Novo jato de longo curso inaugura era da interface com a máquina que privilegia recursos como visão sintética, datalink, automação e paperless
André Danita Publicado em 06/10/2019, às 00h00 - Atualizado em 07/10/2019, às 01h48
Sucessor do XRS, o Global 6000 inaugurou neste ano a última geração da família da qual fazem parte, ainda, os novos Global 7000 e 8000
A família de jatos Global originou-se da experiência da Bombardier na aviação regular, propondo um novo conceito no segmento executivo. O Global Express, de 1991, revolucionou o mercado das aeronaves de ultralongo alcance ao aliar a mais confortável cabine da categoria com uma performance invejável. As asas de perfil supercrítico e design original proporcionavam um alcance próximo das 6.000 milhas náuticas a Mach .85, sem impedir que o Global operasse em pistas curtas, desfrutando de baixas velocidades de decolagem e aproximação. A robustez e a redundância de sistemas, tão vitais em cruzamentos oceânicos e voos sobre áreas remotas, também caíram no gosto de seus operadores. Tais predicados parecem ter garantido o sucesso da linha, da qual derivaram o Global 5000 (versão levemente encurtada, cobrindo 5.200 milhas náuticas) e o Global XRS, versão do Express com alcance melhorado. Com uma respeitável marca de 422 aeronaves entregues e quase 1 milhão de horas voadas, a família Global fez história e recentemente deu seu maior passo em direção ao futuro, com a entrega da primeira aeronave da versão 6000. Sucessor do XRS, o Global 6000 inaugurou, no primeiro trimestre de 2012, a última geração da família da qual fazem parte, ainda, os novos Global 7000 e 8000, de 7.300 e 8.000 milhas de alcance, respectivamente. Tivemos a oportunidade de conhecer e voar essa novidade de US$ 58 milhões durante a Labace, em São Paulo (SP), a convite da Bombardier e seu representante, a Synerjet Brasil.
O canadense Yann Lemasson, piloto-chefe do time de demonstração da Bombardier, nos recebe para um briefing na máquina, e seu entusiasmo é evidente. Não seria para menos. O Global 6000 representa mais do que uma atualização de aviônicos em um já consagrado modelo. Trata-se de uma profunda transformação na interface homem-máquina promovida pela Bombardier, daquelas vistas poucas vezes na história da indústria, batizada Vision Flight Deck. A primeira evidência disso foi a contratação da britânica Design Q, um seleto time de projetistas que tem sido responsável por interiores e exteriores de aeronaves executivas e comerciais, iates de luxo e carros como Aston Martin, Maserati e Ferrari. A idéia era tornar o cockpit um ambiente espaçoso, ergonômico e agradável aos sentidos do piloto, pois ali ele pode permanecer em etapas que superam as 12 horas de duração. Assim, a cor creme, que reveste assentos, teto e painéis laterais, melhora a sensação de amplidão, enquanto o clássico grafite define as áreas de trabalho, como pedestal, painel principal e overhead panel. Todas as linhas, no entanto, parecem integrar-se de maneira natural. Por todos os lados percebem-se detalhes de refinamento, como manetes e alavancas em metal polido, painéis de fibra de carbono e os manches elegantemente revestidos em couro. O espaço lateral aumentou com o redesenho dos consoles, e os novos assentos, muito confortáveis e ergonômicos, possibilitam boa reclinação para um descanso rápido.
Apesar do cuidado com o design, a principal estrela no cockpit do Global 6000 é sua suíte, a Rockwell Pro Line Fusion. Dotado de quatro grandes telas de LCD de 15.1 polegadas, o Fusion respresenta o estado da arte em aviônicos. Introduzindo todas as funcionalidades do FANS 1/A, como CPDLC (Controller-Pilot Datalink Communication) e ADS-C, atualmente em fase de certificação na aeronave, propõe uma interface intuitiva e completa para o piloto. O PFD (Primary Flight Display) contempla o sistema de visão sintética, ou SVS, e o Global 6000 é a primeira aeronave a trazer essa imagem sobreposta no HUD (Head Up Display). Em outras palavras, é possível voar em condições adversas com alta consciência situacional. Isso porque, olhando através do HUD, tem-se sempre a perspectiva de elevações, obstáculos e aeroportos projetados em uma natural visão externa. É como se todo o voo fosse sempre visual e diurno. Mas, se assim a situação exigir, é possível, ao toque de um botão, substituir a visão sintética pela projeção da imagem do EVS (Enhanced Vision System) de terceira geração. Com uma câmera cinco vezes mais sensível do que a versão anterior e projeção em LCD, as imagens do EVS são sensivelmente mais claras e detalhadas, como um valioso auxílio em condições noturnas e de baixa visibilidade. Já se encontra em estudos a possibilidade da combinação das imagens SVS mais EVS, e talvez, em breve, tenhamos o melhor dos dois recursos projetado no Head Up.
