arthur Palmeira Ripper se aproximou, dizendo-lhe ao ouvido que Edu Chaves acabara de aterrissar em Buenos Aires.

No mesmo instante, o orador interrompeu as considerações que vinha fazendo e exclamou: “Perdoe-me, Vossa Excelência Senhor Presidente, se quebro neste momento o fio da minha argumentação. Um impulso irresistível, um ímpeto dos mais veementes acaba de me agitar a alma, alvoroçando-a na maior alegria, exalçando-a nos transportes máximos dos seus sentimentos. Edu Chaves acaba de chegar à capital portenha”.

Ouviram-se bravos, palmas prolongadas e gritos entusiásticos. Toda a Câmara se ergueu, em um júbilo unânime. Logo que os jornais cariocas afixaram boletins às portas das redações noticiando a chegada de Edu Chaves a Buenos Aires, a boa nova começou a ser espalhada rapidamente, sendo em pouco tempo largamente conhecida.

* Texto adaptado do originalmente
publicado na edição 320
de AERO Magazine

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Por Rodrigo Moura Visoni*
Publicado em 20/12/2022, às 00h00


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