O reide Rio – Buenos Aires foi feito há mais de 100 anos e Edu Chaves fez o Brasil ficar mais perto da Argentina
Por Rodrigo Moura Visoni* Publicado em 20/12/2022, às 00h00
Com o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), as incursões pelo ar entre localidades distantes entre si passaram a ser internacionais. Tinha início a era dos chamados reides aéreos.
Na América do Sul, o grande desafio era cumprir o voo de Buenos Aires ao Rio de Janeiro (ou inverso), perfazendo 1.966 quilômetros. Tentativas de ligar por via aérea as duas maiores cidades sul-americanas da época começaram a ser feitas em 1919.
Em 13 de setembro daquele ano, o oficial italiano Antonio Locatelli (1895-1936) decolou de Buenos Aires em um veloz biplano militar, o Ansalvo SVA-5, muito utilizado na Primeira Guerra em missões de reconhecimento e bombardeiro.
Com o equipamento de 220 cavalos de potência, autonomia de seis horas, o aviador fez escalas em San Roman, no Departamento de Canelones (Uruguai), e em Canoas, no Rio Grande do Sul (Brasil), antes de aterrissar em Porto Alegre, a capital gaúcha. Mas, na sequência do reide, já a caminho de Santos, no litoral paulista, uma pane de motor o fez descer em Tijucas, em Santa Catarina. Devido à natureza pantanosa do terreno, o avião capotou e ficou irreparavelmente avariado, além de catapultar o piloto, que sobreviveu ao desastre.
Nova tentativa se deu em 10 de agosto de 1920. O tenente brasileiro Aliatar de Araújo Martins (1893-1920) e o inglês John Pinder (1898-1920), este considerado um ás da Primeira Guerra, partiram do Rio de Janeiro no hidroplano italiano Macchi M9, de 350 cavalos de potência.
Eles chegaram a fazer escalas em Santos, em São Paulo, e em Paranaguá, no Paraná, antes de sofrerem uma pane, em 17 de agosto, que os obrigou a aterrissar na Lagoa dos Esteves, em Içara, Santa Catarina. Pinder tentou salvar Martins, que havia caído acidentalmente na água, selando o destino dos expedicionários.
Já o piloto Virginius Brito de Lamare (1883-1956) e o mecânico Antônio da Silva Júnior, brasileiros, tentaram o reide em 6 de outubro de 1920, com uma versão aprimorada do mesmo hidroplano, o M9bis.
Saíram da Escola de Aviação Naval, na capital fluminense, e pousaram sucessivamente em Santos (SP), Paranaguá (PR), Ilha de Anhatomirim (SC), Florianópolis (SC), Lagoa dos Patos (RS), Porto Alegre (RS) e Rio Grande (RS). No dia 30 de outubro, quando o M9bis estava sendo içado por um guindaste para o cais do porto de Rio Grande, o cabo de aço se partiu e o avião caiu de três de altura, espatifando-se.
Chegou então a vez do já consagrado piloto paulistano Eduardo Pacheco e Chaves (1887-1975), ganhador de diversos prêmios aeronáuticos no Brasil e no exterior.
Edu Chaves, como era mais conhecido, se tornou nacionalmente famoso ao se tornar, em 1912, não só o primeiro brasileiro a pilotar um avião no Brasil, como também o pioneiro do reide Santos-São Paulo, de 40 quilômetros.
Ele tentaria completar o reide Rio – Buenos Aires juntamente com o mecânico francês Robert Thierry, mas teve problemas antes mesmo de começar a prova: em 4 de novembro de 1920, ao decolar com um Caudron de São Paulo para ir ao Rio de Janeiro iniciar o reide, uma rajada de vento atingiu o avião, que capotou e ficou inutilizável.
No dia 12 de novembro, Chaves se encontrou com o governador do estado de São Paulo, Washington Luís (1869-1957), e lhe pediu emprestado um dos aeroplanos da Força Pública.
O governador aquiesceu e o aviador escolheu, no campo da escola de aviação da dita força, um Curtiss Oriole de 150 cavalos de potência, com onze metros de envergadura, nove metros de comprimento e 22 metros quadrados de superfície alar.
Após uma limpeza no motor, experimentou o avião no dia 27 de novembro, com o maior êxito, conquanto jamais houvesse pilotado esse tipo de aparelho. Porém, havia concorrência à vista.
O piloto argentino Eduardo Miguel Hearne (1895-1962) deixou Buenos Aires a bordo de um Bristol U acompanhado do mecânico Camillo Brezzi em 19 de dezembro de 1920. Os dois aterrissaram primeiramente em Passo de los Libres, na fronteira entre a Argentina e o Brasil.