Com exceção dos controles de sistemas, presentes no overhead panel, quase todo o restante das funcionalidades do limpo cockpit são acessadas diretamente nas telas por meio de dois CCP's (Cursor Control Panel) - trackballs que ficam exatamente na posição de descanso da mão do piloto sobre o pedestal. O Yann mostra uma programação de FMS em uma etapa hipotética entre São Paulo e Londres, e o que mais impressiona é a possibilidade de montar uma rota completa sem necessidade de fazer nenhuma entrada no teclado alfanumérico. Graficamente tudo se resolve: basta clicar sobre o aeroporto de saída, escolher pista e subida, para então se interligar a sucessivas aerovias e a uma chegada ao aeroporto de destino. Antes da confirmação, porém, o piloto tem a oportunidade de ver a aerovia ou o procedimento em questão pontilhados na janela de navegação e conferir visualmente suas inserções. Em questão de segundos, uma complexa rota está pronta, e basta entrar com os números na página de peso e balanceamento para que o gráfico do envelope apareça no display, outra grande novidade desta categoria de aeronaves. A sintonia de auxílios rádio, como VOR, NDB e ILS, pode ser feita clicando sobre o respectivo símbolo no mapa, tornando a configuração de rádios para uma aproximação muito rápida e diminuindo as chances de equívocos.
As quatro telas são plenamente configuráveis, o que dá liberdade para que o piloto visualize o que mais lhe convier em cada fase do voo. As opções são tantas que há atalhos para até nove memórias de configurações, sendo oito delas programáveis. O Global 6000 é capaz de operar paperless, ou seja, elimina a necessidade de cartas e manuais em papel, pois dispõe de dois servidores redundantes para armazenamento de dados. As cartas Jeppesen são automaticamente selecionadas de acordo com a fase do voo e seleções feitas no FMS, e o símbolo da aeronave navega por sobre elas. Os manuais de voo, QRH's e outros documentos estão disponíveis para consulta nas telas. Sinto falta apenas dos checklists eletrônicos, que serão em breve homologados. A Bombardier, por sinal, investiu em aplicativos bastante funcionais para iPads, que acompanham a aeronave - um deles possibilita acesso e atualizações rápidas a toda documentação da aeronave, enquanto o outro se vale da rede wireless de bordo para controlar funções da cabine de passageiros, como sistema de entretenimento, luzes, abertura de cortinas das janelas e controle das três zonas de temperatura. Qualquer passageiro pode converter seu smartphone ou tablet em um completo controle remoto. O pessoal de manutenção também se utiliza da rede sem fio para acessar o OMS (Onboard Maintenance System) a partir de um laptop, facilitando o diagnóstico de falhas.
Na cabine de passageiros, o Global 6000 mantém-se atualmente no topo de sua categoria. É a mais espaçosa e silenciosa entre seus competidores. O luxuoso interior possibilita arranjos de 8 a 19 passageiros, com as mais diversas opções de amenidades, destacando-se o chuveiro. Um belo trabalho de engenharia e ergonomia alocou o "box" entre o toalete traseiro e o compartimento de bagagens, sem no entanto ocupar muito espaço, e passageiros desfrutam de até 40 minutos de banho quente durante o voo. Em conversa com o piloto-chefe de um operador brasileiro, que adquiriu um exemplar do 6000, descobri que o chuveiro poupa algo em torno de uma hora e meia do tempo que seus passageiros gastariam em seus destinos para deslocar-se a um hotel em preparação para um dia de trabalho. Quando o tempo é fator preponderante na vida de um passageiro, como acontece com altos executivos, esse recurso pode ser decisivo na escolha da aeronave. Se o entretenimento também fizer parte da viagem, o 6000 oferece a última palavra em recursos a bordo com o Rockwell Collins CES-5000 (Cabin Entertainment System), sendo a primeira aeronave completamente HD de série. De resto, basta reclinar os confortáveis assentos e aproveitar a viagem. O Global chega mais rápido, com um cruzeiro de até Mach .88, mantendo a sensação de altitude de cabine de apenas 4.500 pés em voos no FL450, traduzindo-se em menos cansaço ao final de uma longa jornada.
Poucos dias depois do briefing, chega a hora de voar, e minhas melhores expectativas mais tarde se mostrariam superadas pelos planos do Yann sobre nosso roteiro. Com 14.800 libras de combustível e mais cinco passageiros a bordo, totalizamos um peso de decolagem de 68.856 libras, muito abaixo das 99.500 libras de MTOW (Maximum Take-off Weight). Nessas condições as velocidades de decolagem calculadas eram: V1-118, VR-118 e V2-131, enquanto a melhor razão de subida monomotor em rota (aqui chamada VT) aconteceria aos 162 nós. Somos autorizados inicialmente na subida Diadema/Lopes, para manobras no FL140 próximo a São José dos Campos. Na partida já se percebe o alto nível de automação de sistemas do Global 6000, que requer pouquíssimas ações para colocar os enormes Rolls-Royce Deutschland BR710A2-20 em marcha. Com flaps configurados em 6 graus, iniciamos o suave táxi para a cabeceira 17R, apesar das eternas imperfeições de nossos pátios e taxiways.
