Voamos o Bonanza G36 com o glass cockpit Garmin 1000

Painel glass cockpit Garmin G1000 é a principal novidade do Bonanza G36, mais recente versão do monomotor da Beechcraft

Hernani Dippólito Publicado em 06/12/2023, às 08h00

Com capacidade para seis pessoas, o Bonanza é capaz de cruzar a 174 nós (322 km/h) e tem alcance superior a 1.660 km - Ricardo Beccari

No auge da Grande Depressão, no final da década de 1920, o executivo americano Walter H. Beech e seu compatriota, o projetista Ted Wells, juntaram forças para a execução de um projeto considerado audacioso: um grande, potente e rápido biplano criado especificamente para o transporte de executivos.

Surgia assim, no ano de 1932, a Beech Aircraft Corporation, responsável por produzir um dos mais bonitos biplanos já fabricados até os dias de hoje, o Beech 17 Staggerwing. O Staggerwing tinha uma configuração incomum, pois a asa superior fora posicionada um pouco recuada da asa inferior, posição atípica na maioria dos biplanos.

O avião era uma revolução para a época. Seu trem de pouso retrátil ainda era novidade e o desempenho surpreendia com velocidades de cruzeiro acima dos 180 nós e estol próximo de 45 nós.

O resultado foi imediato e, até o início da 2a Guerra Mundial, mais de 400 Beech 17 foram vendidos. Alguns exemplares foram utilizados no conflito como avião de transporte de autoridades e até como bombardeiro leve. Após a guerra, a Beech continuou com refinamentos no modelo 17 garantindo o sucesso de vendas. O Staggerwing criou o nome da Beech consolidando a empresa como tradicional no ramo da aviação.

Toda esta fama foi o montante para a apresentação do que hoje é considerado o avião com o maior tempo de produção contínua de toda a história, o Beechcraft Bonanza. O Bonanza V-35, um luxuoso monomotor de quatro lugares, rapidamente substituiu o Staggerwing na linha de produção, com um preço de venda 65% mais barato do que o Beech 17.

Em voo, ele tem comportamento exemplar, com comandos dóceis e fácil utilização do compensador elétrico do profundor nos diversos regimes de potência

 

O primeiro voo do Bonanza ocorreu em dezembro de 1945 e, em 1947, ele recebeu sua certificação. O último Staggerwing produzido foi entregue no ano de 1948. Com característica esportiva e com sua distinta cauda em “V”, o V-35 começou a ser admirado como um clássico no mundo todo. Até o final do primeiro ano de construção do Bonanza, a Beech entregou mais de 1.000 exemplares deste modelo, tornando-o um fenômeno mundial.

Em 1959 a “Fortune Magazine” elegeu o Bonanza como um dos 100 melhores projetos de produção em massa. Naquele mesmo ano, a Beech promoveria uma mudança radical no seu projeto. A marca registrada da cauda em “V” seria substituída por uma cauda tradicional, resultando em uma variante inicialmente denominada Debonair. Os modelos seguintes voltaram a ser chamados de Bonanza e, em 1968, o modelo 36 foi introduzido, permanecendo até hoje em produção.

No início de setembro, eu e o fotógrafo Ricardo Beccari embarcamos em São Paulo para Belo Horizonte (MG), a fim de ensaiar o novo Beech Bonanza G36 na sede da Líder Aviação, representante no Brasil da Raytheon Aircraft Company [nota: representação em vigor no ano de 2006, data de publicação desse ensaio] empresa que desde 1979 incorporou a marca Beechcraft.

Em voo o G36 tem comportamento exemplar, com comandos dóceis e fácil utilização do compensador elétrico de profundor, nas diversas variações de potência

 

Somos recebidos pelo gerente de Vendas de Aeronaves, Philipe Figueiredo, e por João Eduardo, da área de Marketing. Eles nos apresentam toda a estrutura do prédio sede da Líder, que além de representar a Raytheon e a Helibras, atua em diversas áreas como fretamento e manutenção.

No caminho do aeroporto da Pampulha, Philipe me explica que o PR-BSW é um Bonanza G36 recém-comprado por um dos integrantes da família da construtora Cowan. No hangar da Wanair, a empresa que cuida do departamento de vôo da construtora, encontro o G36. O gerente geral da Wanair, Eduardo Lanza, nos acolhe com direito a toda a hospitalidade mineira.