Depois, já em território brasileiro, fez escalas em Cacequi (RS), Passo Fundo (RS), Ponta Grossa (PR) e Sorocaba (SP), onde baixaram no campo de Itinga, à espera da dissipação de um nevoeiro.
Após parada de duas horas, tentaram decolar comandando o Bristol entre os cupinzeiros do terreno, existentes ali em grande quantidade. Porém, ao desviarem de um dos montículos, a cauda do aeroplano bateu em outro e a fuselagem se rompeu. Hearne e Brezzi trabalharam dois dias e uma noite na reparação dos estragos.
No dia 25 de dezembro, às 9h25, eles decolaram com a intenção de alcançar o Rio de Janeiro, mas, quando já estavam a 20 metros de altura, a fuselagem se rompeu novamente e o avião caiu com violência, ficando semidestruído. A despeito do choque brutal, piloto e mecânico se salvaram.
Na mesma data – o Natal de 1920 –, já no Rio de Janeiro, Edu Chaves reiniciou, com Thierry, o perigoso reide. Eles partiram de madrugada do Campo dos Afonsos para São Paulo, onde aterrissaram pela manhã.
No dia 26, voaram para Guaratuba, no Paraná, descendo em uma praia. Como a maré estava alta, quase não restava lugar para pousar e por um triz o aparelho não se estragou. No trecho de Guaratuba até Porto Alegre, cumprido no dia 27, a dupla lutou contra os ventos da região, que sopravam em sentido contrário. Já a viagem de Porto Alegre a Montevidéu, realizada no dia 28, durou quase seis horas e foi inteiramente orientada pela bússola.
No trecho final, de Montevidéu a Buenos Aires, levado a cabo no dia 29, os aeronautas cometeram um erro de navegação e pousaram no aeródromo de San Fernando, onde ninguém os esperava – o plano era pousar em Palomar. A dupla ficou ali menos de três minutos, pois logo o sargento Barrafalde, da Escola Militar de Aviação, que os avistara evoluindo na direção da costa do Rio Prata, apareceu em um aeroplano e os orientou a seguirem-no até o aeródromo correto, o que fizeram de prontidão.
Imediatamente após a aterrissagem dos dois aviões em Palomar, uma enorme multidão que aguardava a chegada de Edu Chaves tomou o campo de aviação. Em instantes, aglomeravam-se em torno do piloto brasileiro o comandante, os diretores e diversos oficiais da Escola Militar de Aviação, além de pilotos civis, do pessoal da legação brasileira e de muitos jornalistas, repórteres e fotógrafos. Abraços, cumprimentos e felicitações foram distribuídos em profusão aos heróis da travessia.
O presidente do aeroclube argentino, Alberto Mascias, pediu um “urra” ao piloto brasileiro, proferido de imediato. Durante o almoço servido no Cassino de Oficiais da Escola de Aviação, ocorreram novas aclamações e discursos cordiais de confraternidade argentino-brasileira. Em seguida, a convite do aeroclube local, Edu Chaves foi descansar no Plaza Hotel.
A realização do reide Rio – Buenos Aires era a maior aspiração de todos os aviadores sul-americanos e fora enfim completado, com apenas quatro escalas (São Paulo, Guaratuba, Porto Alegre e Montevidéu)!
Logo que chegou ao Brasil a notícia da vitória de Edu Chaves, as pessoas que acompanhavam o reide pelas comunicações do fio telegráfico iniciaram grandes manifestações de regozijo ao destemido brasileiro, embandeirando as fachadas dos edifícios, soltando rojões, percorrendo as ruas em passeata e dando vivas a Edu Chaves e ao Brasil.
No Rio de Janeiro, na Câmara dos Deputados, o político João Pedro da Veiga Miranda (1881-1936) se achava na tribuna, discutindo um projeto, quando o colega Arthur Palmeira Ripper se aproximou, dizendo-lhe ao ouvido que Edu Chaves acabara de aterrissar em Buenos Aires.
No mesmo instante, o orador interrompeu as considerações que vinha fazendo e exclamou: “Perdoe-me, Vossa Excelência Senhor Presidente, se quebro neste momento o fio da minha argumentação. Um impulso irresistível, um ímpeto dos mais veementes acaba de me agitar a alma, alvoroçando-a na maior alegria, exalçando-a nos transportes máximos dos seus sentimentos. Edu Chaves acaba de chegar à capital portenha”.
Ouviram-se bravos, palmas prolongadas e gritos entusiásticos. Toda a Câmara se ergueu, em um júbilo unânime. Logo que os jornais cariocas afixaram boletins às portas das redações noticiando a chegada de Edu Chaves a Buenos Aires, a boa nova começou a ser espalhada rapidamente, sendo em pouco tempo largamente conhecida.
* Texto adaptado do originalmente
publicado na edição 320
de AERO Magazine