Em 2009, após dois anos do primeiro ensaio, nossa equipe voou pela segunda vez o Hawker 4000 e suas qualidades eram marcantes
Por André Danita Publicado em 21/08/2024, às 16h00
Em setembro de 2007 o Hakwer 4000 era capa na AERO Magazine, quando em um ensaio em voo exclusivo mostrou seu potencial no mercado de jatos de negócios, em especial por sua tecnologia embarcada e bom espaço interno. Dois anos depois, em dezembro de 2009, voltamos a voar no avião em um ensaio com título "A (R)Evolução do Hawker 4000" comprovamos que o avião estava ainda melhor, mas a situação delicada da então Hawker Beechcraft impediu o sucesso esperado.
Desde a década de 1960, os jatos da família Hawker cruzam os céus do mundo, construindo uma grande reputação de confiabilidade e robustez poucas vezes vista na aviação executiva. Ao longo dos anos, os descendentes do primeiro de Havilland 125, então chamado Jet Dragon, evoluíram em projeto aerodinâmico, conforto para o passageiro e aviônicos, mas sempre mantendo as qualidades que despertaram a adoração dos operadores: alta despachabilidade e manutenção simplificada.
No entanto, o mercado pedia por mais espaço, alcance e performance, e a resposta da então Raytheon (hoje Hawker Beechcraft) partiu de uma folha em branco, criando o primeiro dos jatos super mid-size.
O novo jato, originalmente batizado Hawker Horizon, e hoje conhecido como Hawker 4000, buscava alcançar números ambiciosos e inéditos neste novo segmento. Para tal, o projeto propôs soluções igualmente ambiciosas.
Construir a fuselagem em materiais compostos foi uma delas, e a Raytheon valeu-se da experiência no Beech Starship, um revolucionário turboélice lançado na década de 1980 feito inteiramente em composite, para aproveitar o máximo de benefícios desta tecnologia.
O ganho mais perceptível, aos olhos de um leigo, são as belas linhas externas da aeronave, que tecnicamente se traduzem em uma aerodinâmica refinada, na ausência de pequenos geradores de arrasto, como parafusos e rebites, e na indubitável resistência a impactos.
A Hawker Beechcraft afirma que uma estrutura de materiais compostos (fibra de carbono e resinas) possui uma resistência três vezes maior e rigidez até 70% maior que estruturas convencionais de alumínio. Enquanto chapas finas de metal se deformam com os esforços, o composite distribui de modo mais uniforme as cargas ao longo de sua estrutura única, que é formada de maneira mais espessa nos locais que assim requerem, como em torno das janelas. Além disso, esse tipo de material não sofre com a ameaça da corrosão.
Esta flexibilidade de construção permite uma redução de peso da ordem de 20%, a ponto de permitir que uma pessoa consiga levantar uma das três seções que formam a fuselagem do Hawker 4000 com apenas uma das mãos. Outro grande avanço é a redução da espessura da fuselagem, o que se traduz em maior espaço interno
Para os mais curiosos, vale a pena notar os números: apenas 16 centímetros separam os passageiros do mundo exterior, o que inclui não só a espessura da estrutura em si, mas também todo o revestimento do interior e outros itens como dutos e cabos elétricos.
É comum também questionar-se sobre o nível de ruído a bordo de uma aeronave construída em composite, mas não apenas a excelente insonorização contribui para o silêncio, como também a própria limpeza e perfeição da aerodinâmica geram menos ruído ao longo da fuselagem
A asa é igualmente responsável pela eficiência do Hawker 4000. Construída inteiramente em metal e em uma única peça, possui perfil supercrítico e um elegante enflechamento superior a 28 graus. Mas os engenheiros fizeram um excelente trabalho ao conseguir aliar o melhor comportamento em baixas velocidades com baixo arrasto de compressibilidade em altas velocidades, resultando em maiores velocidades de cruzeiro econômico e ainda possibilitando aproximações ao redor de 115 nós.
A asa é dotada ainda de dois grandes painéis de flaps, e os ailerons são relativamente pequenos, tanto que o rolamento é auxiliado por quatro de um total de seis spoilers. Outro recurso interessante é a extensão automática dos spoilers após o pouso, o que permite uma frenagem eficiente.
