Sabia como tornar seguro voar single-pilot e como a operação com apenas um piloto deve ser planejada e gerenciada
Por Rodrigo Duarte Publicado em 25/03/2020, às 16h30 - Atualizado em 06/03/2023, às 17h30
Em tempos de crise, como a vivida pelo mundo pela crise sanitária, a redução de custos se torna ainda mais vital para a manutenção de negócios e empregos. A pergunta que usuários da aviação executiva se fazem corriqueiramente ao planejar a operação de sua aeronave, ou de sua frota de aeronaves, diz respeito não à presença, mas à quantidade de tripulantes. Na prática, donos de aviões ou helicópteros querem saber: devo ou não voar com apenas um piloto a bordo?
Em aeronaves de pequeno porte, essa condição é quase que premissa para o voo, pois os assentos disponíveis já são muito limitados e adicionar um piloto pode ser inviável. Além da questão da disponibilidade de assentos, a prática é também muito aceita pelo mercado, ainda que alguns passageiros exijam em circunstâncias especiais a presença de um piloto extra mesmo que isso não seja exigido em lei. Nunca é demais repetir este “mantra” formulado por Richard Collins: “Nem tudo que é legal é necessariamente seguro”.
O fato de se ter apenas um piloto na cabine não representa um risco em si. Tanto que a Boeing está desenvolvendo um projeto para que, no futuro, aviões comerciais possam ser pilotados por somente um tripulante a bordo. Evidentemente, essa questão ainda será colocada em discussão e envolverá não somente autoridades do setor como, também, a percepção dos passageiros em relação à proposta.
Na aviação privada, em que os proprietários muitas vezes optam por voar somente com um piloto a bordo, pode-se discutir o assunto partindo de perguntas básicas: “É seguro?”, “Determinei todos os riscos?”, “O risco é aceitável?”. Para uma avaliação correta (independente do tipo de aeronave), o ideal é dividir a questão em duas frentes: voos sob as regras VFR (referências visuais com o solo) e voos sob as regras IFR (com o auxílio de instrumentos e sem referências visuais externas).
O voo single-pilot bem-sucedido tem muitos ingredientes, mas entre os mais importantes estão o planejamento, a organização e a gestão de recursos de cabine (CRM) por parte de seu piloto, que deve evitar distrações e manter a consciência situacional.
A maioria dos voos VFR, normalmente realizados em aeronaves de pequeno porte, ocorre em condições single-pilot por variados motivos, que vão da quantidade de assentos e a simplicidade da operação até o custo de se ter mais um piloto.
Esse tipo de voo tem uma característica menos complexa do que um voo por instrumentos, porém deve-se considerar o voo em espaços aéreos com alta densidade de tráfegos VFR (como em São Paulo e Rio de Janeiro) e a “aviação inimiga” das esquadrilhas de urubus voando sempre nos mesmos caminhos. É vital para a segurança da operação que seu piloto voe com um olho no painel e o outro através do para-brisa.
Evitar que seu piloto se distraia é mais uma regra fundamental para quem voa com apenas um tripulante. Na aviação executiva, ao contrário da aviação regular, você pode interagir diretamente com seu piloto em comando, compartilhando o mesmo espaço de cabine, conversando amenidades ou fazendo perguntas complicadas e técnicas, muitas vezes sem se dar conta de que ele necessita se concentrar. Nesse sentido, a recomendação de que todos os pilotos, particularmente aqueles que voam sozinhos, adotem a regra de companhias aéreas, batizada “cockpit estéril”, proibindo quaisquer conversas estranhas ao voo durante os períodos de alta carga de trabalho, como decolagem ou pouso e voo abaixo de 10.000 pés de altitude, mostra-se bastante válida. Isso, claro, não deve impedir que os passageiros transmitam informações importantes como a presença de outra aeronave por perto ou uma luz acesa no painel.
A próxima pergunta é inevitável: “E se um sinal de alerta soar na cabine?”. O gerenciamento de panes requer do piloto uma enorme concentração em sua solução ou nas medidas da manutenção segura do voo até o ponto de pouso. Sim, se houver alguém devidamente treinado ao lado do piloto para auxiliá-lo, a chance de tudo ocorrer da melhor e correta maneira aumenta.
Mais uma pergunta clássica que se faz para o piloto voando sozinho: “Se você passar mal e desmaiar, o que acontecerá comigo?”. Desconsidere a hipótese de voar e pousar em segurança uma aeronave sem nenhuma orientação, ainda que sentado ao lado do seu piloto e com os comandos ao seu alcance: acredite, seria mais fácil ganhar numa loteria acumulada. Na verdade, esse tipo de pergunta deve ser feita sempre antes da decolagem, pois, diante de um imprevisto, há uma chance maior de se tomar uma decisão preventiva.
