O uso de peças piratas representa um perigo que ninguém vê e só se descobre quando há um acidente
Por Antonio José Carneiro Campos Publicado em 19/09/2023, às 16h00
Para definir o desempenho esperado de um determinado componente, ou sistema, os engenheiros que trabalham no projeto e na fabricação de aeronaves precisam conhecer os parâmetros de resistência dos materiais utilizados.
Neste cenário, as variáveis são infinitas e, em grande parte, impossíveis de serem avaliadas sem uma série de ensaios e análises científicas complexas, que vão, em última instância, determinar se uma peça ou componente irá resistir aos esforços previstos, durante toda a sua vida operacional. Por outro lado, na grande maioria dos casos, não é possível identificar se uma peça atende ou não às especificações de projeto sem realizar ensaios que irão torná-la inservível.
Na prática, a rastreabilidade de componentes e sistemas utilizados em uma aeronave se revela um fator primordial na hora da manutenção, não só por assegurar o desempenho de projeto, mas, principalmente, para garantir a segurança de sua operação.
O termo “bogus parts” tem sido utilizado para caracterizar peças piratas desde o período subsequente à Segunda Guerra Mundial, quando a quantidade de peças sobressalentes que sobraram do esforço de combate inundou o mercado aeronáutico mundial, com preços extremamente atrativos.
Entretanto, as peças piratas não se restringem a itens sobressalentes abundantes. Existem desde cópias falsificadas de peças originais até peças que foram produzidas segundo as especificações do fabricante, mas cuja rastreabilidade não é mais possível, por ausência de documentação adequada.
Por essa razão, as autoridades aeronáuticas têm usado cada vez mais os termos “peças aprovadas” ou “peças não aprovadas” para identificar quais delas podem ou não ser instaladas em uma aeronave. Também são consideradas peças não aprovadas aquelas com validade vencida, seja por tempo de estocagem ou de utilização, ou cujos registros não permitam identificar ao certo se esse tempo limite foi ou não ultrapassado.
Em resumo, mesmo para os especialistas em manutenção aeronáutica, nem sempre é fácil identificar se uma peça é aprovada ou não, sem que se tenha todos os dados que permitam rastrear a sua origem.
O primeiro acidente que teve entre os fatores contribuintes a utilização de peças não aprovadas ocorreu, segundo consta, na costa da Dinamarca, em setembro de 1989. Um bimotor turbo-hélice Convair 380/540, com cinquenta funcionários de uma empresa de construção naval e uma tripulação de cinco pessoas, perdeu o controle e caiu no Mar do Norte, mergulhando de uma altitude de 22 mil pés sem deixar qualquer sobrevivente.
A investigação realizada por autoridades norueguesas concluiu que os elementos de fixação da deriva da aeronave não atendiam às especificações do fabricante, tendo se soltado com a vibração. Os componentes que vinham sofrendo um processo de fadiga acabaram por levar a uma falha da empenagem da aeronave e impedir que os pilotos tivessem qualquer possibilidade de evitar o acidente. Cabe ressaltar que o valor da peça mais cara, que acabou por causar a perda de 55 vidas, não chegava a 150 dólares.
É claro que, mesmo antes da ocorrência desse acidente, as autoridades aeronáuticas sempre agiram de forma a coibir o uso desses componentes. Entretanto, o problema é mais complicado do que parece.
Mesmo empresas aéreas sérias e comprometidas com a manutenção de suas aeronaves já foram vítimas de esquemas milionários de distribuição de peças aeronáuticas não aprovadas, como no caso de um esquema descoberto na Itália, em 2001.
Segundo artigo publicado no The Guardian, em janeiro de 2002, um esquema envolvendo a venda de peças reaproveitadas de aeronaves comerciais condenadas, cujos documentos foram forjados para serem vendidas como peças novas, chegaram a ser instaladas em mais de 1.200 aeronaves, distribuídas em 167 países. As investigações das autoridades levaram a suspeitas de que pelo menos cinco acidentes poderiam estar ligados a peças fornecidas por esse esquema ilícito, entre os quais a queda de um Airbus da United Airlines, em Nova York, com 265 fatalidades.
