Entenda como o congelamento de água pode interferir na aerodinâmica de um avião e colocar o voo em risco
Por Miguel Rodeguero, especial para AERO Magazine Publicado em 22/11/2024, às 15h00
A formação de gelo tem um importante papel em relação à segurança de voo. Conhecimento, informação, preparo, dedicação e entendimento de que ameaças devem ser conhecidas, mitigadas, trabalhadas e jamais negligenciadas, para que não tornem mais complexas as tarefas de um piloto voando uma aeronave, são o caminho para um voo seguro
Não importa o tamanho da aeronave. Todas transportam pessoas em maior ou menor número, e as ameaças estão presentes em qualquer voo. Um bom gerenciamento começa pelo conhecimento das ameaças que se fazem presentes em determinado momento, e a formação de gelo em aeronaves é uma dessas ameaças no dia a dia de quem voa.
Algumas perguntas básicas ajudam a começar a esclarecer o assunto. É possível formar gelo em volta das aeronaves? É possível voar nessas condições de formação de gelo? A resposta é conhecida por quem voa, sim para ambas. Mas, para que seja possível a formação de gelo na estrutura de aeronaves, algumas circunstâncias precisam estar presentes:
Havendo essas circunstâncias, a formação de gelo, que ocorre principalmente nas asas, na cauda, na entrada de ar dos motores e no para-brisas, torna-se uma possibilidade bastante real. Pouca formação de gelo não chega a ser uma grande ameaça. Entretanto, como regra geral, qualquer volume de gelo acumulado na estrutura da aeronave passa a ser um risco ao voo.
Para mitigar essa ameaça e enfrentar esse risco, a mais óbvia das medidas seria não voar em áreas com possível formação de gelo. Nem sempre isso é possível. Assim, as aeronaves possuem sistemas que amenizam a situação, algumas com sistemas que devem ser utilizados antes da formação, outras durante a formação de gelo, outras ainda com gelo já formado. Hoje em dia, a maioria das aeronaves de portes médio e grande possui sistemas que combinam os diferentes modelos de combate ao gelo.
É comum surgirem dúvidas sobre a formação de gelo em aeronaves voando em países tropicais, sem baixas temperaturas. A questão é que não se trata de frio de inverno no solo, com pessoas agasalhadas. A queda normal da temperatura quando se está subindo é de dois graus para cada mil pés, aproximadamente 300 metros de altura.
A temperatura padrão ao nível do mar é de 15 graus Celsius, de forma que, se partimos de 15 graus no solo ao nível do mar e subirmos uma montanha de 600 metros, encontraremos no topo da montanha uma temperatura de 11 graus Celsius (15 no solo, menos os 4 graus pela altitude).
Dessa forma, uma aeronave voando a 15 mil pés de altura (cerca de cinco mil metros), encontra uma temperatura externa de aproximadamente menos 15 graus Celsius em condições padrão de tempo: queda de 30 graus (dois graus para cada mil pés), porém, acrescida dos 15 graus ao nível do mar.
Esses números se referem à condição padrão de atmosfera e sofrem variações de acordo com as condições meteorológicas. Se estivermos com temperatura de 30 graus Celsius no solo, isso não significa que não haverá formação de gelo em altitude, pois, se houver nuvens de trovoadas ou frentes frias alterando a atmosfera, a queda de temperatura poderá ser mais acentuada do que o gradiente normal.
Havendo uma combinação de nuvens, principalmente se estiverem carregadas de água e apresentando baixas temperaturas, temos o cenário perfeito à formação de gelo em aeronaves.
As cartas meteorológicas de previsão mostram onde há condições propícias à formação de gelo nas diferentes altitudes. Essas previsões são públicas, hoje facilmente encontradas na internet nos serviços meteorológicos, e devem fazer parte das análises de quem despacha e conduz um voo.
As aeronaves que voam sobre o Ártico possuem os mesmos sistemas de combate ao gelo das aeronaves que voam sobre regiões tropicais. Nas regiões geladas, os sistemas são mais amplamente utilizados, sem dúvidas, mas nas regiões tropicais também são necessários, embora seu uso seja mais esporádico.
Grandes aeronaves possuem sistemas que aquecem as superfícies geladas onde o gelo se forma. A temperatura produzida pelo funcionamento dos motores é, em parte, desviada para aquecer as superfícies mais críticas, evitando, assim, que o gelo se acumule a ponto de perturbar o escoamento do ar pelas asas e prejudicar a sustentação que mantém o voo. Da mesma forma, a parte frontal dos motores é aquecida para evitar que haja perturbação na entrada de ar ou que os motores “engulam” gelo, o que pode prejudicar seu funcionamento. A totalidade dos jatos possui sistemas de aquecimento.
Aeronaves de porte médio, notadamente os turbo-hélices, possuem sistemas que inflam de forma desigual a parte dianteira das asas, de certa forma deformando seu perfil e quebrando o gelo, que então se desgruda. Sem entrar nos detalhes de tais sistemas, todos os atuais são funcionais, desde que operados em conformidade com os manuais da aeronave.
