A aviação de negócios surgiu nos anos 1950 quando foram lançados os primeiros aviões executivos da história
Por André Borges Lopes* Publicado em 27/01/2023, às 16h00
Um crescimento sem precedentes no uso de aviões como meio de transporte civil marcou o período que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial. Empurradas pelo progresso tecnológico dos anos de conflito, pela melhoria na infraestrutura aeroportuária e por uma assombrosa quantidade de “sobras militares” vendidas a preços camaradas, centenas de empresas de aviação comercial surgiram em todo o mundo.
Ao mesmo tempo, consolidava-se também o conceito de “avião de negócios” (ou business aircraft): aeronaves com dois ou mais motores e capacidade para voos noturnos ou por instrumentos, que pudessem transportar com conforto e segurança diretores, clientes e convidados de grandes corporações em viagens de trabalho – sem os problemas das rotas e dos horários da aviação comercial.
Um levantamento realizado em junho de 1953 nos Estados Unidos constatou que se encaixavam nessa categoria cerca de 950 aviões. O Beechcraft Model 18 respondia por 46% desse total, o Douglas DC-3/C-47 por 20%, os Lockheed L-12 (Electra Jr), L-14 (Super Electra) e L-18 (Lodestar) por 19% e os demais modelos por 15%.
Em comum, todos derivavam de aeronaves comerciais desenvolvidas antes da guerra: bimotores a pistão com cabines não pressurizadas e autonomia limitada. Usualmente, eram simples adaptações de aparelhos de linhas aéreas ou cargueiros, reconfigurados para um menor número de passageiros e com acabamento interno mais requintado.
Em meados dos anos 1950, caças militares já rompiam a barreira do som, jatos comerciais começavam a cruzar a estratosfera a 800 quilômetros por hora e os quadrimotores das companhias aéreas perfaziam travessias oceânicas de mais de cinco mil quilômetros sem escalas, voando a grandes altitudes.
Enquanto isso, a aviação de negócios se arrastava por baixo das nuvens em antigas aeronaves, que mal superavam os 300 quilômetros por hora. Era óbvio que havia necessidade de oferecer a esse público opções mais adequadas. Mas a indústria ainda buscava a melhor solução.
A primeira opção de um jato leve e ágil para transporte executivo foi oferecida pela Morane-Saulnier, que daria origem à Socata. Fabricante de aviões de combate, a empresa francesa havia colocado para voar em 1953 o protótipo de um pequeno jato bimotor de treinamento militar com dois lugares lado a lado, que não atraiu compradores.
Um alongamento da cabine e a inclusão de dois bancos adicionais deu origem ao MS-760 Paris que, além de treinador, podia ser usado como aeronave de ligação e reconhecimento.
Os primeiros clientes foram a Força Aérea e a Marinha francesas: duas centenas de unidades, entregues a partir de 1954. Na América do Sul, as forças armadas do Brasil e da Argentina também operaram o modelo.
Pouco após o início da produção, a fábrica anunciou uma parceria com a norte-americana Beechcraft para oferecer o MS-760 nos EUA em versões civis e militares. Voos de demonstração foram realizados nas principais cidades americanas, convidando empresários e celebridades para conhecer o avião.
Os vendedores destacavam a velocidade do pequeno jato, que podia chegar a 650 quilômetros por hora, como atrativo para compensar o desconforto da sua cabine acanhada, semelhante à de um carro de passeio. Mostravam também a facilidade de manutenção e substituição dos pequenos reatores Turbomeca Maboré.
Apesar dos esforços, a iniciativa nunca alcançou o sucesso. Até 1961, quando desistiu da parceria, a Beechcraft teria vendido apenas dois exemplares do Paris nos EUA. A limitada autonomia do modelo (menos de 1.500 quilômetros com carga total), a falta de familiaridade do mercado com jatos, o consumo exagerado de combustível e o alto preço de aquisição (210 mil dólares, incluindo treinamento e contrato de manutenção) assustaram potenciais interessados.
Em 1967, a Morane-Saulnier ainda tentou oferecer o Paris Jet III, uma nova versão com motorização mais potente, maior autonomia e cabine ampliada com seis lugares. Mas, àquela altura, concorrentes já haviam ocupado o mercado com aparelhos mais competitivos.
Enquanto os franceses tentavam emplacar seu pioneiro light jet, do outro lado do Atlântico, a Grumman Aircraft – fornecedora de caças para a marinha norte-americana – apostava em uma abordagem oposta. Em agosto de 1958, decolou o protótipo do Gulfstream G-159, primeiro avião projetado para atender ao mercado da aviação corporativa. Destacava-se por uma cabine ampla para 10 a 14 passageiros, na qual era possível caminhar em pé.
