Aeronave da Irkut planeja brigar com os Airbus A320neo e Boeing 737 MAX
Por Edmundo Ubiratan | Fotos Fernando Marcato, de Dubai Publicado em 22/11/2021, às 15h00 - Atualizado às 18h00
Nome oficial é MS-21, já que em cirílico o C equivale ao S no alfabeto latino | Fotos: AERO Magazine/Fernando Marcato
Com o desmantelamento da antiga União Soviética, o caos tomou conta das áreas de influência da Rússia e, ao longo da década de 1990, o país viu sua capacidade fabril, especialmente aquela ligada ao setor civil, sucumbir à crise. A mudança afetou profundamente a poderosa indústria aeroespacial, que perdeu protagonismo.
Houve tentativas de reformular o modelo industrial aeroespacial, mas problemas econômicos afugentavam até mesmo as mais brilhantes mentes russas, que buscavam empregos melhores no exterior. Uma das soluções para capitalizar recursos financeiros e expertise foi oferecer as excelentes instalações de pesquisas dos birôs para indústrias ocidentais. Boeing, Airbus, Embraer e tantas outras usaram túneis de vento e modelos matemáticos soviéticos para validar seus novos projetos.
Se havia grande interesse no conhecimento e na infraestrutura de pesquisa, faltava qualquer intenção, até mesmo por parte das empresas aéreas russas, em adquirir qualquer avião produzido localmente. Ano a ano, jatos Airbus e Boeing passavam a formar a maior parte das frotas e algumas empresas russas acabaram estruturadas a partir de aeronaves ocidentais.
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No início dos anos 2000, a Rússia dava os primeiros sinais de ter deixado para trás o tenso e conturbado período pós-dissolução da União Soviética. O atual presidente Vladmir Putin emergia como líder da nação e prometia colocar o país em um novo patamar, seja econômico, social, industrial ou mesmo moral. Para Putin, o fim da União Soviética tinha sido uma das maiores tragédias do século 20, ao lado da própria constituição do bloco após sucessivos golpes de Estado.
Aviônica adotada pelo MS-21 está entre as mais avançadas da atualidade, superando até mesmo os A320neo e 737 MAX
Dentro de uma visão de retomada de sua importância, Moscou buscou financiar a reestruturação do setor aeroespacial e de defesa, aglutinando sob uma mesma estrutura grandes birôs, como Sukhoi, MiG, Irkut, Yakovlev e Tupolev. Um sem-fim de reorganizações foram feitas enquanto os russos trabalhavam em novos projetos.
Painel superior (overhead) é similar ao conceito adotado pela família A320 da Airbus
Um dos mais notáveis é o SSJ-100 Superjet, desenvolvido pela Sukhoi, tradicional fabricante de caças, com consultoria da Boeing e de diversas parcerias internacionais, incluindo a francesa Safran e a italiana Leonardo. Porém, o primeiro projeto pós-URSS fracassou em diversos aspectos, começando por não ser capaz de afastar o estigma de baixa qualidade de aeronaves russas – e, pior, confirmou a desconfiança internacional segundo a qual o suporte pós-venda seria quase nulo.
Cabine do MS-21 é mais larga que o Airbus A320, note carrinho da comissária e espaço extra para circulação de pessoas
Nem mesmo a parceria com os italianos salvou o Superjet de não atender às ambições de Moscou. Contudo, em paralelo, havia o interesse de continuar reestruturando a capacidade industrial. Um dos primeiros passos foi a criação da Rostec, um dos maiores conglomerados estatais da Rússia, que passou a cuidar de praticamente todos os projetos militares e civis, o que valia para aviação, defesa, tecnologias das coisas e assim por diante. Como uma empresa separada, mas, ao mesmo tempo, parte da mesma estrutura, estava a United Aircraft Corporation (UAC), que era responsável por reunir os principais fabricantes de aeronaves, incluindo a Irkut.