No caso de inoperância de qualquer um deles, deve-se evitar o voo em área conhecida de formação de gelo ou onde haja previsão de formação de gelo, normalmente alterando-se o nível de voo, pois o gelo se forma em camadas mais ou menos definidas de altitude, conforme as cartas de previsão meteorológica.
Toda essa explicação leva a um conceito: sistemas de detecção e combate ao gelo são importantes e imprescindíveis ao voo quando há formação ou previsão de formação de gelo. Quando o dia está limpo, tranquilo, sem previsão de frentes frias ou de nuvens que possam proporcionar a formação de gelo, o voo é absolutamente tranquilo mesmo que um sistema esteja com algum problema de operacionalidade.
Se um piloto recebe uma aeronave com o sistema de antigelo inoperante, ele deve se certificar, pelas cartas meteorológicas, de que sua trajetória esteja isenta de qualquer previsão de formação de gelo, caso contrário, este voo não poderá ser feito com aquela aeronave.
De forma inadvertida, se houver o encontro de uma área onde haja formação ou mesmo condições de formação de gelo e o sistema da aeronave estiver inoperante, o piloto deve imediatamente alterar o nível de seu voo, normalmente para mais baixo, para que seja possível voar fora da camada de nuvens propensas à formação de gelo.
É inexistente a hipótese de um controlador de tráfego aéreo não autorizar uma mudança de nível de voo quando uma aeronave assim o solicitar por motivos operacionais ou meteorológicos. Pode acontecer que, no exato momento, seja impossível, pela presença de outra aeronave nas proximidades, mas, no minuto seguinte, haverá a autorização.
Em países com neve, todos os aeroportos dispõem de sistemas que literalmente lavam o avião com preparados que eliminam e evitam a formação de gelo na aeronave, principalmente nas asas e na cauda. Esses preparados permanecem eficazes por algum tempo, dependendo de sua especificação. Se porventura a decolagem atrasar além desse tempo, é necessário fazer nova aplicação.
A área da entrada de ar dos motores também é sensível ao gelo. Em 13 de janeiro de 1982, um Boeing 737 da AirFlorida, decolando de Washington, caiu no Rio Potomac logo após a decolagem devido à perda de potência dos motores por causa do gelo. Os pilotos não seguiram os procedimentos recomendados para decolagem sob neve (o aeroporto havia sido fechado por acúmulo de neve antes da decolagem). Dos 74 passageiros e cinco tripulantes a bordo, quatro passageiros e um tripulante sobreviveram, resgatados das águas geladas. Antes de cair no rio, a aeronave atingiu uma ponte e matou também quatro motoristas.
Em abril de 2022, uma aeronave de pequeno porte, um RV10 brasileiro com três pessoas a bordo, desapareceu quando voava de El Calafate para Trelew, ambos na Argentina. Pelas informações de outros voos na região e pelas últimas mensagens recebidas, os pilotos reportaram muito gelo nas asas. Esse modelo de aeronave, como tantos outros, é adequado para voo visual com tempo bom, e não dispõe de sistema antigelo. Aeronaves semelhantes são seguras desde que operadas de acordo com suas características. E uma característica importante de quase todas elas é que não dispõem de sistemas para combater a formação de gelo.
Mas por que exatamente o gelo pode derrubar um avião? Na verdade, o gelo não derruba uma aeronave. Ele contribui para que as condições necessárias para a manutenção do voo se degradem a ponto de tornar impossível a sustentação da aeronave. E o faz não apenas pelo peso da água congelada acumulada na estrutura dos pequenos aviões, mas, principalmente, pela deformação das superfícies que criam a sustentação, força que permite o voo.
A sustentação, força que em oposição ao peso mantém a aeronave no ar, é criada pela diferença de pressão entre a parte de baixo e a parte de cima das asas. A passagem do vento pelas duas superfícies cria essa diferença de pressão, desde que essas asas estejam livres e lisas, da maneira como foram projetadas e concebidas.
A formação e o acúmulo de gelo nessas superfícies interferem no livre fluxo do ar, o que pode impedir a existência da sustentação: se o ar deixa de passar livremente pelas asas, deixa também de criar a força que mantém as asas (e, por consequência, a aeronave) voando. Mas não é qualquer porção de gelo, precisa haver acúmulo bastante para destruir o perfil aerodinâmico das asas.
Outra ameaça do gelo é, quando demasiado, perturbar ou mesmo impedir a entrada de ar que alimenta os motores, por vezes, impedindo seu funcionamento. Para evitar isso, a frente dos motores dos jatos é aquecida quando a operação acontece em áreas propícias à formação de gelo.
Ainda outra ameaça, bastante divulgada em acidente de uma aeronave da Air France no Oceano Atlântico em voo do Brasil para a França, é o bloqueio pelo gelo dos equipamentos que coletam as características de deslocamento de uma aeronave e as transmitem para os computadores de bordo. Esses equipamentos, ao atravessarem as camadas de ar em voo, coletam dados de velocidade de deslocamento, de pressão atmosférica e de temperatura que, enviados aos computadores, são transformados em parâmetros de voo. Esses equipamentos também são aquecidos para evitar que o gelo os obstrua.
* Miguel AngeloRodeguero é diretor de Segurança Operacional da Associação
de Pilotos e Proprietários de Aeronaves (AOPA) do Brasil