O BSW já está fora do hangar quando chegamos. Como sempre, o Bonanza impressiona pelas linhas fortes e sua característica robusta. Em um primeiro momento, sinto estar diante de um velho conhecido, mas ao iniciar o cheque pré-voo começo a observar detalhes de refinamento no G36.

A começar pela cabine, onde encontro novos assentos feitos em espuma expandida e acabamento reestilizado. A Beech alterou o material utilizado nos selos das portas e adotou materiais antirruído no acabamento, promovendo o baixo nível de ruído interno, como comprovei durante o voo.

Hélice tripá Hartzell recebeu um ajuste de balanceamento dinâmico para reduzir vibrações em voo. Note o conjunto de trens de pouso que ganhou novas “portas” de abertura

O interior da cabine de passageiros é extremamente confortável. A configuração do BSW é executiva com uma mesa central para pequenas refeições. A porta dupla facilita a entrada de passageiros e bagagens. Na estrutura encontro detalhes como as “portas” do trem de pouso que são únicas, diferentes dos modelos anteriores, que eram feitas em duas peças. Existe agora na asa um ponto adicional destinado ao alarme de estol e o acrílico do para-brisa tem novo formato e tecnologia de construção.

A bela hélice Hartzell tripá recebeu um ajuste de balanceamento dinâmico, o que reduz vibrações. O motor IO- 550-B, com300hp de potência, é uma obra de arte da Teledyne-Continental.

O sistema elétrico é duplo com bateria e alternador stand-by e barras duplas de alimentação para atender a situações de sobrecarga do sistema.

O painel do G36, entretanto, concentra as principais modificações com a introdução do conceito glass cockpit. Trata-se da suíte de aviônicos Garmin G1000, um admirável sistema de telas que permite a completa integração entre o piloto e a funcionalidade dos sistemas e do voo. O painel ficou mais “limpo” e a visualização das informações vitais ao voo tornou-se mais simples.

Faço uma notificação de voo por telefone enquanto o Beccari realiza as fotos de solo. Nosso avião-paquera será um Cessna 182, pilotado pelo comandante Hollerbach, uma figura carismática da nossa aviação, com inúmeras histórias para contar.

Tudo pronto e resolvo acomodar-me no assento da esquerda do Bonanza. Ao subir na asa, confesso que me decepciono com o estribo de metal, destinado ao acesso à cabine, afinal, ele causa um grande impacto visual e perda aerodinâmica.

Duas telas digitais de 10.4 polegadas dominam o novo painel de instrumentos do Bonanza G36 com funções de PFD (esquerda) e MFD (direita)

O comandante José Roberto, piloto contratado para voar o BSW, será meu companheiro de voo. Vou me ambientando com os controles enquanto o José Roberto me apresenta ao Garmin 1000. São duas telas de 10.4 polegadas de alta resolução.

O PFD (Primary Flight Display), tela da esquerda, incorpora a maioria dos instrumentos de um painel tradicional, apresentando os mesmos dados de forma integrada e ampliada. Isto inclui os instrumentos básicos de voo e os destinados ao voo por instrumentos. O PFD traz, ainda, o ajuste dos rádios de comunicação e navegação, bem como o transponder, o que dispensa a necessidade de um console específico para os rádios.

No MFD (Multi-Function Display) estão todos os controles de monitoramento do motor e da navegação, com funções de visualização do terreno. Integrado ao sistema, está o TAWS (Terrain Awareness and Warning System), que alerta o piloto com sinais audiovisuais, sobre potenciais conflitos com outras aeronaves e com o terreno. Ainda no MFD fica um backup para os ajustes dos rádios e os controles do piloto automático, modelo GFC 700, de fácil utilização com o recurso de um Diretor de Voo (Flight Director). Os ajustes do motor são mais refinados com total visualização dos parâmetros e ajustes precisos de mistura.

Com a autorização do Controle Solo, iniciamos o taxiamento. A temperatura externa é de 30oC e Zé Roberto aciona o ar-condicionado, que demonstra ser extremamente eficiente. No ponto de espera da pista 13, executo o check auxiliado pelo simples check-list, e desligo o ar- condicionado.

