Somente em Oshkosh

As histórias a bordo de clássicos inesquecíveis no ano em que os Thunderbirds estrearam no maior encontro mundial de aviação

Por Santiago Oliver, de Oshkosh Fotos Edmundo Ubiratan Publicado em 01/09/2014, às 00h00


Show aéreo do B-25 Mitchell

A EAA AirVenture, realizada há 61 anos nos Estados Unidos, é o mais imponente encontro da aviação mundial, e um dos maiores eventos globais. Os números deste ano divulgados pela organização dão uma ideia do gigantismo da feira. Em 2014, cerca de 650.000 visitantes de pelo menos 69 países compareceram ao Aeroporto Wittman Field, em Oshkosh, WI, o que representou um aumento de 5% sobre 2013 e mostra uma retomada a caminho dos recordes apresentados em 2008, quando mais de 800.000 visitantes puderam ver aproximadamente 15.000 aeronaves. No que se refere às aeronaves, mais de 11.000 chegaram a Wittman Field, entre elas 997 homebuilt, 1.350 antigos e clássicos, 378 warbirds, 172 ultraleves, 98 hidroaviões, 40 helicópteros, 48 aviões acrobáticos e 8 balões de ar quente, muitos deles apresentados por 790 expositores comerciais.

Os Thunderbirds, a esquadrilha acrobática de USAF, apresentaram-se pela primeira vez em Oshkosh, o que contribui para o sensível aumento na quantidade de visitantes nos dias dos shows dos caças americanos. Outro fator também contribuiu para a volta do público neste ano: um renovado senso de otimismo na economia dos EUA, que se refletia não apenas nas pessoas que chegavam para prestigiar o mundo da aviação como também nos expositores e nos 5.400 voluntários. Na área dos jatos executivos, o destaque ficou por conta do HondaJet, cujo primeiro exemplar de série fez o seu debut e ficou exposto na Boeing Plaza.


Réplica do Gee Bee R-6 Q.E.D.

Zenith CH750

Uma das principais – e mais inusitadas – atrações da EAA 2014 foi a chamada “One week wonder”, um projeto por meio do qual milhares de visitantes puderam dividir a experiência de construir um avião. A intenção da EAA foi a de construir o kit de um avião Zenith CH 750 durante os sete dias do evento, culminando com a inspeção e teste de taxiamento, contando com a colaboração dos visitantes. Com cerca de 25.000 rebites necessários para completar a montagem da aeronave, o objetivo durante a semana foi fazer com que os visitantes parassem no estande, ouvissem umas rápidas instruções, colocassem alguns rebites e assinassem a caderneta do construtor. Cerca de 5.000 pessoas puderam dizer: “Eu coloquei rebites nesse avião”. Em paralelo, com a construção da célula, voluntários e ajudantes montaram o motor Rotax 912 num conjunto completo de parede de fogo dianteira, que, na sexta-feira, foi acoplada à célula e, finalmente, no domingo à tarde, foram feitos os testes de taxiamento.

Fairey Gannet

Perto do HondaJet, ficou estacionado o último exemplar em condições de voo da aeronave antissubmarino Fairey Gannet. “Janet the Gannet” representa a decisão britânica durante a Segunda Guerra Mundial de possuir um avião capaz de procurar e destruir submarinos inimigos, mas que só amadureceu durante a Guerra Fria e, naquela época, os dois motores a pistão V-12 haviam sido substituídos pelos turbo-hélices Armstrong Siddeley.

Entre as principais características do Gannet está o conjunto da transmissão que aciona uma hélice concêntrica com um motor e a segunda (girando no sentido contrário) com o outro. Embora girem em sentidos opostos, elas não são consideradas contra-rotativas, mas coaxiais. Para economizar combustível, uma combinação motor-hélice podia ser desligada em voo, deixando a outra para propulsar a aeronave. Em serviço, o Gannet podia carregar combinações de torpedos, bombas, cargas de profundidade nucleares, foguetes e boias sônicas.