Ainda que a carga de trabalho seja menor em voos VFR, dividi-la com outro piloto a bordo incrementa os níveis de segurança. Certa vez, um grande empresário do setor financeiro justificou a presença de dois pilotos a bordo de seu helicóptero monoturbina VFR modelo Esquilo com um raciocínio coerente: “É o melhor, mais efetivo e barato seguro que posso fazer!”
E quanto aos voos por instrumentos, será que os riscos são os mesmos? Segunda a AOPA (Associação Americana de Pilotos), praticamente nenhum outro tipo de voo requer mais habilidade e concentração do piloto, impondo-lhe as maiores cargas de trabalho e estresse mental ou extraindo as mais altas penas para erros. “Pilotos recém-habilitados para voos por instrumentos, que completaram suas primeiras viagens solo, frequentemente relatam extremo cansaço mental, e não físico”, escreve Kevin D. Murphy, vice-presidente de educação para a segurança para a Fundação de Segurança Aérea da AOPA.
Instrutor há mais de 30 anos com pelo menos 5.000 horas de voo sem acidentes, Kevin diz que pilotos lidam muito bem com os desafios de voos por instrumentos, considerando que acidentes relacionados exclusivamente ao clima foram apontados em 12% das ocorrências registradas entre 1950 a 2010. “Grande parte dos acidentes não acontece aos pilotos habilitados para esse tipo de voo, diante de condições adversas de tempo, mas, sim, aos pilotos que insistem em voar em condições meteorológicas por instrumentos (IMC), com aeronaves não certificadas para esse fim, tentando manter contato visual com o solo e julgando mal a condição do voo sem poder debater com outro piloto as consequências de seguir por um ou outro caminho justamente por estar só”, escreve o especialista da AOPA. Às vezes, uma segunda opinião é muito bem-vinda.
Para o dono de uma aeronave, um aspecto importante a ser considerado é a organização de seu piloto na gestão dos recursos de cabine. Com a publicação da IS 91-002 pela Anac, permitindo o uso dos EFB (os famosos tablets) a bordo de aeronaves em substituição a cartas de papel e outros documentos importantes para o planejamento dos voos, a quantidade de itens que os tripulantes devem ter à mão diminuiu consideravelmente e possibilitou ao piloto ter acesso a ferramentas antes indisponíveis ou inutilizáveis do ponto de vista operacional mesmo estando presentes a bordo.
Muitas aeronaves têm pouquíssimo espaço de cabine e carregar todos os itens passíveis de consulta é fisicamente impossível. Nos tablets, o piloto consegue inserir checklists, manuais da aeronave, mapas, procedimentos, softwares de análise de performance, enfim, toda e qualquer ferramenta que julgar necessária para a realização de seu voo, sem deixar de manter as informações atualizadas, evidentemente. Tê-las à mão de forma simples, organizada e rápida é inequivocamente condição para aumento da segurança de voo.
Não perder o foco representa mais um requisito de segurança para seu tripulante, conforme enfatiza a AOPA. Desde o início de sua formação, o piloto aprende a desenvolver a consciência situacional, geralmente em contextos em que precisa responder a perguntas latentes como “onde estamos exatamente?”. Parte da consciência situacional, porém, significa pensar à frente, no próximo evento, e se preparar para ele. Considere uma aproximação por instrumentos como exemplo. Nela ocorre uma série de eventos, em uma ordem particular, como a chegada e o ajuste à órbita do procedimento, a intercepção, o momento exato de início de uma descida e por aí vai. Quando há um evento diverso, o piloto precisa imediatamente fazer o que é necessário e isso só é possível com o total entendimento da situação de momento. Com dois pilotos a bordo, as tarefas são divididas e mais situações podem ser avaliadas com mais rapidez, dando a chance de se procurar a melhor situação para evitar uma condição difícil para o voo, seja por mau tempo ou por problemas técnicos.
Sem mais delongas, já se pode responder a pergunta-chave: “Afinal, é seguro voar IFR com somente um piloto a bordo?”. Sim, certamente pode ser seguro voar single-pilot em condições IFR. Contudo, é preciso considerar que no voo por instrumentos, principalmente no período noturno, ocorrem fenômenos no organismo humano que podem aumentar ainda mais os riscos a que seu piloto já está se submetendo. Os riscos mais comuns e que já mataram muitos pilotos experientes e devidamente habilitados em voos por instrumentos pilotando aeronaves equipadas e modernas são a desorientação espacial e o “black-hole”.
