Baleia da Nasa: O veterano de 70 anos que transporta o futuro da exploração espacial

A demanda do programa espacial norte-americano nos anos 1960 deu vida ao icônico Super Guppy

Por Edmundo Ubiratan Publicado em 29/09/2024, às 08h00

Criado nos anos 1960 o Super Guppy ainda hoje é a espinha dorsal da logística espacial da NASA - NASA

A silhueta icônica do Super Guppy, que realmente lembra uma baleia, é reconhecida a distância e pouco lembra o veterano Boeing 377 Stratocruiser, do qual derivou. Hoje, apenas um dos cinco Super Guppy produzidos segue em atividade, transportando componentes e aeronaves da Nasa, incluindo partes fundamentais do Programa Artemis, que promete levar a humanidade de volta à Lua até o final desta década.

De certa forma, é um paradoxo ver um avião construído em 1953, portanto, há 70 anos, ser o responsável pelo transporte do mais avançado projeto espacial da atualidade.

O Super Guppy surgiu justamente por uma demanda do programa espacial norte-americano, que exigia o transporte de grandes componentes, a maioria volumosos, mas com peso relativamente baixo.

Com o centro de lançamento principal montado no Cabo Canaveral, na Florida, e complexos industriais espalhados por outras regiões dos Estados Unidos, era necessário um meio de levar tais componentes de forma segura e rápida até o atual Keneddy Space Center.

Espionagem

Nos anos 1960 o Boeing 377 Stratocruiser estava sendo retirado de serviço na maioria das empresas aéreas

Havia dois problemas adicionais. O primeiro era referente ao tamanho das estruturas, que tornava complexo e até inviável o transporte por rodovias ou ferrovias, ainda que em casos pontuais o uso de hidrovias tenha sido o melhor caminho. A maioria dos componentes seguia por via marítima, cruzando o Canal do Panamá.

O segundo entrave, não menos complexo, era a espionagem. No início dos anos 1960, o mundo assistia ao início da corrida espacial e a nuclear estava em seu auge, com os blocos soviético e ocidental disputando a hegemonia política. Espionagem e sabotagem eram uma constante em ambos os lados da Cortina de Ferro, ou seja, ninguém queria correr riscos desnecessários. 

Como levar grandes conjuntos de peças, foguetes e naves por via aérea se qualquer um deles era muito maior do que a seção transversal dos aviões da época?

O recém-lançado Boeing 707 tinha uma fuselagem com 3,75 metros de largura e o diâmetro do foguete Titan II, que, além de um míssil balístico, foi a plataforma básica do programa Gemini, tinha incríveis 10 metros, o mesmo que teria o Saturn V, das Apollo.

Enquanto a Nasa e uma série de empreiteiros contratados para o programa espacial tentavam achar uma solução, o ex-piloto da Força Aérea dos Estados Unidos (USAF, na sigla em inglês) John M. Conroy notou uma oportunidade de negócios.

Ele avaliava a compra de uma série de Boeing 377 Stratocruiser, que estavam sendo vendidos a preços bastante atraentes, mas logo notou que havia pouca ou nenhuma utilidade para os aviões aposentados por companhias aéreas norte-americanas em favor dos recém-chegados Boeing 707 e Douglas DC-8.

Cargueiro especial

A necessidade de evitar riscos logísticos e espionagem levou a criação de uma família de aviões com fuselagem ultralarga

Em uma conversa com Lee Mansdorf, um corretor que negociava a venda dos Stratocruisers, notou que seria possível usar o avião como cargueiro especial. A aeronave havia sido criada como uma resposta da Boeing para o mercado de aviação comercial de longo alcance, baseado no projeto do B-29 Superfortress, oferecendo uma fuselagem pressurizada em formato de dupla bolha, com 3,35 metros de diâmetro e equipado com os então poderosos motores Pratt & Whitney R-4360-B6 Wasp Major de 3.500 cavalos de potência.  

O leitor atento deve ter reparado que o problema inicial da Nasa era transportar com segurança o Titan II GLV, que tinha 10 metros de diâmetro, mas o Boeing 377 tinha apenas 3,35 metros de seção transversal. A dupla notou que era possível modificar estruturalmente o Stratocruiser, criando uma grande área de transporte para cargas volumosas e leves. O formato “dupla bolha” da fuselagem permitiria uma conversão radical, mas sem afetar estruturalmente o avião. Seria uma tarefa árdua, mas viável do ponto de vista de engenharia e materiais. 

