O Brigadeiro Casimiro Montenegro Filho esteve por trás da criação do CTA, do ITA e da Embraer
Por Ernesto Klotzel* Publicado em 24/08/2022, às 17h37
lumbrava, embora ainda em pensamento, o árduo caminho que teria de percorrer para satisfazer o que estava se tornando uma verdadeira obsessão: “Qualquer projeto nacional deve começar pela Educação”, costumava repetir. É quase natural dividir a presença de Montenegro no cenário da aviação nacional em duas fases distintas. A primeira marcada pelas conquistas territoriais, vitais para a integração nacional.
A segunda como empreendedor, inovador e conciliador, em uma nova era que participaria do surgimento do ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), do CTA (Centro Técnico Aeroespacial) e, mais tarde, da Embraer.
Em 1931 o então tenente Montenegro integrava o Grupo Misto de Aviação comandado pelo major Eduardo Gomes, originário da Artilharia. Voava como observador aéreo. Foi Montenegro, já conceituado instrutor de voo, que ensinou o major a voar e passar da Artilharia para a Aviação. Ele estabeleceu forte amizade com seu comandante e o aproximou do então comandante do Campo dos Afonsos, coronel Plínio Raulino, propondo-lhe a criação do CAM (Correio Aéreo Militar).
A empreitada tornaria completa a missão a que se propunham os sete aspirantes do Realengo: desbravar fronteiras, transportar correspondências e medicamentos, e prover apoio e integração a núcleos populacionais muitas vezes remotos e isolados.
O Correio Aéreo Militar, mais tarde CAN (Correio Aéreo Nacional), proposto pelo major Eduardo Gomes e os tenentes Casimiro Montenegro Filho e Antonio Lemes da Cunha, foi formalizado em 12 de junho de 1931 com o voo inaugural Rio de Janeiro – São Paulo, transportando malotes postais. O que deveria ser uma missão de rotina transformou- se em um voo emblemático. Junto com Nelson Freire Lavenére- Wanderley, Montenegro decolou do Campo dos Afonsos demandando São Paulo a bordo do biplano Curtiss “Fledgling” K263, conhecido carinhosamente como “Frankenstein”.
Fica a dúvida se a fama se devia à feiúra ou pelo fato de o avião canibalizar peças de outros — prática não tão rara na atual aviação comercial. O voo alongou-se por 5 horas e chegou a São Paulo ao cair da noite.
Procuraram na escuridão o Campo de Marte e, não o encontrando, preocupados com a reserva de combustível, acharam um espaço verde convidativo para o pouso — era o Hipódromo da Mooca. Simplesmente pularam o muro, tomaram uma condução até o centro da cidade e entregaram os malotes no edifício dos Correios, enviando um telegrama à base, confirmando o cumprimento da missão pioneira.
Montenegro participou da revolução de 1930 aliando-se ao movimento liderado por Getúlio Vargas, vendo em seu futuro regime o modernismo, a necessidade de novos conceitos, a modificação da ordem social e outros produtos do conservadorismo do governo Washington Luiz. Valores que, anos à frente, deixariam sua marca no cenário aeronáutico e aeroespacial do País.
No período de 1931 a 1936, Montenegro serviu em São Paulo como comandante do Núcleo do 2º Regimento de Aviação — mais tarde, 4º Comar — sendo responsável pela construção de uma pista pavimentada no Campo de Marte, a primeira do País.
A era do Educador Montenegro tinha idéia fixa com relação ao imperativo de se criar no País um núcleo de excelência para a formação de engenheiros aeronáuticos e um centro de pesquisas e desenvolvimento. Estas demandas visavam à auto-suficiência na fabricação de aeronaves e ao atendimento às necessidades específicas das aviações militar e civil.
O comandante do Núcleo, então capitão Montenegro, participou de perto da fabricação do EAY “Ypiranga”, o primeiro avião fabricado no Brasil (considerado o pai do Paulistinha), que saiu das oficinas da Empresa Aeronáutica Ypiranga, em setembro de 1935. Quando a Escola Técnica do Exército, hoje IME (Instituto Militar de Engenharia) iniciou um curso de engenharia aeronáutica, o já major Montenegro inscreveu-se, sendo diplomado em 1941 na primeira turma de engenheiros aeronáuticos, juntamente com 13 colegas.