Assinado pela britânica Design Q, interior traz grafite clássico nas áreas de trabalho, com manetes e alavancas em metal polido | Global 6000 é a primeira aeronave a trazer imagem sobreposta no Head up Display |
Ao ingressar na pista, noto a sua representação na visão sintética do PFD, um valioso auxílio em baixa visibilidade e aeroportos pouco familiares para a tripulação. Com o autothrottle já armado, basta avançar os manetes para meio curso para que o sistema se encarregue de completar a potência de decolagem, e o Global "pula" à frente, impulsionado por mais de 29.000 libras de empuxo. A tarde de domingo é turbulenta, com muitos cúmulos formados ao longo de nosso caminho até São José, e o Global mostra um incrível amortecimento dos esforços pelas asas de grande envergadura e a dinâmica da caixa central que as une à fuselagem. Ao atingir o FL140, solicitamos manobras no setor leste do VOR SJC, o que nos é prontamente atendido pelo Controle São Paulo. Para começar a diversão, o Yann sugere curvas de grande inclinação para ambos os lados. Usando somente o HUD como referência, basta colocar o FPV (Flight Path Vector, ou Vetor de Trajetória de Voo) sobre o horizonte e assim mantê-lo durante toda a manobra, tornando simples a manutenção de altitude.
Apesar da envergadura, o 6000 é bastante responsivo em rolamento, e é preciso finesse para não provocar uma sobrerreação dos ailerons e roll-spoilers hidráulicos. O próximo exercício prevê uma aproximação ao estol, com ativação do sistema de proteção e recuperação automática. Para tal, reduzo manetes e vamos configurando a aeronave sucessivamente para a condição de pouso. O Global se comporta muito bem em baixas velocidades, e tenho a nítida impressão que "sobra asa". No limiar do ângulo de ataque crítico, no entanto, o 6000 decide acabar com nosso abuso, automaticamente reengajando o autothrottle e elevando a velocidade de volta à VAPP (Velocidade de Aproximação). Tudo isso acontece sem nenhum sobressalto, e a variação de altitude durante a manobra não chega a 50 pés.
Reaproamos o VOR SJC e iniciamos descida para um procedimento de aproximação ILS Y da pista 15, rapidamente configurado pelo Yann em nosso FMS. Enquanto isso, aproveito para observar o pequeno domo que simboliza, na visão sintética projetada no Head Up, o aeroporto de destino. Em meio a outros símbolos de obstáculos e terreno, o aeródromo se destaca, em um interessante recurso de consciência situacional. Não menos importante é a acertada decisão da Bombardier de tornar o Flight Path referência primária de voo, seja no HUD ou PFD, em vez do tradicional pitch. Com ele, é possível saber, por meio das referências inerciais, a projeção de sua trajetória no espaço comparada a terreno, obstáculos e formações meteorológicas. E por falar em formações, o avançado radar MultiScan cruza a base de dados de terreno com a informação de pitch e altitude para determinar o ângulo ótimo de antena, suprimindo automaticamente retornos de solo e eliminando a necessidade de ajuste de tilt. Ainda, as formações detectadas continuamente "navegam" pelo mapa mesmo entre duas varreduras de antena ou mediante mudança de proa da aeronave, uma evidente evolução no conceito.
Interceptamos a final do ILS da pista 15 e o Yann me orienta a usar o máximo do automação, simulando uma aproximação perdida. Com piloto-automático e autothrottle acoplados, ao atingir os mínimos, tudo que faço é pressionar o Go-around Button e o Global roda para a atitude de arremetida e deixa o ILS para assumir a trajetória FMS programada, restando ao piloto apenas retrair flapes e recolher o trem de pouso. Além da suavidade da manobra, impressiona também saber que, caso estivéssemos em condição monomotora, o procedimento seria exatamente o mesmo, sem nenhuma interferência requerida.
Overhead panel | ||
Telas de LCD de 15.1 polegadas do Rockwell Pro Line Fusion | Controle de entretenimento de bordo via tablet | Pista reproduzida no PDF |
O Global 6000 já nasceu bem-sucedido, compondo parte de um pedido de 120 aeronaves da família anunciado pela operadora norte-americana de propriedade compartilhada NetJets. No Brasil, outros quatro exemplares devem se juntar, nos próximos dois anos, às seis aeronaves das séries Express, XRS e 5000 que por aqui já operam. Com o advento do Vision, a Bombardier promoveu um mais do que justo casamento de uma aeronave projetada à frente do seu tempo com o mais avançado cockpit do mercado. É o futuro, se reinventando.
* Publicado originalmente na AERO Magazine 221 · Outubro/2012
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1 Nível do mar/ISA/MTOW
2 Nível do mar/ISA/MLW
GOSTEI
- Tecnologia embarcada
- Suíte de aviônicos
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- Design
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NÃO GOSTEI
- Checklist eletrônico ainda em fase de homologação