Protótipo do MS-21 presente no Dubai Air Show 2021 contava com consoles de engenharia e sistemas de ensaio em voo
Em meados de 2013, o vice-primeiro-ministro Dmitry Rogozin anunciou que a Irkut trabalhava em um novo avião comercial, que estava sendo desenvolvido do zero, reunindo todo o aprendizado do Superjet. Na ocasião, o projeto foi divulgado como Yak-242, refletindo a tradição soviética de manter a Irkut à frente de alguns projetos comerciais, usando o mesmo padrão de designação. Porém, dentro desse aprendizado com nova visão de futuro, no ano seguinte, o avião foi redesignado MS-21, acrônimo para “principal aeronave comercial do século 21” ou Магистральный Самолёт 21 века, em russo. O interessante é que a letra S, no alfabeto cirílico, tem o formato do C no alfabeto latino. Ciente da diferença idiomática, a UAC optou por um jogo de letras. Oferecia o avião com o nome MC-21 em todo o mundo, mas destacavando que MS-21 é a pronúncia correta.
Escolha da grafia MC-21 foi para atender as necessidade de marketing global e nas tradições russas
Parece uma bobagem, mas isso mostrou a capacidade dos russos de absorver o melhor do marketing ocidental. Ao mesmo tempo que criava um nome fácil de ser interpretado e pronunciado em todo o mundo, afastava o estigma das nomenclaturas soviéticas, ainda que mantendo a cultura idiomática no material de divulgação. Era uma nova visão russa em relação ao projeto, que foi além ao confirmar que a maioria dos sistemas e componentes, incluindo os motores, seriam adquiridos no exterior. Além de reduzir custos e riscos, permitia criar um programa exatamente nos padrões ocidentais.
A principal novidade era a adoção dos motores da série Pure Power, da Pratt & Whitney, similares aos utilizados nos Airbus A320neo e A220 (antigo CSeries), Embraer E-Jet E2 e Mitsubishi SpaceJet. O novo avião deveria concorrer diretamente com os Airbus A320neo e Boeing 737 MAX, que haviam sido recém-anunciados e estavam em fase de desenvolvimento.
Motor PD-14 foi desenvolvido para oferecer opção russa a eventuais embargos para a série Pure Power da Pratt & Whitney
Porém, desta vez, os russos estavam na vantagem. Enquanto o bem-sucedido jato europeu tinha mais de trinta anos e experimentava sua primeira modernização (basicamente restrita a melhorias aerodinâmicas e novos motores) e o veterano 737 encarava sua quarta geração, o MS-21 era um projeto completamente novo. Sim, havia o risco de um desenvolvimento partindo do zero versus a segurança de um avião com ampla experiência global, mas os russos não tinham nada a perder em arriscar.
O programa que deu origem ao MS-21 surgiu em meados de 2006, com objetivo de criar uma família de aviões com capacidade entre 130 e 170 passageiros, alcance variando entre cinco mil e 6.300 quilômetros. Exatamente a faixa de mercado de maior sucesso nos primeiros anos do novo milênio. Contudo, a aviação iniciou um crescimento sem precedentes e modelos ligeiramente maiores passaram a ser destaque, como os A321 e os 737-800. Assim, ainda na fase de pré-design, foi estabelecido que do avião poderiam derivar diversas versões, desde as menores para competir com os A319 ou 737-700 até a opção de variantes com capacidade acima dos 200 assentos.
Dezenas de sistemas usados para certificar o avião estavam instalados no protótipo presente no Dubai Air Show 2021
Outro ponto importante dessa fase de pré-projeto foi ter como objetivo oferecer um avião ao menos 20% mais econômico do que a primeira geração do A320 e os 737 Next Generation. Curiosamente, foi a mesma premissa adotada por todos os modelos remotorizados anos depois. A tendência mostrou que a UAC estava correta e os russos ganharam novo ânimo para avançar no programa MS-21. Dentro de um cronograma bastante coerente, com custos próximos aos de programas ocidentais, a Irkut realizou o rollout do MS-21-300 (a versão para até 211 lugares em classe única e alcance de seis mil quilômetros) em junho de 2016, apenas três anos após o anúncio oficial.
Os testes estáticos ultrapassaram os 90% já em fevereiro de 2017, mostrando a maturidade do programa. Ainda assim, em um ensaio de carga acima dos 150% do esperado em uma operação regular, a wingbox rompeu, exigindo um reprojeto e reforços adicionais. As soluções aplicadas criaram condições para a realização do primeiro voo já no mês de maio, quando o MS-21 se tornou o segundo avião comercial russo construído do zero na fase pós-soviética, e o primeiro a adotar um novo conceito de projeto dentro dos padrões ocidentais.