O Ministério da Aeronáutica e a FAB (Força Aérea Brasileira) foram criados no mesmo ano para reunir as atividades civis e militares, estas desempenhadas até então pelas aviações do Exército e da Marinha. Integrado ao novo Ministério e considerado um de seus fundadores, o agora tenentecoronel-engenheiro-aeronáutico Casimiro Montenegro é nomeado em 1947 para chefiar a recém-fundada Diretoria de Tecnologia Aeronáutica, por obra do civil Joaquim Pedro Salgado Filho, Ministro da Aeronáutica do governo Vargas.
Seria um órgão à parte para cuidar do desenvolvimento científico e tecnológico da aviação brasileira. Ele estava cada vez mais convicto de que para uma indústria aeronáutica nacional independente e competitiva era necessário formar um grande contingente de pessoas em uma Escola de Engenharia de nível internacional que ainda teria de ser projetada. Para Montenegro a idéia da constituição deste futuro centro de excelência para o ensino da Engenharia, ao lado de um centro de pesquisas e desenvolvimento seria reforçada pela viagem que realizou aos Estados Unidos para transladar aviões comprados pelo Brasil. A viagem incluiu uma visita a um dos principais centros de pesquisas norteamericano em Wright Field.
Os reflexos desta visita foram a confirmação de tudo que o futuro educador pensava. Montenegro já equacionava os grandes desafios a superar: formar um corpo docente excepcional, construir boas instalações e laboratórios, e contratar professores no exterior.
A esta altura Montenegro já contava com colegas de alta patente que haviam comprado a idéia de uma Escola. O modelo a ser seguido era o do mundialmente famoso MIT (Massachussetts Institute of Technology) de Boston, EUA, segundo seu assistente, Arthur Amorim, engenheiro aeronáutico formado pelo MIT. Ele insistia para que Montenegro visitasse o MIT para confirmar que o renomado Instituto de Tecnologia norteamericano justificava sua sugestão.
Em nova viagem, Montenegro visitou o MIT pensando em obter um auxílio para a instalação de um centro de ensino e de pesquisas aeronáuticas no Brasil. Ele procurou o professor Richard Smith, chefe do Departamento de Aeronáutica, que havia viajado. Montenegro deixou em sua mesa uma carta e o esboço detalhado do que imaginava. Por meio de Oswaldo Nascimento Leal, brasileiro que estudava no MIT, recebeu pouco depois a resposta entusiástica do professor Smith. Ele estava disposto a vir ao Brasil ajudá-lo a implantar o centro de pesquisa planejado. Era chegada a hora de apresentar oficialmente o Plano de Criação do CTA ao ministro da Aeronáutica Salgado Filho, o que se deu em agosto de 1945 pelas mãos do chefe do Estado-Maior da Aeronáutica, Armando Trompowsky que, no ano seguinte, tornou-se ministro da Aeronáutica.
O plano foi aprovado e em 1946 foi constituída a Comissão de Criação do CTA. Em março de 1947 a Escola Técnica do Exército iniciava as aulas de uma turma de transição da primeira turma de engenheiros aeronáuticos que colaria grau em 1950, já em São José dos Campos (SP). Também em 1947 começaram a chegar os primeiros professores do MIT. Richard Smith tornava-se o primeiro reitor do ITA.
O instituto inovava totalmente o ensino superior no País. O curso era gratuito, os alunos moravam no campus e recebiam uma bolsa oferecida pela escola, os professores dedicavam seu tempo integral ao ensino e à pesquisa e os currículos eram semestrais, obedecendo ao modelo norte-americano.