Até o Departamento de Defesa Americano já foi vítima de componentes eletrônicos falsificados, oriundos da China e instalados em equipamentos utilizados em sua frota de aeronaves C-130J, em helicópteros utilizados em Operações Especiais e na aeronave Poseidon operada pela Navy em missões de vigilância, segundo reportagem publicada pela agência de notícias Reuters, em maio de 2012.
Mais recentemente, em junho de 2019, a mesma agência Reuters noticiou que as aeronaves Boeing 737 NG e Max estariam com problemas nos trilhos de atuação dos slats, por discrepâncias na fabricação destas peças, o que ensejaria um recall para substituição destes itens em mais de 300 aeronaves da frota, com um enorme prejuízo para o fabricante.
No Brasil, os registros mais recentes do que é conhecido como Manutenção Aeronáutica Clandestina (MACA) ocorreram em 2020, no Mato Grosso do Sul, e, em 2023, em Goiânia. Embora as notícias veiculadas à época não tenham relacionado as empresas ao uso de bogus parts, o tipo de atividade que desempenhavam, certamente, utilizava peças piratas ou era uma fonte potencial destes componentes.
Outra fonte de peças não aprovadas, que vem sendo bastante fiscalizada e controlada pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e pela Receita Federal do Brasil, é a importação de aeronaves e de componentes usados ou descartados por oficinas no exterior para serem recuperados por oficinas brasileiras e revendidas como peças aprovadas.
A reutilização de peças de uma aeronave em outra é uma atividade possível, desde que sejam respeitados os procedimentos adequados para a sua recuperação e de que haja rastreabilidade de seu histórico operacional e de manutenção. Além disso, as oficinas que realizam o trabalho de recuperação devem não apenas ter a certificação da Anac para prestar esse tipo de serviço com, também, seguir as orientações do fabricante das peças e dos componentes recuperados.
Embora seja dever das autoridades fiscalizar e combater o uso de peças piratas em aeronaves, é preciso aceitar que nunca será possível impedir que esste mercado prospere, sem que haja a conscientização do setor de manutenção (MRO) nacional e dos diversos operadores, de aeronaves tanto comerciais como de uso privado.
Nesse sentido, a Anac acaba de disponibilizar uma nova página em seu site na internet, onde explica detalhadamente o que se pode fazer para prevenir os enormes prejuízos causados pela aplicação de peças piratas em aeronaves, além de divulgar os relatos de peças suspeitas, de maneira a alertar os regulados quanto a sua utilização.
Tais informações estão detalhadas mais tecnicamente na Instrução Suplementar 43.001, da Anac, que trata de “Elegibilidade, Qualidade e Identificação de Peças de Reposição Aeronáuticas”. Essa publicação é voltada aos profissionais e empresas que trabalham na manutenção aeronáutica e atualmente está em processo de atualização, para torná-la mais clara e de mais fácil utilização pelos mecânicos e oficinas certificadas.
O uso de peças não aprovadas em uma aeronave é um tipo de risco que não pode ser identificado facilmente. Por essa razão, a Anac encoraja que, caso alguém tenha suspeita sobre a irregularidade de uma peça, relate esse fato para a agência, permitindo que o assunto seja investigado e, caso confirmado, seja realizada a divulgação à comunidade, evitando que os profissionais de manutenção aeronáutica instalem tal peça de maneira inadvertida.
Uma peça falsificada, ou que tenha seus registros adulterados, ou mesmo para a qual não se possa verificar de forma inequívoca a sua procedência, é o tipo de problema que vai permanecer escondido até desencadear ocorrências mais sérias.
A conscientização de todos os que trabalham na manutenção e na operação de aeronaves sempre será a forma mais efetiva para se evitar que este risco se torne um acidente, apenas aguardando a pior hora para acontecer.
*Antonio José Carneiro Campos é coronel-engenheiro e diretor vice-presidente da Associação Brasileira de Manutenção Aeronáutica (MANTAER)