A origem do sistema fly-by-wire

Conheça a origem do fly-by-wire, o sistema de controle de voo que revolucionou a pilotagem das aeronaves

Por Francisco Augusto Costa* Publicado em 25/08/2023, às 12h00

Dassault Falcon 10X contará com sistema fly-by-wire similar ao utilizado nos caças Rafale - Dassault Falcon

Desde os primeiros voos, ainda no início do século 20, os inventores do "mais pesado que o ar" passaram a estudar formas de ter total controle das aeronaves, sobretudo a rolagem e guinada.

As maiores velocidades e dimensões dos aviões da década de 1920 demandaram sistemas que permitissem a redução dos esforços do equipamento e, sobretudo, dos pilotos na pilotagem dos aviões. O uso de sistemas hidráulicos trouxe vantagens óbvias e largamente conhecidas em outras aplicações: alta eficiência, baixo peso e simplicidade de funcionamento.

Apesar do salto tecnológico, a indústria aeroespacial nos anos 1960 passou a demandar tipos de controles de voo ainda mais sofisticados para guiar aeronaves com performances próximas as de foguetes (e dos futuros veículos espaciais).

No começo daquela década, os norte-americanos estavam atrás dos soviéticos na corrida espacial pela colocação de um satélite em órbita, pelo lançamento do homem no espaço e pela realização de uma caminhada espacial.

A vitória pelo maior dos troféus, a chegada à Lua, tornou-se um objetivo do governo de John Kennedy e uma obsessão para a NASA. E a missão lunar passava pela criação de controles de voo (para ambos os módulos, tanto o de comando como o lunar) completamente diferentes dos controles de voo de aeronaves convencionais.

Assim avançou a história do hoje consagrado fly-by-wire: a partir de uma demanda da Nasa junto ao Laboratório de Instrução do Massachusetts Institute of Technology (MIT) para desenvolver o sistema de controle e navegação do programa Apollo.

Ao longo das quase vinte missões do programa, o guidance computer, que trabalhava a partir de dados óticos e inerciais, cumpriu sua missão em voos e alunissagens, incluindo a missão de retorno da avariada Apollo 13.

O Lunar Landing Training Vehicle (LLTV) foi o primeiro dispositivo a voar graças aos controles fly-by-wire

Uma das soluções desenvolvidas ao longo do programa se relacionava à controlabilidade do módulo lunar durante o pouso. Para treinar os astronautas, a Nasa havia criado o Lunar Landing Training Vehicle (LLTV), um dispositivo de simulação de pouso na superfície lunar que coletava os dados dos inputs dados pelos astronautas aos controles de voo da nave e enviava esses dados para atuadores que, interpretando tais informações, moviam as superfícies de comando.

Esse simulador foi a primeira aeronave a voar integralmente com tecnologia fly-by-wire, pois não havia nenhum backup manual aos computadores analógicos que interpretavam os comandos dados pelos astronautas e refinavam a atuação das superfícies de comando.

A despeito da confiabilidade comprovada ao longo do programa lunar, o sistema contava com uma limitação: o emprego de computadores analógicos, que usam variações nas propriedades físicas da eletricidade para representar números. Um avanço a essa limitação seria o uso de computadores digitais, que, fazendo uso de código binário, passaram a permitir a utilização simultânea de uma enorme quantidade de dados por meio da programação por software.

Assim, a Nasa continuou com a sua contribuição ao fly-by-wire ao desenvolver os computadores digitais que, mais tarde, seriam empregados em seu próximo grande programa: o dos ônibus espaciais.

Os avanços nos sistemas de controle de voo eletrônicos baseados em computadores digitais não ficaram restritos a aplicações espaciais, beneficiando, também, a indústria de defesa aérea.

O F-16 foi o primeiro avião a contar com fly-by-wire digital, o que ampliou sua capacidade de manobra

Aviões de alta performance, notadamente caças e bombardeiros supersônicos, caracterizados por sua instabilidade aerodinâmica, o que lhes garante altíssima manobrabilidade, eram considerados de difícil pilotagem. Ao final dos anos 1970, a entrada em serviço do F-16, primeira aeronave de produção em massa fazendo uso do fly-by-wire digital, deu alcance global a essa tecnologia.

Do outro lado do Atlântico

Enquanto a Nasa desenvolvia os computadores responsáveis pelos sistemas de voo do programa Apollo, franceses e ingleses estudavam sua adoção em outro icônico programa, não menos ousado: o de transporte aéreo comercial em aeronaves supersônicas.

Como forma de transpor a dilatação característica do voo supersônico, que poderia afetar adversamente cabos de comando e tubulações hidráulicas, o Concorde fez uso de um pioneiro sistema fly-by-wire com backup mecânico em que suas superfícies de comando eram acionadas eletricamente por unidades chamadas Powered Flying Control Unit.

O Concorde fazia uso de um sistema fly-by-wire com backup mecânico

A despeito de sua comprovada confiabilidade com o Concorde, esse sistema fly-by-wire era ainda incipiente perto daquela que seria desenvolvida durante a década de 1980 pelo consórcio europeu Airbus.

Nos anos 1980 a Airbus inovou ao adotar o A320 com controle de voo full fly-by-wire, trazendo maior segurança através de completa proteção do envelope de voo

Os primeiros jatos lançados comercialmente pela Airbus, o A300B seguido do A300-600 e do A310, desde a concepção, utilizaram inputs eletrônicos para atuação de controles de voo – ainda se limitando à aplicação em superfícies secundárias.

Ao decidir pela elaboração de um novo projeto, desta vez um narrowbody para o segmento de mais de 150 assentos, o fabricante havia decidido, também, intensificar o uso de tecnologia embarcada, cujo principal destaque seria o emprego de comandos de voo full fly-by-wire.