Com tais características, a performance de pista do Hawker 4000 foi privilegiada. Decolagens de Aspen, a mais de 7.800 pés de elevação, são possíveis a temperaturas de 32°C, levando seis passageiros a Nova York, em pouco mais de três horas.
A carga paga disponível do Hawker 4000, ou seja, passageiros e bagagens nele embarcados respeitando-se os limites de peso máximo de decolagem em uma situação de tanques cheios, é uma das melhores da categoria, girando em torno de 1.600 libras — o que equivale a 8 passageiros e seus pertences.
Por sinal, o conforto a bordo é garantido pelo piso nivelado ao longo de todo o interior e das largas e confortáveis poltronas. As amenidades incluem ainda uma espaçosa galley dianteira, equipada com micro-ondas, cafeteira e bastante espaço para cristais e pratarias. A conectividade é provida por meio do sistema de telefonia Iridium. A tela do Airshow CMS reúne informações em tempo real e entretenimento de bordo.
Dois closets acomodam bagagens de mão e casacos, e é possível acessar o bagageiro principal traseiro em voo através de uma porta no toalete. O carregamento externo é feito por uma porta que dispensa escadas, graças à baixa altura em relação ao solo e aos robustos trens de pouso com amortecedores do tipo trailing-link.
Outro diferencial do jato é a redundância de sistemas. O sistema hidráulico é um bom exemplo: dotado de duas metades independentes, tem atuação conjunta sobre os componentes essenciais, como freios e spoilers.
Assim, se um dos sistemas hidráulicos falhar, haverá apenas uma degradação de performance nas funções, sem perda destas. Adicionalmente, existe uma unidade de transferência de potência (PTU), algo presente apenas em aeronaves de grande porte, que supre pressão no caso de falha da bomba de um dos sistemas, usando potência hidráulica do sistema oposto.
O sistema elétrico é igualmente redundante, contando com dois geradores nos motores, mais o gerador do APU e um quarto gerador, chamado de HMDG, que se vale de potência hidráulica para gerar eletricidade em caso de falha elétrica total.
Para completar, o sistema ambiental e de pressurização da cabine é dotado de duas packs. Em uma breve análise, é possível concluir que o Hawker 4000 pode sobrevoar regiões remotas com tranquilidade, assim como realizar travessias oceânicas, já que uma falha de um componente nos diversos sistemas raramente comprometerá o transcurso de qualquer etapa.
No cockpit há mais tecnologia, pois o Honeywell Primus Epic domina a cena, em uma configuração superior para a categoria. Em quatro telas de 8 x 10 polegadas é possível visualizar o funcionamento dos diversos sistemas da aeronave de maneira gráfica, além da tradicional interface de navegação, com FMS duplo.
Os equipamentos standard incluem também auto-throttle duplo, que apenas aguardam a certificação para operarem em capacidade total, ou seja, da decolagem ao pouso, e um duplo sistema inercial de referência (IRS) do tipo Laseref V. De uma maneira geral, o Hawker 4000 surpreende pela inovação, tecnologia e redundâncias, estando muito à frente de seus competidores, no nicho de mercado onde foi o pioneiro.
Seria natural esperar que, com uma carga tão grande de desenvolvimento, a aeronave levasse mais tempo para ser certificada do que outros jatos menos inovadores. No entanto, a então Raytheon enfrentou um longo e penoso caminho, e como em um efeito cascata, atrasos geraram mais atrasos por conta das mudanças nos requisitos de certificação ao longo dos 10 anos entre o lançamento e a certificação final. Longe de ser um demérito para o produto final, porém, este atraso rendeu bons frutos, como a entrada em serviço em um avançado estado de maturidade, resultando em uma disponibilidade média de 96,4% das 25 aeronaves já entregues aos clientes ao redor do mundo.
É hora de voar, e sou convidado pela Líder Aviação a compor tripulação em um voo de demonstração exclusivo para a AERO Magazine, numa tarde quente em São Paulo. No aeroporto de Guarulhos, encontro a aeronave e a tripulação da Hawker Beechcraft que de maneira entusiástica me apresenta a máquina.
Nossa ideia é colocar à prova todas as capacidades do Hawker 4000: subiremos até o FL 450 em rota para o Rio de Janeiro e, depois, pediremos o retorno para Campinas, onde faremos um pouso no Campo dos Amarais, com seus 1.200 metros de pista. De lá, seguiremos para Congonhas, nosso destino final.