Cabine de passageiros sem acabamento e com diversos consoles e sistemas usados pelos engenheiros
Entretanto, como nem tudo pode ser controlado pela engenharia ou por gestores de projeto, o MS-21 se viu indiretamente envolvido nas disputas políticas entre a Casa Branca e o Kremlin. Depois de a Rússia anexar unilateralmente parte do território da Criméia, pertencente à Ucrânia, as tensões com os Estados Unidos cresceram rapidamente. A primeira medida foi a adoção de alguns embargos, que, mesmo sem capacidade ou mesmo intenção de afetar a indústria aeronáutica russa, acenderam o “master caution” em Moscou.
As empresas ocidentais continuavam fornecendo equipamentos de ponta para projetos russos, assim como continuavam adquirindo centenas de toneladas de titânio russos, sem considerar diversos outros produtos. Mas o governo Putin passou a temer que, dependendo do sucesso comercial do MS-21, pudesse haver embargo em relação aos motores, o coração do avião.
Diante das circunstâncias, os engenheiros russos passaram a trabalhar em uma versão modernizada do veterano Aviadvigatel OS-90, usado nos Tu-204, Tu-214, Il-76 e Il-96. Designado PD-14, o motor recebeu uma série de melhorias, visando atender aos parâmetros existentes na família PW1000G originalmente proposta para o MS-21 e que já estavam sendo usados nos protótipos.
A melhoria do projeto tornou o PD-14 tecnicamente avançado, especialmente por usar um novo desenho das blades do motor, construída em titânio. O motor, porém, oferecia uma taxa de diluição de 8.5:1, ante 10:1 de média do CFM Leap e impressionantes 12:1 do PW1000G. Ainda assim, o PD-14 conta com um projeto aerodinâmico bastante avançado, usando uma série de recursos de projeto e construção em 3D. O motor recebeu, também, uma versão de menor capacidade, voltada para o Superjet 130, que será um modelo com um máximo de componentes russos.
Enquanto o discurso de Moscou para o Superjet 130 era de buscar substituir todos os fornecedores ocidentais por russos, no MS-21, apenas os motores ganharam destaque na propaganda política. Na teoria, os aviões destinados às empresas aéreas russas deverão ser equipados prioritariamente com os PD-14. Já os modelos de exportação devem contar com os propulsores da Pratt & Whitney.
Durante o Moscow Air Show 2021, a UAC confirmou que poderá desenvolver mais duas versões do MS-21, uma voltada para o setor cargueiro e outra, alongada, para competir diretamente com os A321neo e suas variantes. O modelo cargueiro chama a atenção por ser incomum um avião dessa classe nascer com um derivado voltado para transporte logístico. Ainda que exista demanda para variante com capacidade entre 25 e 30 toneladas de carga, o usual é o mercado buscar aeronaves convertidas, como está ocorrendo com as famílias A320 e 737NG. A russa Volga Dnper confirmou interesse no eventual MC-21 cargo, planejando renovar sua frota de média capacidade.
No lado oposto, a UAC poderá lançar o MC-21-400, com peso máximo de decolagem (MTOW) na ordem de 105 mil quilos e alcance ampliado. Durante o MAKS, ainda surgiram especulações das séries -500, -600 e MC-21X, que, além do maior peso máximo de decolagem, ainda poderão ter alcance próximo aos dez mil quilômetros. O foco seria atender ao promissor mercado de aeronaves de fuselagem estreita e longo alcance. Caso sejam confirmados, estas variantes não devem voar antes da próxima década.
Apenas a intenção de oferecer modelos derivados com focos distintos do projeto original demonstra a nova visão russa em relação ao mercado de aviação comercial. Por ora, o MS-21 deverá ser o mais novo avião da categoria com potencial de exportação, visto que o contemporâneo Comac C919 pretende atender principalmente à demanda interna da China.
Pela primeira vez, desde a invenção do avião, a Rússia conta com um projeto realmente próximo dos rivais do Ocidente e com capacidade para obter acordos internacionais importantes. O objetivo inicial é atender a países com dificuldades de financiamento entre os principais bancos. Não por acaso, no MAKS, ganharam destaque os novos acordos para financiamento junto aos bancos russos para o MS-21.
Resta agora saber como a UAC/Rostec vai promover as vendas no exterior e como vai prestar os serviços de suporte. Caso esse desafio final seja vencido, o MS-21 poderá dar asas aos sonhos de uma indústria aeronáutica russa renovada.