Detalhe do motor Teledyne-Continental IO-550-B, de 300 hp

Decolamos e surpreendo-me com o baixo ruído interno, mesmo sem os fones de ouvido. O PR-BSW mantém razão de subida inicial de 950 pés por minuto e, depois, de 600 pés/minuto até nivelarmos a 5.500 pés de altitude. Ajustados na radial 070 do VOR BHZ vamos nos afastando para a região da Serra do Cipó, distante cerca de 40 milhas náuticas da capital mineira. Nesta parte do trajeto, analiso as condições de cruzeiro com o regime que o Zé Roberto me passa: 2.500 rotações por minuto e 23 polegadas no manifold. Anoto a velocidade indicada de 145 nós e uma VS de 165 nós pelo GPS.

O ar está turbulento e percebo um “passeio” constante do nariz enquanto o avião ajusta-se no vôo. São variações pequenas, mas o Skid-Slip localizado no topo do horizonte artificial, recurso que substitui o nosso tradicional “pau e bola”, fica em constante movimento quando o G36 passa pelas turbulências. Esta tendência diminui com velocidade mais baixa, o que não prejudica a pilotagem nas aproximações para pouso, nem durante um procedimento IFR.

Porta dupla facilita acesso à cabine, que tem quatro assentos em club-seat com mesa retrátil para refeições e reuniões. Os novos assentos são de espuma expandida e teve acabamento reestilizado. Além disso, o material utilizado nos selos das portas foi trocado, reduzindo o nível de ruído interno. Abaixo, o bagageiro interno

Sobrevoando a Serra do Cipó, demoramos uns cinco minutos para encontrar nosso avião-paquera e, logo em seguida, iniciamos a sessão de fotos. A região é muito bonita, com pequenos canyons e cachoeiras.

Esta é uma boa oportunidade de analisar o voo do Bonanza. Afinal, é preciso utilizar consideráveis amplitudes de comando nos três eixos, além de manter a velocidade baixa, na faixa dos 100 nós, para acompanhar o Skylane neste tipo de voo. O G36 tem comportamento exemplar, com comandos dóceis e fácil utilização do compensador elétrico de profundor, nas diversas variações de potência.

Após o término das fotos, busco definir melhor o raio de operação do BSW. Agora com baixa velocidade, por exemplo, o avião também se comporta bem. Consigo manter 75 nós em vôo no pré-estol com o avião “limpo”. O alerta sonoro de estol fica intermitente e mantenho 12 polegadas e 2.300 rotações. Os comandos continuam ativos com especial atenção ao profundor.

Vou aumentando o pitch e, com 70 nós, o buffet acontece com um estol suave. Nos estóis em curva, se o manche é aliviado imediatamente, as asas apenas nivelam. Quando mantenho a pressão positiva do profundor, a tendência à queda inversa de asa acontece, mas sem necessidade de violência na recuperação. O estol com o flap na posição Landing (Full flap), e com motor reduzido, acontece aos 65 nós.

Retornamos para o aeroporto da Pampulha a fim de realizar alguns toques e arremetidas. No circuito, vou reduzindo para 120 nós de velocidade na perna do vento. No través da cabeceira, ligo os faróis de pouso e reduzo a potência para 12 polegadas. Com 100 nós, aciono o flap APH (Aproach) e mantenho 90 nós no restante da aproximação. Passo de hélice e mistura à frente. No cruzamento da cabeceira a velocidade já está em 80 nós e trabalho o arredondamento na pista 13. Faço um toque e arremetida e, desta vez, peço para o Zé Roberto recolher o flap de Full para APH, pois a primeira decolagem foi sem flap.

O Bonanza sai mais firme do chão. Com 300 pés, recolho o flap e, ao cruzar 500 pés, início a primeira redução. Desta vez mantenho 100 nós em todo o circuito, pois há uma outra aeronave em aproximação. Com o pouso autorizado, executo nova aproximação, agora mais familiarizado com o avião. O arredondamento é muito simples e o pouso é garantido normalmente na aproximação. Basta o compensador estar ajustado e o regime de potência ser constante até o cruzamento da cabeceira. Pouso final e livramos a pista na interseção em frente ao hangar da Wanair.

Nesta tarde de vento calmo e temperatura na faixa dos 28°C, termino o táxi e fico pensando que a fama do Bonanza, como um dos maiores sucessos da história da aviação, com mais de 18.000 exemplares já fabricados, é totalmente justificável. Agora, com a introdução do painel G1000, este verdadeiro clássico ingressa na era da tecnologia glasscockpit. Sorte a nossa.

Ensaio publicado na edição 149 de AERO Magazine, de setembro de 2006.
O texto está na íntegra e foi apenas adaptado para a internet.

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