Transporte Aéreo Clandestino – Um mal sem fim

Uso irregular de aeronaves privadas em voos fretados ainda custa a vida de muita gente

Shailon Ian Publicado em 29/05/2019, às 17h00 - Atualizado às 18h02

Em artigo na AERO Magazine, publicado em 2015, eu já alertava sobre os riscos e o mal que o transporte aéreo clandestino – TACA – representam para a aviação civil brasileira. No artigo expliquei que o TACA não só representa concorrência desleal, mas também é um atentado contra a segurança de voo. Um verdadeiro câncer que deve ser combatido.

O que mudou nesses quatro anos? Quase nada.

As estatísticas cresceram, com a morte de mais gente sendo transportada irregularmente. Gente desconhecida e gente famosa. Tivemos agora mais um caso que levantou dúvidas quanto à natureza da operação. Uma aeronave de instrução, utilizada por um aeroclube estava transportando um cantor e caiu, causando a morte dos três ocupantes.

REGULAMENTOS AERONÁUTICOS

Conforme mostro em meus cursos, os regulamentos aeronáuticos não foram criados aleatoriamente, mas a partir de estudos e da experiência, muitas vezes negativa. Foi através de acidentes e fatalidades que a comunidade aeronáutica acumulou conhecimento, desde 1944.

O objetivo dos regulamentos aeronáuticos não é criar burocracia ou angariar recursos para determinada agência, seu objetivo é estabelecer critérios mínimos a serem seguidos pelos integrantes da indústria em questões como: investigação de acidentes, segurança operacional, certificação de produtos aeronáuticos, operações aéreas, formação e certificação de pessoal, dentre outros aspectos do negócio.

Tão pouco a regulamentação é uma exclusividade brasileira, ela existe de maneira muito similar em todo país signatário da convenção de Chicago e membro da ICAO. Então, não passa de falácia argumentar que somente no Brasil um operador aéreo tem que cumprir tantas regras. Esse é um padrão mundial, que existe há mais de 70 anos. É adotado aqui, na Europa, nos Estados Unidos e em vários outros países com a aviação minimamente desenvolvida.

A LÓGICA DA REGULAMENTAÇÃO

Sem compreender a lógica por trás da regulamentação muitos argumentam que um avião é seguro ou não é seguro. Que se ele pode voar somente com o piloto, pode transportar passageiros também. Mais uma falácia. Um discurso falso utilizado para justificar um crime.

A regulamentação pode ser dividida em dois grupos: O primeiro os regulamentos utilizados para a certificação do produto aeronáutico e o segundo referente a regulamentação que trata da operação desses produtos depois de fabricados e entregues.

Em ambos os casos a regulamentação é construída de forma a aumentar e tornar mais restritivos os requisitos, como o aumento da capacidade da aeronave de transportar pessoas leigas, sem conhecimento e sem cultura aeronáutica.

Assim, um avião que foi projetado e certificado para uso do próprio piloto possui requisitos mais brandos do que um avião certificado para transportar passageiros. Não é uma questão de desvalorizar a vida do tripulante, ao contrário, é um reconhecimento ao conhecimento e capacidade técnica do tripulante, sabendo que aquele profissional tem conhecimento técnico suficiente para fazer avaliações de risco que um leigo não possui. Essa gradação nos requisitos de certificação permite que a indústria cresça de forma segura atendendo aos diferentes níveis de usuários existentes.

Da mesma forma, os requisitos e regulamentos operacionais seguem a mesma lógica. Eles são mais exigentes e restritivos na medida em que a operação envolve mais passageiros. Eles se iniciam no Brasil com o RBHA 91, que possui nos FAR Part 91 e Jar Ops 1 seus similares americanos e europeus, respectivamente. A partir do RBHA 91, que estabelece o MÍNIMO a ser adotado por qualquer aeronave voando no Brasil, e tem sua concepção focada no piloto-proprietário da aeronave, que será usada sem fins comerciais. A regulamentação aumenta o grau de exigência da operação na medida em que as diferentes operações comerciais são desejadas, desde treinamento, passando por aeroagrícola, serviços aéreos especializados, táxis aéreos e por fim a aviação comercial.

A lógica mais uma vez reside no fato de não se exigir demais de operações onde o público é constituído de pessoas técnicas com conhecimento de aviação, sem exposição de terceiros e leigos. Então, a legislação não é mera burocracia como alguns aviadores e profissionais da indústria querem classificar.

Da mesma forma as autoridades aeronáuticas, a ANAC inclusive, devem priorizar sua fiscalização. É interessante verificar esses mesmos profissionais que criticam a ANAC e suas regras – descumprindo grande parte delas, pedir por mais fiscalização sempre que um acidente acontece.