O Gannet exposto em Oshkosh começou a sua vida como o protótipo da versão T2 com duplo comando para a Real Marinha Britânica, em 1954. Em 1960, a Fairey Aviation Company comprou-o do governo britânico e usou a sua célula para um novo protótipo, o T.5. O último Gannet em condições de voo é a paixão do seu proprietário Shannan Hendricks, de New Richmond, WI. Ele é pilotado por Harry Odone, o único piloto do mundo com certificação para pilotá-lo.

Model 71

Em 1928, a Fairchild Aircraft queria passar da construção de aviões de carga e utilitários para a produção de aeronaves comerciais. O resultado dessa mudança foi o Model 71. Alongando a fuselagem e a envergadura do Model FC-2 e utilizando um motor mais possante, o fabricante obteve um avião capaz de transportar seis passageiros (muito apertados), além de um piloto. A Fairchild produziu cerca de 100 unidades do Model 71 entre 1928 e 1930. Os registros mostram que cerca de metade da frota serviu como aviões comerciais por poucos anos, antes do surgimento dos transportes metálicos multimotores, como o Douglas DC-3. Apesar dos poucos Model 71 produzidos e dos anos que se passaram desde o fim da sua produção, dois exemplares em condições de voo estavam expostos este ano em Oshkosh. O que fez a sua primeira aparição em 2014 foi o de propriedade de Marlin Horst, uma belíssima aeronave que ostentava um esquema vinho e branco.

Lockheed Vega

Outro monomotor ainda mais raro que o Fairchild a se apresentar pela primeira vez em Oshkosh foi o único Lockheed Vega em condições de voo no mundo. A principal característica deste clássico vai além das suas vidas passadas, quando foi um bush plane, um avião executivo e uma aeronave comercial e o seu atual esquema de pintura, que representa um dos aparelhos que serviram no Corpo Aéreo do Exército, como Y1C-12.

Proprietário e restaurador, John Magoffin pilotou o Lockheed alumínio e amarelo de Tucson, Arizona, até a AirVenture, onde curtiu falar sobre sua rara aeronave à sombra das árvores da área dos Vintage Aircraft. O Vega do John, construído em 1933, foi um dos poucos a receber fuselagem metálica. Após passar pelas mãos de vários proprietários, o Vega metálico chegou até a coleção do museu aéreo em Liberal, no estado de Kansas, mas um acidente o relegou à exposição estática. John Magoffin o comprou em 1995 e o manteve armazenado pela seguinte década e meia. Entre 2010 e 2013, foi realizada a restauração: as asas necessitaram de apenas alguns consertos, mas os estabilizadores tiveram de ser totalmente reconstruídos.

O Vega possui uma pequena cúpula onde está o cockpit para um único piloto, fechado por uma porta que serve como encosto. Para a primeira decolagem, Magoffin obedeceu a uma regra fundamental para todos os pilotos de Vega:
“Assegure-se de que o encosto está fechado e travado, porque senão poderá te matar”. John estima que a fuselagem da aeronave exposta em Oshkosh seja 95% original com as asas e a empenagem de madeira reconstruídas várias vezes no decorrer dos anos.

Gee Bee

Mais um “antigo” e interessante monomotor exposto em Wittman Field foi um Gee Bee. As aspas são porque na realidade se trata de uma réplica, recentemente construída. Qualquer um que tenha prestado um pouco de interesse na história da aviação poderá rapidamente reconhecer a icônica forma de um avião de corrida Granville Brothers Gee Bee. Ele parece um motor radial encaixado dentro de um barril, com um pequeno espaço reservado para o piloto. Grandes carenagens aerodinâmicas sobre as rodas fazem com que a aeronave pareça inacreditavelmente rápida, mesmo quando está parada.

O último esforço dos Granville, o R-6 Q.E.D., manteve todas as famosas formas, mas em escala bem maior. Quando comparado aos diminutos R-1 e R-2, o R-6 é realmente enorme. Embora o R-6 fosse um avião de corridas, a sua missão era totalmente diferente à das corridas em circuito fechado para as quais estavam projetados os modelos anteriores. Ele foi projetado para as corridas em distância e o seu grande tamanho era necessário apenas para carregar combustível. Foi construído apenas um R-6, ele sobreviveu e está exposto num museu no México.