Primeiros ensaios da tecnologia de controle com sidestick conduzidos pela a Airbus nos anos 1980 

Além de aprofundar o conceito de comunalidade tão importantes para a Airbus, a tecnologia de fly-by-wire do A320 traria não apenas melhorias ergonômicas ou de redução de peso e de custo de manutenção: seu grande destaque era a elevação do nível de segurança por meio da proteção do envelope de voo.

Para se certificar de que a condução da aeronave se daria sempre dentro de seu envelope normal de voo, o sistema de controle adotado pela Airbus foi baseado em um sistema de computadores que monitora os inputs dos pilotos nos comandos presentes na cabine (onde os tradicionais manches cederam espaço ao sidestick) em conjunto com parâmetros como velocidade, altitude e angulo de ataque (dentre outros).

O resultado desse monitoramento computadorizado é a manutenção do voo da aeronave, constantemente, dentro dos padrões previstos no envelope, no que diz respeito a velocidades mínimas e máximas, fatores de carga e inclinação lateral, incluindo ainda funções mais avançadas como proteção ao estol e modos temporários de liftoff durante as decolagens e flare durante os pousos.

Prevendo uma possível degradação das funcionalidades totais do fly-by-wire por perda dos parâmetros monitorados, como foi o caso do acidente do Air France 447, o sistema da Airbus conta ainda com modos de utilização do fly-by-wire a partir de diferentes níveis de degradação, as chamadas control laws.

Em situações normais, o sistema atende às normal laws. Níveis intermediários de degradação levam às chamadas alternate laws, que mantêm diferentes níveis de proteção a depender de quais parâmetros tiverem sido perdidos. A perda total de proteção e dos “comandos refinados” com manutenção da pilotagem por fly-by-wire é chamada de direct law, enquanto o backup mecânico, presente nas famílias A320 e A330/A340 é utilizado na improvável perda simultânea de todos os computadores de voo ou na ocorrência do travamento físico dos dois estabilizadores horizontais ao mesmo tempo.

Assim, no fly-by-wire desenvolvido pela Airbus, sensores de ângulo de ataque e o sistema de pitot, complementados por informações de temperatura e informações oriundas dos chamados Air Data Inertial Reference Unit (ADIRU, baseados no sistema inercial) são responsáveis por alimentar os computadores com diversos parâmetros.

A estes parâmetros são somados os inputs do piloto (humano ou automático) convertidos em sinais interpretados pelos computadores de voo, que, por sua vez, são responsáveis por orientar a correta deflexão de cada uma das superfícies de comando.

Em suma, o fly-by-wire representa diversos avanços em relação aos controles convencionais: além da substituição de componentes mecânicos (que demandam constantes manutenções) por um conjunto de sensores, fios e computadores, que dá aos atuadores das superfícies de controle comandos similares aos dos componentes mecânicos, o fly-by-wire conta, ainda, com sistema de monitoramento próprio (capaz de apontar eventuais anomalias) e proteções que dificultam sobremaneira a entrada das aeronaves em um estado indesejado de controle.

Adicionalmente, o advento do fly-by-wire permitiu à indústria evoluir também no desenvolvimento dos sistemas de controle de estabilidade, os chamados Stability Augmentation Systems.

Desenvolvidos desde a década de 1950 para melhorar a controlabilidade de aeronaves instáveis (ou com características de instabilidade em certas condições de voo), os Controls Augmentation Systems modernos, associados ao fly-by-wire, permitem uma definição computadorizada bastante precisa das características de controle e estabilidade das aeronaves contemporâneas.

Outros fabricantes

As impactantes cenas do acidente com um A320-100 no voo Air France 296 em uma exibição da aeronave, em 1988, fizeram com que a tecnologia de controle de voo difundida pela Airbus fosse recebida com ceticismo por operadores, pelo público e por outros fabricantes. Ainda que o acidente não tenha relação com o fly-by-wire, as imagens ajudaram a colocar dúvidas no sistema.

Contudo, as evidentes qualidades dessa tecnologia forçaram a sua adoção pelos principais fabricantes de aeronaves no mundo: ainda na década de 1990, a Boeing adotou o fly-by-wire como sistema de controle principal (com backup mecânico) em seu revolucionário Boeing 777.

O Boeing 777 foi o primeiro avião da Boeing a utilizar sistema de controle de voo fly-by-wire e os novos 777-9 ampliaram a capacidade do sistema

 

Em seguida ao 777, passou a aplicar em vários novos projetos, como também fizeram Embraer e a Bombardier, com os E-Jet e C-Series, respectivamente. Os dois programas adotariam controle por fly-by-wire.

O fly-by-wire passou a ser aplicado nos modernos projetos de jatos de negócios de maior porte e, mais recentemente, têm sido empregados inclusive em jatos do segmento midsize, como o Embraer Preator.

Nos dias atuais, as novas gerações de caças têm demandado ainda mais inovação, e uma melhoria de tecnologia que poderá também ser vista nas aeronaves comerciais de próxima geração é o chamado fly-by-light: em linha com as expectativas de aeronaves autônomas, o fly-by-light é uma evolução do fly-by-wire, que contará com o uso de fibra ótica para aumentar ainda mais a capacidade, confiabilidade e capacidade de processamento dos sistemas.

Texto publicado originalmentre na edição 328 de AERO Magazine, com o título
"O
fly-by-wire: As origens do sistema de voo que revolucionou a pilotagem de aviões". Publicado após adaptação para o formato web.

Embraer Airbus Boeing Dassault Nasa Apollo Concorde 777 A330 A320 E-Jet Falcon 10X Bombardier Praetor A340 AF447 Fly-by-wire C-Series Apollo 13 LLTV