A ANAC, assim como todas as demais autoridades, concentra sua fiscalização nas empresas aéreas comerciais, que operam grandes jatos, e seus prestadores de serviço. Isso mais uma vez faz sentido. Se você e eu podemos comprar uma passagem aérea sem se preocupar em que empresa vamos voar é por causa dos regulamentos e da fiscalização da ANAC. Eu mesmo fui responsável por essa área quando trabalhei no DAC, sei das dificuldades e da quantidade de trabalho que é necessária para fiscalizar e manter atualizados os regulamentos técnicos.

Ao exigir mais ANAC na aviação geral nós estamos exigindo algo que a autoridade não pode nem deve cumprir. Na verdade, em países como o Reino Unido, a aviação geral é auto regulamentada, liberando a autoridade para se concentrar ainda mais no que interessa.

SER HONESTO É DIFÍCIL E CARO

Contudo, embora exista uma lógica por trás da regulamentação e da fiscalização nada justifica a dificuldade e lentidão da autoridade brasileira para homologar e certificar táxis-aéreos e outros operadores que não os operadores comerciais.

Esse é um dos principais argumentos utilizados pelos transgressores “a ANAC é muito lenta e incapaz de analisar tecnicamente minha solicitação em um prazo minimamente razoável”. Esse fato, verdadeiro, é agravado quando o operador recebe respostas evasivas e comunicações da ANAC feitas com a clara intenção de cumprir com um prazo auto imposto e transferir para o operador a responsabilidade pela morosidade dos processos. Me recordo de uma vez que recebi um oficio da ANAC, depois de 90 dias, reprovando uma MEL que eu havia protocolado por conter erros de português na introdução. Tal postura corrobora o discurso de que cumprir com os regulamentos é impossível e penaliza aquele que quer andar corretamente.

A lógica da regulamentação faz com que os requisitos mínimos variem de acordo com a classe e a operação da aeronave. Assim sendo uma aeronave utilizada para transporte particular possui menos requisitos legais a serem cumpridos do que a aeronave utilizada para taxi aéreo, que por sua vez possui menos requisitos a serem cumpridos do que as grandes aeronaves utilizadas para transporte regular de passageiros.

Ou seja, ao utilizar um avião particular para a atividade comercial de transporte de passageiros os requisitos mínimos estão incompatíveis com a atividade executada. Isso, na prática, envolve uma série de fatores. Por exemplo: os requisitos de organização da manutenção, padronização das operações, treinamento dos pilotos e gestão da segurança operacional.

Por isso não é válido o argumento de que um avião particular com boa gestão é tão seguro quanto um avião de taxi aéreo. Manter uma aeronave privada dentro da regulamentação é muito mais simples, e barato, do que manter a aeronave segundo as regras e regulamentos de operadores comerciais. Um operador aéreo comercial de bom nível possui condições de manutenção, operações e segurança da operação significativamente mais elevadas do que um operador particular.

Para confirmar tal observação, basta analisarmos os indicadores de acidentes na aviação privada e na aviação comercial (táxis aéreos) fornecidos pelo CENIPA. Os acidentes e incidentes, por horas voadas, envolvendo aeronaves privadas são um número significativamente maior do que os envolvendo aeronaves de táxi aéreos. Observe que o indicador de acidentes por horas voadas elimina o efeito da frota de aeronaves privadas ser maior do que a frota utilizada por taxi aéreo.

Além do risco descrito acima, existe o fato das apólices de seguro possuírem cláusulas específicas que negam cobertura em caso de eventos com aeronaves realizando transporte aéreo clandestino. Ou seja, os passageiros além de ficarem expostos a um perigo potencialmente maior, não possuem garantia nenhuma de cobertura de seguro.

CONTINUA SENDO UM CÂNCER A SER COMBATIDO

Eu disse em 2015 e repito hoje: seja motivado pela falta de informação dos usuários, seja pela morosidade da ANAC, seja pela ação de profissionais mal-intencionados, o transporte aéreo clandestino funciona como um câncer que ataca a indústria.

Quando um operador aéreo compete com outro operador aéreo, as regras e os mínimos exigidos estão definidos e devem ser cumpridos por ambos. Isso permite que o usuário consiga optar pelo que melhor atende em aspectos como preço, comodidade e atendimento, sem levantar dúvidas quanto ao mínimo de segurança estabelecido.

Entretanto, quando um operador aéreo compete com um operador clandestino a premissa de que os padrões de segurança mínimos são atendidos pelos dois não é mais verdadeira. Por isso o taxi aéreo clandestino representa competição desleal, às custas da segurança de seu passageiro.

O transporte aéreo clandestino não é difícil de ser identificado, muitos clientes sabem que estão voando em uma aeronave privada. Enquanto a mentalidade do mercado não for alterada e todos compreenderem que embora difícil e cara, a regulamentação aumenta efetivamente os níveis de segurança, muitos mais ainda vão pagar por essa economia com a vida.

Shailon Ian é formado pelo ITA como Engenheiro Aeronáutico, é CEO Vinci Aeronáutica.

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