Sou convidado a ocupar o assento da esquerda, e o comandante Errol aproveita os mais de 20 minutos que aguardamos pela autorização de tráfego para me mostrar a simplicidade de operação. Demoro um pouco para me acostumar com o Cursor Control Device (CCD), semelhante a um touchpad de computador, localizado no console lateral, que uso para navegar pelas telas dos sistemas no Epic.
O restante do cockpit é bem limpo, e o ambiente é familiar para os fãs da linha Hawker, a exemplo do manche em “M” e as alavancas dos speedbrakes, herdados da robustez dos primeiros membros da família.
O circuito fechado que desejamos voar foi finalmente aprovado pelo Tráfego Guarulhos, mas falta ainda obter a autorização de acionamento dos motores, o que demora outros 20 minutos para acontecer.
O já saturado maior aeroporto da América Latina está com uma das pistas interditadas para reformas, e uma inversão de vento e CBs que se formavam na terminal causa irritação aos pilotos e passageiros que aguardam a longa sequência de decolagem.
As partidas dos motores são rápidas e automáticas com a supervisão total do Fadec (Full Authority Digital Engine Control), e tudo que nos resta é monitorar parâmetros e efetuar os cheques de sistemas previstos no fluxo do after start.
Inicio a rolagem a partir do pátio 6, utilizando o steering do tipo by-wire, que responde de maneira bastante suave e precisa e, conjugado à maciez dos amortecedores, faz lembrar o taxiamento em aeronaves muito maiores.
Alinhado na 09R, inicio a decolagem já com o auto-throttle armado. Basta levar as manetes a meio curso para que o dispositivo engaje e conclua a aceleração dos motores. A corrida é curta, e o Hawker 4000 sobe como um foguete até a restrição inicial do FL 100. A pilotagem manual é um verdadeiro deleite, apesar do ar turbulento. Apenas o leme é assistido hidraulicamente, mas, ainda assim, os comandos de voo são leves e precisos.
Muitas aeronaves pedem desvios de formações meteorológicas, e nossa subida é restringida por diversas vezes até atingirmos o FL 450, mas Errol me diz que normalmente atingiríamos aquele nível em 19 minutos — um tempo notável.
O grande diferencial de pressurização mantém a cabine a uma altitude de apenas 6.000 pés, agregando conforto e evitando a fadiga nas etapas mais longas. Experimento acelerar a Mach .84, e o Hawker responde prontamente. Nessas condições, o consumo não passa de 1.900 libras/hora, mas o jato pode ser ainda mais econômico, se a pressa não for o fator preponderante.
Voltando para Campinas, iniciamos a descida desviando das formações pesadas na trajetória da Star (carta de descida), e a informação de que já chove nas vizinhanças de Viracopos nos leva a substituir o pouso em Amarais por um procedimento completo em Campinas, com pouso final em Congonhas.
Aproveito para comprovar o automatismo no ILS da cabeceira 15, e deixo o autopilot e auto-throttle cuidarem da maior parte do trabalho. Na final curta, desacoplo, e o pouso acontece de forma suave. A já baixa VRef de 117 nós mal requer o uso dos freios na parada.
Decolamos novamente, e desta vez uma rápida vetoração nos encaixa no ILS da pista 17 de São Paulo. Decido então experimentar a capacidade de pouso em pistas curtas, um dos pontos fortes do Hawker 4000, que possui freios de carbono duplos. Procuro tocar antes da marca de 1.000 pés, quase sem arredondamento e, apesar da minha pouca experiência no equipamento, o Hawker mostra-se leniente e presenteia-me com um toque macio. Freio energicamente, e o resultado é surpreendente: estamos em velocidade de táxi com o que calculo não passar de 600 metros depois do toque.
A Hawker Beechcraft conseguiu reunir os melhores predicados em uma aeronave revolucionária, que é oferecida com um pacote vantajoso de equipamentos de série a valores competitivos. O suporte é garantido por uma bem estruturada rede de centros de serviços próprios e independentes, com um programa de manutenção que prevê a parada da aeronave apenas a cada 600 horas voadas, ou seja, um ano. Assim, o Hawker 4000 reúne todas as qualidades para ocupar seu lugar no mercado, em grande estilo.
* Publicado originalmente na AERO Magazine 187 · Dezembro/2009