Beechcraft King Air 350i ganha nova aviônica Pro Line Fusion, mas mantém flexibilidade e a robustez que o consagraram no mundo
Por Edmundo Ubiratan, de Jundiaí Publicado em 25/01/2024, às 15h29
Falar da família Beechcraft King Air é uma tarefa simples e complicada ao mesmo tempo. Simples porque se trata do turboélice leve executivo mais vendido do mundo. E complicado pelo mesmo motivo, já que escrever sobre um projeto consagrado e mundialmente aceito requer precisão.
Com seus erros e acertos, a família King Air é referência para operadores da aviação de negócios em todo o planeta, especialmente para aqueles que necessitam de uma aeronave multiemprego capaz de operar tanto nos principais aeroportos globais quanto em pistas curtas e não pavimentadas.
Inicialmente chamado de Super King Air, a série 300 é derivada direta da série 200, lançada na década de 1970 para atender aos operadores do modelo 90 que necessitavam de maior capacidade, seja de carga, alcance ou performance. Na década de 1990, surgiu a série 300, uma evolução de seu antecessor que agregou uma série de inovações, como novos motores, aviônicos mais modernos, interior remodelado e assim por diante. Em 2008, foi lançado o King Air 350i, que recebeu alguns aperfeiçoamentos em termos de conforto de cabine, especialmente no isolamento acústico, e introdução de algumas novidades para a época, como iluminação LED e tomadas USB (Universal Serial Bus).
De uns anos para cá, a Beechcraft vem adicionando uma série de melhorias ao 350i, como interior remodelado e novas janelas. Porém, a principal mudança foi a suíte de aviônicos Rockewell Collins Pro Line Fusion, exatamente a mesma utilizada nas famílias Embraer Legacy 450 e Legacy 500, KC-390, Bombardier CSeries [atual Airbus A220] e Global, entre outras.
Confesso que ao saber da introdução do Pro Line Fusion no King Air fiquei entusiasmado, era a primeira vez que uma suíte como essa era incorporada numa aeronave leve. Além disso, demonstra a enorme flexibilidade das atuais arquiteturas de aviônicos
O conceito IMA (Integrated Modular Avionics) surgiu no início da década passada graças à evolução dos sistemas computacionais que permitiram empregar uma mesma plataforma de hardware e software em diversas aeronaves, com alterações pontuais no sistema. O IMA é baseado numa arquitetura integrada entre software de aplicação e um conjunto de módulos de hardware comuns.
Um dos trunfos do IMA se deve ao padrão API (Application Programming Interface) que se traduz num componente de software com suas operações, entradas, saídas e tipos subjacentes, definindo funcionalidades que são independentes das respectivas implementações, o que permite definições e implementações para variar, sem comprometer a interface.
Até meados da segunda metade da década passada, a maior parte dos aviônicos era destinada a aeronaves específicas, o que mudou com o Garmin 1000, que, embora não seja o pioneiro, foi a primeira suíte a popularizar o conceito IMA, e com grande sucesso. Com o Honeywell Primus Epic, os fabricantes puderam dar um passo além ao criar uma plataforma altamente personalizável, mas que emprega sistemas em comum, o que flexibiliza seu emprego e reduz os custos.
Para se ter uma ideia da integração do Primus Epic, basta lembrar que essa é a suíte básica para o Dassault EASy e o Gulfstream PlaneView. Duas propostas completamente diferentes trabalhando sobre uma mesma arquitetura de software e hardware.
Em meados de 2007, quando a Rockwell Collins anunciou o Pro Line Fusion, que seria lançado com o então Global XRS (atual Global 6000), era nítido que o fabricante estava para dar um passo além. O projeto surgiu da experiência obtida com a modernização dos veteranos KC-135 da Força Aérea dos Estados Unidos (USAF, na sigla em inglês) e dos programas Boeing 787 e posteriormente Airbus A350 XWB.
O Pro Line Fusion se destaca por sua capacidade de aceitar uma ampla gama de configurações e soluções, podendo ser instalado numa série de aeronaves de diferentes fabricantes com aplicações distintas. O segredo foi criar uma arquitetura baseada em software, o que permite fusionar os recursos no sistema através de configurações relativa mente simples.
Grosso modo, foi criado um sistema com base modular, em que se desenvolvem blocos específicos para atender às necessidades da aeronave sem a necessidade de uma nova arquitetura do sistema. Numa analogia simplista, mas que permite visualizar a ideia básica, é um modo de organizar os blocos similar ao do Windows 10. Ele permite adicionar esses blocos de construção sem perturbar o sistema altamente integrado existente. Para os fabricantes de aeronaves, tal solução permite lançar atualizações importantes sem a necessidade de uma modernização complexa enquanto, para os pilotos, é possível simplificar o treinamento e aumentar consideravelmente a consciência situacional.