Em 2004, Jim Moss, construtor da réplica de um biplano de corrida Laird Super Solution, decidiu construir a réplica do R-6, que como a maioria das réplicas seria ligeiramente diferente do original. No interesse da segurança, o cockpit contém modernos instrumentos e, da mesma forma, as rodas e os freios também são bem diferentes aos da versão de 1930. Contudo, a principal modificação feita por Moss foi com relação ao motor. O avião original estava equipado com um Pratt & Whitney Hornet de 503 kW (675 hp), mas a réplica utilizou um P&W R-1820, capaz de produzir 1.060 kW (1.420 hp).

Model 12

Thunderbirds pela primeira vez em Oshkosh

Com grandes expectativas de vendas nos mercados de aviões executivos e pequenas aeronaves comerciais nos anos 1930, a Lockheed projetou uma versão menor do seu Electra para 10 passageiros, e o Model 12 foi uma atraente maravilha de engenharia de ótimo desempenho. Mas o poder de um mercado inconstante interveio e apenas 130 exemplares foram construídos. Este ano, em Oshkosh, havia sete dos talvez 12, que ainda estão em condições de voo, ou que podem ser capazes de voar novamente. Isso significa que mais da metade da frota existente pôde ser vista em Wittman Field.

Algumas das características exclusivas do projeto do Electra 12 são que, exceto pelo berço dos motores, toda a estrutura é feita de alumínio; também se destaca a total falta de quaisquer números de peso e balanceamento: o lendário engenheiro da Lockheed C.L. (Kelly) Johnson escreveu o manual de voo e, simplesmente, providenciou um parágrafo declarando que enquanto os compartimentos de bagagem dianteiro e traseiro não forem sobrecarregados, qualquer combinação entre os passageiros e o combustível não faria o centro de gravidade exceder os limites dianteiro e traseiro.

Outra característica que é comum aos Model 10, 12 e L-188 é o nome Electra. Aqueles que prestam atenção aos nomes dos aviões já devem ter percebido que os aviões comerciais e os caças a jato da Lockheed têm nomes relacionados com estrelas, como Vega, Orion, Altair, Sirius, Constellation, Starliner, Tristar, Starfire, Shooting Star, Starfighter e outros, exceto pelos Electra. Por quê? A esposa dele também lhe perguntou isso várias vezes, argumentando que nem ela, nem a sua mãe ou qualquer outra das mulheres da família tinham esse nome e nunca obteve uma resposta satisfatória. Só muitos anos depois, descobriu-se que Electra era o nome artístico de uma corista pela qual Johnson estivera perdidamente apaixonado. Fica explicado mais um dos mistérios da aviação.

Réplica do Tucano

O piloto brasileiro Bruce Ryan Young, de 25 anos, passou 55 horas voando, durante 17 dias, para cobrir os 10.555 km que separam o Brasil de Oshkosh. A réplica do Tucano, equipada com um motor Rotax 912S, consumiu 18,5 litros de combustível/hora a uma velocidade média de 220 km/h. Bruce é um experiente piloto comercial e ajudou a realizar o sonho do italiano Franco Rummolino, proprietário da fábrica de aviões Flying Legend. Após Franco ter entregado três kits ao Brasil, Bruce decidiu construir a aeronave com a assistência da distribuidora brasileira Erres Indústria Aeronáutica e pilotá-lo até Oshkosh. Após 600 horas de trabalho, a aeronave ficou pronta para iniciar a viagem.


Raro exemplar do Howard 500 “Vega” Solore

De Havilland C-7

Bob Schrader ainda está em uma missão com o mesmo transporte bimotor do Exército dos Estados Unidos de Havilland C-7 (DHC-4) Caribou, que ele pilotava no Vietnã há meio século. Na EAA AirVenture Oshkosh 2014, Schrader mostrava orgulhoso aos visitantes os remendos que cobriam os buracos das balas que atingiram seu avião naqueles dias. Ao lado de cada um deles havia uma pequena bandeira americana. Embora ele goste de contar as histórias desse Caribou para todos os visitantes, Schrader demostra uma especial atenção com veteranos do Vietnã que, às vezes hesitantes, sentem-se voltar ao passado ao entrar pela rampa do C-7. “A maioria dos veteranos do Vietnã não gosta de falar sobre essa época, a não ser com outro veterano”, disse a AERO o velho comandante.