A disponibilidade de espaço rivalizava com a dos antigos DC-3, mas incluía os confortos dos novos aviões comerciais: pressurização, ar condicionado, isolamento acústico, toalete amplo e uma cozinha a bordo.
Na motorização, a Grumman optou por uma solução intermediária, adotando propulsores turboélice (ou “jato-hélice”, como se dizia na época): duas turbinas Rolls-Royce Dart, as mesmas usadas no avião comercial britânico Viscount, davam ao Gulfstream uma velocidade de cruzeiro na faixa dos 550 quilômetros por hora e um confortável teto de serviço acima dos 25 mil pés.
O avião podia operar de pistas curtas e, levando dez passageiros, seu alcance era de quase quatro mil quilômetros – suficiente para cruzar o Atlântico Norte ou para voar de Nova York a Los Angeles em menos de oito horas.
Obviamente, era um avião para poucos. Mas caiu nas graças dos grandes homens de negócio e das estrelas do show business. O cantor Elvis Presley pagou 1,2 milhão de dólares por um modelo com carpete dourado, bar completo e sistema de som estéreo – que deu de presente a seu empresário. Walt Disney comprou um para uso particular, que hoje está exposto na Flórida. Um exemplar operou no Brasil, a serviço da montadora Ford, com o prefixo PT-KYF.
Diante do sucesso, a Grumman esperava vender mais de mil aparelhos. O progresso da aviação atropelou esses planos: na metade dos anos 1960, jatos mais velozes dominaram o mercado e o fabricante teve de lançar um sucessor, o Gulfstream II. O modelo preservava o espaço interno e as grandes janelas ovais, mas era equipado com dois turbofan Rolls-Royce Spey que elevavam a velocidade de cruzeiro para a faixa dos 800 quilômetros por hora.
Separada da divisão militar da Grumman, a Gulfstream mudou-se para uma nova planta industrial no estado da Georgia, onde deu início à sua célebre linhagem de jatos de negócios de cabine larga.
Se é da Grumman o mérito de projetar o primeiro avião corporativo, coube à Lockheed a iniciativa de colocar em voo o primeiro “jato de negócios” – um pioneirismo conquistado por acaso. Em 1955, a empresa começou a desenvolver um jato multimotor de pequeno porte. O objetivo era atender a um requisito da Força Aérea norte-americana por um aparelho que permitisse treinar – a custos mais baixos – as tripulações dos novos bombardeiros e cargueiros a jato que entravam em operação.
Quando o primeiro L-329 JetStar decolou, em setembro de 1957, os anúncios da Lockheed destacavam sua capacidade em simular uso de armamentos, reabastecimentos em voo e navegação por instrumentos em alta velocidades. Secundariamente, era uma opção militar para transporte de pessoal e de cargas com alta prioridade.
Cortes orçamentários na USAF reduziram as encomendas, e a empresa decidiu ofertar o aparelho também no mercado civil. As asas enflechadas e quatro turbojatos Pratt & Whitney JT12 (em naceles nas laterais da cauda) levavam o jato a Mach 0,8 (cerca de 910 quilômetros por hora) com teto operacional acima de 40 mil pés.
Tanto desempenho cobrava um preço: o peso máximo de decolagem ultrapassava 20 toneladas (cinco a mais que o Gulfstream I) e sua autonomia com 10 passageiros ficava abaixo dos quatro mil quilômetros. Além do alto consumo, o custo de manutenção dos quatro motores era muito elevado para uma aeronave privada. E o preço de aquisição estava próximo dos dois milhões de dólares.
Apesar dessas limitações, o JetStar obteve razoável sucesso. Vendido a partir de 1961, logo ganhou admiradores. Elvis Presley e Frank Sinatra o escolheram para uso pessoal. Além da USAF, muitas forças aéreas ao redor do mundo adotaram o modelo como transporte VIP para autoridades e chefes de estado. Por volta de 1970, foi lançada uma nova versão com motores turbofan Garrett, mas econômicos e silenciosos. O modelo foi fabricado até 1978, e teve cerca de 200 unidades comercializadas.
A North American (mais tarde Rockwell) fabricante dos caças a jato F-86 Sabre – os rivais dos MiG-15 nos céus da Guerra da Coreia – também apresentou um jato na disputa pelos contratos da Marinha e da Força Aérea dos EUA. Menor e bem mais leve que o modelo da Lockheed, o Sabreliner voou em 1958.
Tinha asas enflechadas, cabine estreita com pequenas janelas triangulares e empregava apenas dois turbojatos Pratt & Whitney nas laterais da fuselagem, logo atrás da raiz das asas. Extensivamente usado nos EUA como treinador militar (T-39), era apreciado pelos pilotos por suas capacidades acrobáticas, herdadas do F-86.