Dirijo-me ao hangar da Tam Aviação Executiva, em Congonhas, para conhecer de perto esta nova versão do King Air 350i equipada com o Pro Line Fusion, que está pela primeira vez ao Brasil. O primeiro dia será de familiarização com o avião, abordando as principais características do modelo e as inovações introduzidas. Sou recebido por Humberto Vinhais, da Tam, nova representante dos produtos Beechcraft no Brasil. Ele me apresenta o avião.
Externamente é impossível notar qualquer diferença. Mas, ao embarcarmos, o novo interior salta aos olhos. As mudanças no design deram um ar mais elegante à cabine e maior conforto aos passageiros. O avião conta com nove assentos, com o chamado Flexcabin, que permite reconfigurar os assentos dependendo do tipo de missão a ser realizada, do transporte executivo puro ao aproveitamento do espaço para carga, ainda que o amplo bagageiro de 2 m3 com capacidade para 249 kg seja amplo o bastante na maior parte dos casos. A cabine também aceita um lavatório privativo opcionalmente.
O King Air é o primeiro avião leve a contar com janelas eletrocromáticas, similares às existentes no Boeing 787 Dreamliner. A diferença entre os dois aviões está no fato de as janelas do King Air serem escurecidas quase instantaneamente ao toque de um botão, com três níveis (claro, intermediário e escuro). Complementa o sistema eletrocromático uma persiana eletromecânica branca, quando acionada sozinha, mantém a janela
translucida, filtrando os raios solares sem escurecer o interior. Mas, ao ser usada em combinação com o padrão escuro, isola a cabine completamente da luz externa, ao contrário do Dreamliner, que não bloqueia totalmente a iluminação do dia.
Apesar da animação com as inovações na cabine, o interesse principal recai mesmo sobre o cockpit. Quem me apresenta as novidades é Stuart Mochrie, piloto de testes da Beechcraft, com mais de 30 anos de experiência em King Air.
De pronto, ele já me apresenta o Pro Line Fusion, descrevendo a arquitetura do sistema e seu funcionamento. Destacam-se as três telas de 14 polegadas intercambiáveis e sensíveis ao toque. A aviônica sensível ao toque não é inédita, tampouco recém-chegada ao mercado, mas pela primeira vez um avião como o King Air incorpora telas touchscreen. Além disso, diferente de sistemas como o Garmin 2000, por exemplo, praticamente todas as funcionalidades do Pro Line Fusion são comandadas por toques, incluindo as do PFD. Pode-se clicar no MFD e arrastar o mapa, escolher um ponto e clicar em cima e até copiar e colar dados.
É nítida a preocupação dos engenheiros da Rockwell Collins em criar uma interface acessível
a qualquer usuário. A lógica do sistema é similar à existente em qualquer tablet ou computador. Existem menus pop-up, funções que podem ser acessadas através de vários atalhos, diversas configurações possíveis de exibição dos dados. Nesse último caso, vale um adendo: o MFD pode ser dividido em até quatro partes, o que considero um exagero.
Outro ponto interessante são o cursor controllers e o teclado QWERTY. Os cursores são muito precisos e úteis em situações durante as quais tocar na tela pode não ser tão produtivo. Já o fato de a nova aviônica ter adotado um teclado QWERTY mostra a influência dos sistemas móveis, como telefones e tablets, na indústria mundial. Poucos hoje conseguem acessar rapidamente um teclado alfabético, como o existente na maioria dos aviões.
Também chama atenção a ergonomia da posição desses controles, montados na base do pedestal, numa posição que à primeira vista incomoda, mas que, sentado e trabalhando, revela-se muito prática. Destaque ainda para o sistema de visão sintética criado pela Rockwell Collins, que apresenta relevos e detalhes do mapa com grande fidelidade e fácil leitura. Comparado ao da família Garmin, que já faz um trabalho excelente, a diferença é notável.
Após um briefing de uma hora sobre o Pro Line Fusion, marcamos nosso voo para dali a dois dias. O King Air voaria para Jundiaí dali algumas horas, então vamos fazer um translado inverso, entre os aeroportos de Jundiaí e Congonhas, ingressando, assim, com o novo avião em um dos espaços aéreos mais congestionados do mundo. Será uma oportunidade interessante para conhecer mais a fundo a integração do avião com nova aviônica.
Em Jundiaí, reencontro o King já preparado para o voo. Novamente, sou recebido pelo comandante Mochrie, que aproveita para fornecer mais detalhes sobre o avião em um walk around. Começamos pela asa direita. Reparo no bom espaço existente num bunker instalado atrás dos motores. É um espaço extra interessante para quem leva objetos leves, como pequenas malas, sacos de golfe ou mesmo um vestido de festa que pode ser acomodado sem amassar.