Schrader vê veteranos que ainda carregam profundas cicatrizes emocionais do seu tempo no Vietnã. Ele acredita que essas cicatrizes podem inibir a capacidade das pessoas de enfrentar uma nova vida e ele diz ter visto ex-combatentes começarem a se recuperar após conversar com ele e enfrentar novamente o passado ao entrar no valente Caribou. “Ontem, três veteranos pararam junto ao avião”, disse Schrader. “Um deles parecia amargurado e, de início, não quis aceitar meu convite para subir a bordo. Os outros dois entraram no C-7 e eu comecei a lhes contar sobre a ocasião em que tive de esconder sacos cheios de corpos para que não fossem vistos pelos soldados americanos que estavam sendo levados para o combate. Eu contei essa história como uma forma de explicar os traumas que os soldados enfrentavam”, explicou Bob enquanto me lembrava de abaixar a cabeça ao entrar na cavernosa fuselagem.

“Eu vi que um dos veteranos começou a ficar emocionado”, continuou o velho piloto, “e decidi diminuir um pouco a intensidade do meu relato, como convidando o terceiro a baixar a sua guarda e abrir seu coração, enquanto o convidava novamente para entrar”. Perguntei se isso era muito importante para ele e respondeu que apenas uma situação como essa fazia valer a pena a longa viagem de Dakota do Norte até Oshkosh. “Para mim, é simplesmente fantástico ver que um show aéreo como este, aqui em Oshkosh, pode ajudar tantos veteranos”, completou Bob, que também teve de se reconciliar com suas próprias experiências de lidar com a morte a bordo do seu Caribou.

Presença maciça de brasileiros na AirVenture 2014

Debbie Travis King 

Também conversamos com a simpática Debbie Travis King, a única mulher autorizada a pilotar o único Boeing B-29 Superfortress em condições de voo no mundo, o FIFI, propriedade da Commemorative Air Force.

Debbie disse a AERO que seu pai era piloto profissional e homebuilder e que ela começou a voar antes de saber andar. “Quando estava na faculdade tirei as minhas carteiras de PP e PC, e não parei mais... Hoje, além do B-29 da CAF, piloto o Consolidated B-24 Liberator Diamond Lil”, conta, orgulhosa, a intrépida aviadora que é instrutora de jatos Falcon 900 e pilota Falcon 20, 50, 900B e 900EX, além de muitos outros aviões.

“Posso pilotar vários tipos de aviões, mas o meu preferido é o B-29, pelo seu significado histórico e a sua conexão com as Women Airforce Service Pilots (WASP) durante a Segunda Guerra Mundial”, diz Debbie. “No Sun’n fun 2012 tive a oportunidade de conhecer Dora Dougherty, uma das duas WASP escolhidas pelo tenente-coronel Paul Tibbets (o piloto do B-29 que lançou a bomba atômica sobre Hiroshima) para pilotar esses bombardeiros durante a Segunda Guerra Mundial. Dougherty, que faleceu em novembro de 2013, aos 91 anos, me disse: você tem de chegar lá e fazer o seu trabalho como você bem sabe fazer e não espere ser tratada de forma diferente; aeronaves não sabem a diferença entre os sexos. Foi o melhor conselho que já recebi”, completou, antes de sair correndo para mais um voo.

Atrações de 2015

De acordo com a direção da EAA, haverá interessantes novidades na EAA 2015, como a volta do lendário Burt Rutan, que apresentará algumas inovações à comunidade aeronáutica e, para comemorar o 70º aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial, a estrela do show deverá ser o Boeing B-29 Superfortress “Doc”, cuja restauração à condição de voo está em fase final.

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