Foi oferecido a civis em 1962, começando pela Série 40. A capacidade era para cinco a sete passageiros em configuração executiva, além da tripulação.
Mais tarde, o Sabreliner civil ganhou versões aperfeiçoadas: alongamentos e melhorias no layout da cabine, maior número de janelas e novos motores turbofan. O modelo original de 1962 tinha peso máximo na faixa das oito toneladas, velocidade de cruzeiro em torno de 800 quilômetros por hora e alcance de quatro mil quilômetros, com sete ocupantes.
Foram fabricados pouco mais de 800 exemplares, incluindo versões civis e militares, até 1982. Forças armadas do México, Equador, Bolívia e Argentina o empregaram em missões de transporte VIP.
O insucesso do MS Paris não desanimou europeus de disputar o mercado executivo. Na França, o primeiro jato de negócios de sucesso foi lançado pela Dassault. Seu protótipo voou em maio de 1963, como “Dassault-Breguet Mystère 20”. O desenho das asas com grande enflechamento derivava do caça-bombardeiro transônico “Mystère IV”, dos anos 1950.
O modelo, que levava oito a 14 passageiros, só chegou ao mercado em 1967 – já então denominado Falcon 20. Trazia muitos aperfeiçoamentos técnicos, com destaque para os novos motores turbofan GE CF700. Mais de 500 foram fabricados até 1991, dando o impulso necessário para que a Dassault Falcon se tornasse o que é hoje.
Os britânicos também se aventuraram nesse novo mercado. Pioneira no uso dos motores a reação, a de Havilland projetara o pequeno jato de passageiros “DH 125 Jet Dragon”. Os primeiros voos aconteceram no segundo semestre de 1962. O avião entrou em produção dois anos depois, já como Hawker Siddeley HS.125.
Caracterizava-se pelas asas com discreto enflechamento e dois turbojatos Bristol Siddeley Viper posicionados na parte inferior da cauda em T. Na configuração mais usual, levava oito passageiros. Versões aperfeiçoadas, a cargo de sucessivos fabricantes, incluindo British Aerospace, Raytheon e Hawker Beechcraft, foram produzidas até 2013. A Força Aérea Brasileira utilizou o modelo em versões de transporte VIP.
Mais exótica, porém sem sucesso comercial, foi a proposta germânica. O projeto iniciado em 1960 pelo fabricante Hamburger Flugzeugbau deu origem ao HFB 320 Hansa Jet, que se caracterizava pelo uso de asas com enflechamento negativo – um desenho testado no bombardeiro a jato experimental Junkers Ju 287, do final da Segunda Guerra.
Com capacidade para sete a 15 passageiros e velocidade de cruzeiro acima dos 800 quilômetros por hora, o primeiro protótipo voou em abril de 1964. Somente 47 exemplares foram produzidos, a maior parte para a Força Aérea alemã.
A mistura de sucessos e fracassos que marca a introdução dos primeiros jatos corporativos tem um traço em comum: a onipresença das encomendas militares que viabilizaram, direta ou indiretamente, o desenvolvimento das aeronaves.
Mas há uma notável exceção que, curiosamente, acabou se tornando o maior caso de sucesso nos anos pioneiros da aviação de negócios.
Sem dispor dos generosos contratos governamentais, o engenheiro e inventor norte-americano William “Bill” Lear precisava criar algo diferente para entrar no promissor mercado dos business jets.
A oportunidade surgiu na Europa, pelas mãos de seu filho Bill Jr. – piloto de testes no projeto do P-16, um pequeno jato de ataque ao solo, desenvolvido no final dos anos 1950 pela empresa suíça FFA.
O governo local desistira do avião após alguns acidentes, mas Bill Jr. enxergou nas asas retas e afiladas do modelo e no conjunto da cauda os ingredientes que seu pai buscava para um jato executivo mais ágil, leve e barato do que os concorrentes.
Em outubro de 1963, de volta aos Estados Unidos, a dupla colocou para voar o Learjet 23, um avião compacto para quatro a seis passageiros, com desempenho similar ao de jatos de negócios grandes. E com preço na faixa dos 500 mil dólares.
Reza a lenda que, visitando o protótipo do avião numa feira, um potencial comprador reclamou que não conseguia ficar em pé na cabine baixa e estreita do Learjet 23. “Você também não fica em pé dentro do seu Rolls-Royce”, respondeu Bill sênior. “Se quer caminhar pela cabine e voar três vezes mais devagar, compre um DC-3”.
Quase uma década mais tarde, retornava ao mercado – tecnicamente aperfeiçoado e com um design bem mais prático e elegante – o conceito que a pioneira Beechcraft não conseguira emplacar com o veterano MS-760.
* Texto originalmente publicado na revista AERO Magazine 303, de agosto de 2019,
com o título de "Um jato para chamar de seu" e republicado após atualização