O enorme Pratt & Whitney PT6A-60A, considerado o mais confiável motor turboélice do mundo, é um monstro de 1.050 shp (783 wK). Combinados, os dois motores oferecem potência de sobra para as mais variadas operações. No nariz, existe agora uma nova baia de aviônicos, destacando-se a entrada de ar responsável por manter resfriado o sistema do Pro Line Fusion. O comandante Mochrie aponta para o trem de pouso, que recebeu algumas melhorias pontuais, mantendo-se extremamente robusto e resistente para operações em pistas não preparadas. Destacam-se nas pontas das asas os winglets, que dão um ar mais elegante ao perfil do avião.
Se o design do King Air está longe da sofisticação e aperfeiçoamento aerodinâmico dos projetos atuais dos novos aviões, o desenho geral demonstra a robustez e a simplicidade de projeto. É o equivalente a um off-road voador. Rebites, fuselagem chapeada, linhas quadradas, em suma, uma máquina que todo operador reconhece como poderosa e capaz de encarar qualquer desafio (dentro dos limites do manual, óbvio).
Terminamos nosso walk around na porta, que pode ser configurada para permitir o embarque de grandes volumes de carga, rebatendo o “corrimão” e facilitando o manuseio de volumes maiores.
A bordo, com cinto afivelado, master on, iniciamos o procedimento de acionamento, com o Pro Line Fusion exibindo o checklist na tela. É uma tecnologia comum, mas muito útil e que se tornou praticamente padrão na aviação atual. Outro detalhe importante é que, ao digitar os números, como o 12900, surge um menu com as possíveis opções que possuem essa
sequência, entre elas o APP SAO. Clicamos em cima e, pronto, item selecionado.
Mais uma função útil é poder alterar o traçado clicando na tela e arrastando a rota. É um recurso que permite aos pilotos criar rapidamente desvios ou proas diretas. Além disso, basta clicar num waypoint ou detalhe no mapa para abrir as opções possíveis.
Com o motor já acionado e com as devidas autorizações para decolar, mais uma surpresa. É possível “setar” para o Pro Line Fusion cantar as velocidades V1, Rotate e V2. Para uma aeronave single pilot, é uma ferramenta útil e que melhora significativamente a segurança. É como se fosse um copiloto virtual. Para algumas funções, mesmo que básicas, há um incremento de segurança.
O voo em si pode ser considerado conhecido em termos de performance, já que o King Air 350 é uma aeronave experimentada, sem nada demais nesta versão. Porém, a aviônica, que faz toda a diferença, é o destaque da aeronave. Ainda assim, ao acelerar, é nítida a sobra de potência dos motores PT6. Para os operadores do C90, que trabalham no limite, o 350i pode ser uma opção interessante ao aliar performance com custo operacional em média 5% mais alto. Um custo adicional interessante considerando os ganhos em performance, espaço e segurança.
Em rota é possível conhecer mais da aeronave, que sobe tranquila. Mesmo em atmosfera turbulenta, o avião se mostra muito estável. Durante o voo, o comandante Mochrie aciona a carta de aproximação de Congonhas com o avião inserido sobre ela, em posição real, ao mesmo tempo em que o mapa exibe uma projeção do procedimento e a posição exata do avião. Trata-se de uma tecnologia já existente, mas que se torna mais produtiva nesta suíte de aviônicos.
O piloto automático mantém nossa posição sem qualquer dificuldade. O MFD agora exibe os parâmetros do motor, carta de aproximação e o mapa. Os ícones de navegação permitem selecionar rapidamente qualquer função no sistema, que se apresenta de forma muito clara e intuitiva.
Ao analisar o painel, tem-se um choque de realidade. Uma das mais avançadas suítes de aviônicos da atualidade montada na cabine do King Air continua abarrotada de switchs, controles de iluminação, luzes de pouso, marcadores analógicos de combustível, amperímetro e voltímetro.
Para o piloto pouco muda, já que são switchs conhecidos e que estão acessíveis aos dedos de maneira prática, mas me pergunto se numa futura atualização parte dessas chaves não poderia para dentro da aviônica, em controles touchscreen.
A aproximação para Congonhas mostra a fusão de dezenas de parâmetros exibidos nos três displays de forma muito clara e simples. Após um rápido curso no Pro Line Fusion e alguma
dedicação, um piloto com experiência em versões antigas do King Air estará apto para voar o avião sem qualquer tipo de dúvida.
Ao pousarmos na 17R, livramos e nos dirigimos para o pátio, onde realizamos o corte e temos a certeza de que as atualizações constantes são o trunfo da Beechcraft para manter o reinado do King Air por tantas décadas. Um projeto simples e robusto, que necessita apenas se manter atualizado para atender aos principais requisitos dos operadores.
* Publicado originalmente na AERO Magazine 264 · Maio/2016