Após algumas reuniões com a Nasa, quando apresentaram a ideia e conseguiram sinal verde para iniciar os trabalhos, Convoy e Mansdorf fundaram a Aero Spacelines, que tinha como objetivo viabilizar um cargueiro amplo o bastante para transportar grandes componentes do programa Gemini e, na sequência, da Apollo.

A intenção da Nasa era realizar o transporte das seções dois e três dos foguetes Saturn, que eram ligeiramente mais estreitos do que o foguete principal, com diâmetro entre 5,5 e 6,6 metros.

Baleia grávida

Porém, o apoio da Nasa não incluía nenhum suporte financeiro, como ocorria com os grandes contratados, afinal, havia pouca confiança em uma empresa que hoje seria chamada de startup.

Ao conseguir alguns financiamentos, a dupla contratou a On Mark Engineering para realizar a conversão planejada. Basicamente, a ideia era criar uma nova área, mais ampla, acima da linha central da fuselagem, ampliando o espaço para 826 metros cúbicos, com uma largura máxima de seis metros e altura também de seis metros, com comprimento constante da seção de 24 metros.

No Pregnant Guppy a área interna foi amplianda para 826 metros cúbicos, com uma largura máxima de seis metros e altura também de seis metros, com comprimento constante da seção de 24 metros. Além disso, a porta de cargas exigia a remoção completa da seção traseira do avião

O compartimento era inferior ao necessário para o Titan II GLV e o (em desenvolvimento) Saturn V, mas era o suficiente para acomodar o segundo estágio do Saturn I, o chamado S-IV (pronuncia-se S-quatro), que tinha 5,49 metros de diâmetro e comprimento de 12,19 metros (na horizontal).  

Durante os estudos, os engenheiros notaram que a porta de cargas teria de ser a parte traseira, com a cauda inteira se movimentando, incluindo os estabilizadores, para abrir um amplo espaço que permitiria a movimentação horizontal e reta da carga.

Uma porta lateral era inviável e até aquele momento não havia plano para uma porta dianteira, pois exigiria mudar a posição do cockpit ou movimentar toda a frente do avião.  

O avião pioneiro foi criado a partir de um 377 Stratocruiser da ex-Pan American (N1024V) usando a seção traseira, com cinco metros de comprimento, de um ex-BOAC (G-AKGJ). Ao final, o avião tinha uma fuselagem em “bolha tripla” e sua aparência, segundo funcionários da Nasa, lembrava uma baleia grávida. Sem um nome melhor e com alguma dose de bom humor, o avião foi batizado de Pregnant Guppy.

Processo de construção do Pregnant Guppy. Note o tamanho da nova área ao redor do avião orignal 

O primeiro voo ocorreu em 19 de setembro de 1962, sendo pilotado pelo próprio Conroy e tendo como copiloto Clay Lacy. O avião partiu do aeroporto de Van Nuy, nos arredores de Los Angeles, onde havia sido convertido. As autoridades, incluindo o controle de tráfego aéreo, ficaram receosas quanto à segurança daquele estranho avião e as equipes de segurança das cidades no entorno foram alertadas para o risco de um potencial acidente.

Ao final do voo inaugural, os pilotos reportaram que o Pregnant Guppy havia se comportado extremamente bem, com características de voo próximas às do avião original, apenas com uma velocidade um pouco menor, causada pelo arrasto maior da fuselagem. 

A campanha de ensaios foi bastante resumida, visto se tratar de um avião essencialmente experimental e em uma época em que o avanço tecnológico era tão rápido que não havia tempo para criar regras especiais para aeronaves dedicadas. Além disso, a corrida espacial estava avançando, com os soviéticos liderando.

Todavia, os sócios tinham gastado todas as economias, somadas ao pequeno patrimônio que possuíam, incluindo as próprias casas, para custear o projeto. Sem um acordo formal, temiam falir antes do final do programa ser aprovado pelas autoridades e pela Nasa.

Felizmente para eles, no verão de 1963, o Pregnant Guppy transportou o primeiro estágio do S-IV entre Baltimore, no estado de Maryland, em apenas 18 horas (incluindo carga, descarga e tempo de voo), economizando incríveis três semanas e reduzindo o custo de transporte para apenas 16 dólares por milha (aproximadamente 162 dólares em 2023), uma fração do custo marítimo. Na sequência, foi enviado o S-IVB (S-quatro-B), que era o terceiro estágio do Saturn V.

Novas versões

A Nasa aprovou o projeto e assinou um acordo para que até outros três aviões fossem construídos, mas que tivessem maior capacidade de transporte. A solução parceria relativamente simples, bastava ampliar a área de cargas, mas o projeto se mostrou mais complexo. A Aero Spaceline adquiriu nada menos que 25 unidades do Stratocruiser, tanto a versão civil como o C-97 militar, para construir mais três aviões de super transporte.  