O ambiente cultural do ITA era como Montenegro o idealizara: o mais próximo ao de uma universidade do que aquele de um centro militar de ensino. Montenegro fazia questão de criar um clima de equilíbrio entre as mentalidades civil e militar entendendo que o melhor caminho para o ITA era combinar a disciplina e o sentido de hierarquia com o grau de flexibilidade e busca de inovação própria dos pesquisadores e talentos criativos. Em frequentes episódios ele teve de recorrer a mais uma de suas qualidades: agir como o mais civil dos militares. Professores dos Estados Unidos, Europa e Brasil (ao todo, de mais de 20 nacionalidades) cumpriram um contrato previsto para os cinco primeiros anos do ITA, período durante o qual as despesas totais ficaram aquém do que seriam hoje cerca de US$ 70 milhões.
Em 1951, o ITA instituiu o primeiro curso de engenharia eletrônica que contaria com um laboratório de processamento de dados, em 1963. Em 1953 Montenegro foi promovido a brigadeiro-do-ar e em novembro de 1954 assumiu a direção do CTA, onde permaneceria até novembro de 1961 — em 1964 voltou a ocupar o cargo.
Com o ITA já consolidado, criou o IPD (Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento) dentro do CTA, passando a desenvolver um grande número de programas dirigidos principalmente às atividades aeroespaciais. Nenhum foi mais importante que o projeto IPD-6504, que criou o Bandeirante e, pouco mais tarde, a Embraer. Hoje este complexo industrial gigantesco não só transformou o panorama da aviação mundial como dinamizou toda região que tem como epicentro a cidade de São José dos Campos.
As atividades do que se tornou o pólo aeroespacial do País sacudiram os então 20 mil habitantes, transformando a cidade no que é hoje: uma comunidade vibrante de 620 mil habitantes e um dos mais importantes pólos industriais e de serviços de uma vasta região do Sudeste, com um giro que, em 2005, beirava R$ 1 bilhão.
Desde 1954, Montenegro começou a ter problemas com a visão que, mal diagnosticados, transformaramse em dano irreversível, condenandoo a viver nas trevas durante longos anos de sua vida. Cego, foi exonerado do comando do CTA em 1965 por sua esperada reação à conhecida “caça às bruxas” do golpe militar, que não as fronteiras do ITA e do CTA, uma invasão intolerável pelos seus princípios.
Em 1986 foi declarado Patrono da Indústria Aeronáutica pelo CTA e pela ANE (Academia Nacional de Engenharia). Vivendo em Petrópolis e no Rio de Janeiro, cercado pela família e alguns amigos, Montenegro só guardava — segundo sua mulher, Dona Antonieta — uma certa mágoa por ter sido “esquecido” por seus companheiros de farda, embora acompanhasse a distância a evolução de suas queridas realizações. Falecido em Petrópolis em 2000, aos 95 anos, foi enterrado no Panteão com honras militares de ministro — que nunca havia sido — com a presença do próprio ministro da Aeronáutica, oficiais das Forças Armadas, alunos e ex-alunos do ITA, professores e ex-professores.
Uma afluência maciça que pôde, mais uma vez, lembrar o equilíbrio e harmonia que desejava manter entre o modo de pensar e agir dos civis e militares sob sua influência.
O caixão do ilustre brasileiro foi carregado por seis alunos do ITA: três civis e três militares. Mais uma vez seus “meninos” haviam entendido tudo. Ozires Silva e Décio Fischetti, formados pelo ITA no início da década de 1960, lançaram o livro “Casimiro Montenegro Filho – A trajetória de um visionário”. A obra mostra fatos e atores que fizeram parte de vida de Montenegro. Depoimentos preciosos que traçam o mais acurado perfil do educador, também brigadeiro-do-ar.
Tomamos aqui, a liberdade de transcrever a mensagem de despedida dos autores que por si só define o que a coletividade de professores, engenheiros, pesquisadores e exalunos certamente gostariam de expressar:
“Brigadeiro Casimiro Montenegro Filho, um exemplo para o Brasil. Engenheiro, comandante, visionário, realizador e, sobretudo, educador: muito obrigado pela sua vida e pela sua obra. Você mostrou a todos que é um grande vencedor”.
*Texto publicado originalmente na AERO Magazine 153, de fevereiro de 2007