Nas palavras do comandante Sergio Koch, tenente-coronel aviador da FAB, a maioria dos pilotos reconhece que a desorientação é uma das ilusões mais comuns mesmo para quem já está voando por algum tempo. “A desorientação espacial (com a sensação de estar em curva) responde por cerca de 10% dos acidentes da aviação civil”, escreve Koch.
Uma investigação do NTSB sobre o desempenho humano sugere que a solução mais útil para evitar a desorientação espacial é uma educação para os pilotos voltada para temas sobre a fisiologia e as causas psicológicas da desorientação. Na mesma investigação ficou constatado que as distrações durante curvas à noite, ou em IMC, têm sido comuns a todos os casos recentes de desorientação grave que causaram acidentes aéreos fatais.
Muitos se acidentam enquanto se engajam em tarefas que canalizam suas atenções para longe dos instrumentos de voo. Outros, mesmo percebendo um conflito entre seus sentidos corporais e os instrumentos de voo, acabam se acidentando porque não conseguem definitivamente resolver esse conflito (o instrumento diz uma coisa e a sensação em seu corpo é outra).
Os olhos são os principais responsáveis pela orientação do piloto durante o voo, uma vez que órgãos de equilíbrio nos ouvidos (chamados de canais semicirculares) e órgãos otólitos não são muito eficazes como sensores de orientação durante o voo. Voando IMC, o piloto perde a sensação de equilíbrio e de orientação fornecidos pelos olhos, que têm no “horizonte” a mais importante referência.
Em outras palavras, e considere isto um fato, todo piloto que voar em IMC, por mais experiência que tenha, vai sofrer em algum momento ou em alguma intensidade o problema de desorientação. É impossível evitar a ilusão completamente. Tudo o que ele pode (e deve) fazer é evitar que as ilusões causem problemas.
Para prevenir riscos por desorientação, a recomendação é que o piloto se concentre nos instrumentos, minimize movimentos da cabeça e, se possível, voe em linha reta e nivelado durante um minuto ou mais. Isso criará condições para que se dê um “reset” dos mecanismos de equilíbrio e estabilização do corpo, reforçando a fé do comandante nos instrumentos da aeronave (não por acaso, um dos pontos de apoio no horizonte artificial chama-se “linha de fé”).
Estudos de caso indicam que, diante da impossibilidade de se evitar as ilusões sensoriais, o que pode ajudar o piloto a reconhecer o início da desorientação e se preparar para enfrentar tais ilusões é obter informações e estar atento ao tema.
Black-hole, explica a Abul (Associação Brasileira de Ultraleves), é uma ilusão de ótica ocasionada pelo formato de uma pista ou heliponto no período noturno. Ilusão ótica por definição é a percepção de algo diferente de sua aparência real. Vale enfatizar que estudos da Boeing mostraram que essas ilusões nada têm a ver com imagens elaboradas por alucinações nem, tampouco, com irregularidades e, sim, com interpretações lógicas do que realmente observa um piloto, explicadas e previstas por conceitos de engenharia.
A pergunta que deve estar em sua mente neste momento é “por que no período noturno?”. Por causa unicamente do horizonte, que não está visível. As ilusões óticas nesse caso são predominantes.
Nas aproximações noturnas e com baixa visibilidade, o piloto pode se considerar em altitude mais elevada do que a que realmente está. As imagens refletidas são os principais fatores para percepção de profundidade. A ausência de imagens provocada por restrição de visibilidade confunde o piloto. Tendo em vista que ele não discerne as variações de cores e referências topográficas que normalmente avista em uma determinada altitude, tende a interpretar a altitude como sendo mais elevada do que realmente é. Esse efeito é notado durante os pousos noturnos e varia em cada pessoa, modificando-se conforme a intensidade e a clareza da iluminação da pista ou do heliponto.
O piloto tem a sensação de estar “mais alto” e mais distante da pista quando a iluminação externa está “fraca”. O cansaço também é um fator importante e que contribui para que esse fenômeno exponha mais o piloto e os passageiros ao risco. Numa aproximação direta em noite clara, a aeronave fica mais distante da pista do que parece estar. Podem ocorrer ilusões como a sensação de que a pista está se mexendo ou que a aeronave está derivando. E quando o piloto percebe tratar-se de uma ilusão, pode ser tarde demais.
Portanto, voar por instrumentos com apenas um piloto a bordo é uma questão de atitude, disciplina e aceitação de riscos elevados. Não há dúvida de que a presença de dois pilotos na cabine reduz drasticamente os riscos ao voo. Mas um piloto capaz de aprender com os erros do passado e se valer de estudos de caso para aplicar no seu dia a dia as soluções, muitas vezes simples, será capaz de evitar tragédias mesmo se estiver sozinho a bordo.
*Publicado originalmente na AERO Magazine edição 249,
republicado após atualização