Após uma revisão no projeto, ficou definido que a área interna do compartimento de carga teria 7,62 metros de diâmetro máximo, 7,62 de altura e 22,5 metros de comprimento útil e 33,83 metros totais, sendo 28,8 metros na seção principal e cinco metros na parte dianteira.

Note que embora a fuselagem tenha sido ampliada, com 7,62 metros de diâmetro máximo, o piso do compartimento de cargas manteve os mesmos 2,7 metros de largura do projeto original

Aqui vale um adendo, estes cinco metros na seção dianteira não podem acomodar peso, ou seja, pode ser usado como área adicional, desde que a carga esteja apoiada no piso principal. Era a área onde ficavam os bocais dos motores dos estágios dois e três, ou a cauda dos T-38 Talon, quando levados a bordo. O curioso, o piso do compartimento de cargas, ou seja, onde se fixam os volumes, tinha apenas 2,7 metros de largura, exatamente como no projeto original.  

Externamente, o avião era ligeiramente maior, com a fuselagem alongada para um total de 43 metros. O primeiro protótipo usou a estrutura básica de um C-97J Turbo Stratocruiser, que era a variante equipada com os motores turbo-hélices Pratt & Whitney T-34-P-7W, que ofereciam 7.100 cavalos de potência por eixo, com injeção de água, quase o dobro da capacidade dos motores radiais usados originalmente.

Porta dianteira

O Super Guppy ganhou uma porta de carga instalada na parte dianteira, o que ofereceria melhor aproveitamento do espaço interno e maior equilíbrio do centro de gravidade. Nas imagens o embarque de uma das seções do foguete Saturn V do programa Apollo

Ao contrário do Pregnant Guppy, o novo avião teria a porta de carga instalada na parte dianteira, o que ofereceria melhor aproveitamento do espaço interno e maior equilíbrio, incluindo do centro de gravidade. Isso exigiu que toda a seção frontal se movimentasse 110 graus, o que incluía deslocar o cockpit. O Super Guppy teria velocidade média de 250 nós, sendo capaz de transportar uma carga de até 24 toneladas. 

O primeiro voo ocorreu em 31 de agosto de 1965 e os ensaios foram realizados na Califórnia sem grandes contratempos, até que, em 25 de setembro, durante um mergulho, a seção dianteira do compartimento de cargas entrou em colapso.

Embora a carga, composta apenas por sacos de areia para simular o peso, tenha espalhado e contaminado o ar de cabine, os pilotos conseguiram pousar em segurança no lago seco de Rogers, na área da base aérea de Edwards.

Após uma avaliação de engenharia, constatou-se que a estrutura se mostrou frágil em algumas situações, inclusive de velocidade, exigindo um reprojeto, que foi concluído em poucas semanas. 

O avião logo mostrou sua boa capacidade, aliado às características de voo similares às do C-97J, com a maior diferença sendo a velocidade de cruzeiro inferior e alguma restrição quanto ao vento lateral.

Todavia, a Nasa exigia maior capacidade do avião, o que levou os engenheiros a partir para uma versão aprimorada, designado como Super Guppy Turbine (SGT). Embora ambos os projetos utilizassem motores turbo-hélices, essa nova variante era equipada com os motores Allison 501-D22C de 4.600 shp cada.

Ainda que tenham nominalmente menor capacidade do que os T-34, os novos motores não exigiam a injeção de água e eram da mesma série usada nos C-130 Hercules, P-3 Orion, L-188 Electra, C-2 Greyhound e E-2 Hawkeye. Por si só, a maior oferta de motores já reduzia os custos e ampliava a confiança nos propulsores. 

Contudo, a grande mudança no SGT para o Super Guppy original era estrutural. Em vez de usar a seção da fuselagem original, os engenheiros optaram por construir tudo do zero, mantendo basicamente asas, estabilizadores e cockpit. A nova fuselagem ficou com quatro metros de largura no piso, ainda que mantendo o diâmetro de 7,62 metros.

Pressurização

Os dois Super Guppy Turbine e o único Super Guppy entraram em serviço apoiando os esforços do programa Apollo e Skylab da NASA

 

Outra mudança importante foi referente à pressurização. Como a área de carga não era pressurizada, parte da fuselagem original foi mantida. A seção onde estava o cockpit não foi desmontada, ganhando toda uma área de carga em volta. Visualmente parece um tubo encaixado em uma ampla porta de carga. Uma solução pouco ortodoxa, mas que poupava recursos, reduzia o peso e não exigia muitas mudanças em uma área crítica: o cockpit.  

Já a porta de cargas poderia abrir em 180 graus, ampliando o acesso de veículos de carregamento. Por sua vez, o trem de pouso do nariz passou a ser o do Boeing 707, que oferecia uma altura total menor que o original, melhorando assim as manobras de carga e descarga, além de ser mais robusto. 

O curioso é que a ampla área da porta de cargas exige alguns cuidados operacionais. O primeiro dele é com relação ao vento, que jamais pode ser frontal, visto que a porta pode simplesmente atuar como uma vela e arrastar o avião ou mesmo danificar a estrutura. Outro ponto é que a abertura leva entre 30 e 40 minutos, entre o início e sua abertura plena.

É necessário um longo checklist para verificar questões importantes, desde o movimento das dobradiças e trancas, até dos sistemas de controle de voo, passando por sistemas hidráulicos, entre outros.

Um motor elétrico e 10 watts movimenta o conjunto que é operado manualmente. Os dois Super Guppy Turbine e o único Super Guppy entraram em serviço apoiando os esforços do programa Apollo e Skylab, este último o primeiro programa de estação espacial dos Estados Unidos. 

Ainda que tenha criado uma família de aviões bastante versátil e de baixo custo, a Aero Spacelines não conseguiu desenvolver nenhum projeto paralelo, embora tenha tentado criar o Baby Guppy, uma versão reduzida, também derivada do Boeing 377. Já em 1967, a empresa entrou em dificuldades e foi vendida para a Unexcelled, depois renegociada com a Tracor Aviation.

Airbus e Artemis

O único Super Guppy em serviço foi o último produzido e foi construído pela Airbus

 

Com o final do projeto Skylab, o Super Guppy original foi doado ao Pima Air & Space Museum, em Tucson, no Arizona. Na sequência, a Nasa autorizou a venda de dois SGT para a recém-criada Airbus, que passou a voar com o avião em suporte à sua logística industrial. Com plantas instaladas em diferentes países, o consórcio Airbus desde o início foi obrigado a criar uma complexa rede de transporte de grandes estruturas, em um modelo relativamente similar ao usado pela Nasa.  

Note que no Super Guppy Turbine o piso principal foi ampliado e acompanha o formato geral da fuselagem

Nos anos 1970, a Airbus estava envolvida no programa A300, além de ter sido atuante no suporte a produção do Concorde. Assim, sua frota de SGT se tornou limitada e após um acordo com Tracor Aviation, a Airbus obteve autorização para produzir mais dois aviões.

Usando exatamente o mesmo projeto, a UTA (Union de Transports Aériens) ficou responsável pela construção de outros dois SGT, que seriam derivados das células de KC-97L produzidos em 1953. O primeiro, o F-WDSG (C/n 003) foi concluído em julho 1982, enquanto a unidade final, F-WEAI (c/n 004), foi concluída em junho de 1983. 

O quarteto foi usado pela Airbus até 1997, quando foram definitivamente aposentados em favor do A300ST Beluga, uma versão de grande capacidade, derivado do A300 e que tinha como conceito a mesma ideia da família Guppy. Por uma ironia do destino, a Nasa demonstrou interesse no último exemplar produzido.

Assim, o avião foi transferido para Houston, no Texas, em 23 outubro de 1997, e iniciou a segunda fase do Super Guppy na agência. Desde então, o avião é o último em serviço, tendo apoiado os esforços da Nasa no programa do Ônibus Espacial, da Estação Espacial Internacional e agora no programa Artemis, além de tantas outras missões espaciais e de transporte logístico.

Até os anos 1990 o Super Guppy foram amplamente utilizados pela Airbus no transporte de componentes. Na época surgiu a brincadeira que "Todo Airbus antes de nascer voava de Boeing", e sua variante que "Os Airbus aprendiam a voar de Boeing"

 

Com exatos 70 anos desde que realizou seu primeiro voo como KC-97 e outros quarenta como Super Guppy, o atual N941NA não tem sequer planos para aposentadoria. Aliás, deverá ser amplamente utilizado pela Nasa nos próximos anos em diversos programas espaciais. Nada mal para um projeto que surgiu quase como uma gambiarra aeroespacial e se tornou um conceito usado ainda hoje no Super Beluga e Dreamlifter.

Boeing Artemis Apollo C-130 estação espacial Houston Electra Hercules ônibus espacial Orion P-3 L-188 Super Guppy KC-97 Allison 377 Pregnant Guppy