A Saga do boeing B-29 superfortress, o superbombardeiro responsável pelo fim da segunda guerra com o lançamento das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki
Robert Zwerdling Publicado em 18/10/2011, às 13h30 - Atualizado em 27/07/2013, às 18h45
B-29 "Fifi" em apresentação na Air Venture 2011, em Oshkosh, EUA |
" De todas as cidades importantes do Japão apenas duas - Kyoto e Hiroshima - ainda não haviam recebido a visita de B-san, sr. B, tratamento que, com um misto de respeito e triste familiaridade, os japoneses dispensavam ao B-29; como todos os seus vizinhos e amigos, o sr. Tanimoto estava quase doente de ansiedade. [...] corriam boatos de que os americanos preparavam algo especial para a cidade", narra John Hersey em seu livro-reportagem Hiroshima (Companhia das Letras), dando uma ideia do temor imposto pelo bombardeiro Boeing B-29 Superfortress às linhas inimigas no final da Segunda Guerra Mundial.
"A sra. Nakamura observava o vizinho quando um clarão de um branco intenso, de um branco que nunca tinha visto até então, iluminou todas as coisas. [...] mal deu um passo (encontrava-se a 1.215 metros do centro da explosão), alguma coisa a levantou e a fez voar até o cômodo contíguo, em meio a partes de sua casa.
Quando ela aterrissou, tábuas caíram a seu redor, e uma chuva de telhas a cobriu. Tudo escureceu. [...] Ouviu uma das crianças gritar 'Mamãe, socorro!' e viu a caçula Myeko, de cinco anos, enterrada até o peito e incapaz de se mexer. Enquanto abria caminho com as mãos, freneticamente, para acudir a menina, não escutou nem avistou o menor sinal dos outros filhos".
O projeto para construção da primeira bomba nuclear começou em 1942 e recebeu o codinome "Manhattan". Os testes foram conduzidos ao longo de dois anos em Los Alamos, Estado do Novo México, e os engenheiros que participavam das pesquisas sabiam que uma arma letal como aquela não só neutralizaria a força dos inimigos do Eixo como também, certamente, reduziria o tempo da guerra, poupando, assim, a vida de milhares de civis ao redor do mundo. Contudo, levar adiante um projeto como aquele era uma medida um tanto delicada e exigiu ponderação por parte do então presidente norte-americano, Franklin Delano Roosevelt - que morreu antes da finalização do projeto. Não menos difícil foi autorizar o uso do armamento sobre o Japão, decisão que coube a seu sucessor, o presidente Harry Truman. Para os norte-americanos, a insistência japonesa na manutenção da guerra abriu um precedente para que o país utilizasse a bomba como um meio para pôr fim ao conflito.
O comandante escalado para a missão foi o coronel Paul Warfield Tibbets, líder de um grupamento vitorioso de bombardeiros B-17 na Europa. Tido como excelente aviador, Tibbets fora escalado para transportar Dwight David Eisenhower, comandante supremo dos Aliados, durante a operação africana "Tocha", realizada em novembro de 1942. Quase dois anos depois, em setembro de 1944, Tibbets conheceu o capitão da marinha William "Deak" Parsons, engenheiro de projeto balístico do projeto "Manhattan" com quem manteve relacionamento estreito durante 11 meses até o lançamento da primeira bomba atômica.
Marcas sobre o chão
No dia 6 de agosto de 1945, às 2h45 (horário local), o B-29 (s/n 44-86292) pertencente ao 509º Grupamento Aéreo, que ostentava o nome de batismo "Enola Gay" - homenagem à mãe de Tibbets -, decolou da base aérea da Ilha Tinian, uma das três pertencentes ao arquipélago das Marianas, no Oceano Pacífico, rumo a Hiroshima. A bomba pesava 4.400 quilos, o que deixou a aeronave com sobrepeso para a decolagem, mas alguns metros a mais de pista foram suficientes para que o quadrimotor deixasse o solo. O bombardeiro voou durante seis horas e meia sem qualquer tipo de problema técnico até que, às 8h15min17seg (hora local), o major Thomas Ferebee comandou o lançamento do "Little Boy", ou "pequeno garoto", artefato que media apenas três metros de comprimento, porém possuía grande poder destruidor, com força equivalente à de 12.500 toneladas de TNT.
O B-29 SUPERFORTRESS FOI O PRIMEIRO BOMBARDEIRO PRESSURIZADO DA USAAF |
Pouco antes, o copiloto Robert Lewis tecera este comentário: "Haverá uma pequena interrupção nas transmissões quando a bomba explodir". Apenas 43 segundos depois, a "Little Boy" explodiu sobre a ponte Aioi matando de 70.000 a 80.000 pessoas instantaneamente e causando danos estruturais em 90% da cidade. Perto do ponto do impacto, pessoas foram simplesmente desintegradas, restando apenas marcas sobre o chão. Calcula-se que 242.437 habitantes de Hiroshima e arredores tenham perdido a vida, incluindo aqueles que estavam na cidade quando a bomba explodiu e os que morreram de câncer por conta da exposição às cinzas nucleares.
O impacto da explosão criou uma grande esteira de turbulência, que atingiu o "Enola Gay" a 30 mil pés de altitude. Nem uma manobra de curva de 155 graus executada por Tibbets impediu que a aeronave fosse atingida pela esteira. O "cogumelo" da hecatombe nuclear passou de 45 mil pés (13.500 metros) de altura e podia ser visto a uma distância de 400 milhas náuticas (720 quilômetros). O que não impediu o B-29 de prosseguir em segurança para o seu destino final. A bordo, Tibbets decretou, em voz alta: "Meus caros, nós acabamos de lançar a primeira bomba nuclear da história". Já o navegador Theodore Van Kirk preferiu desabafar: "Obrigado, Deus! A guerra acabou e eu não correrei mais risco de ser derrubado. Agora posso ir para casa".
O que Kirk não previa é que os japoneses só se renderiam após o lançamento da segunda bomba atômica no dia 9 de agosto de 1945, esta sobre Nagasaki. O alvo primário seria Kokura, mas a cidade estava totalmente encoberta por nuvens. Os militares norte-americanos escalaram o B-29 s/n 44-27297, batizado "Bockscar", para a missão. A bomba a ser lançada recebeu o nome de "Fat Man", ou "homem gordo". Às 11h02 (hora local), uma abertura de última hora nas nuvens sobre Nagasaki permitiu ao artilheiro Kermit Beahan estabelecer contato visual com o alvo e liberar a arma letal, que explodiu sobre o vale industrial da cidade e matou 40 mil habitantes instantaneamente, deixando outros 60 mil feridos e com sequelas por envenenamento radioativo.
Fortaleza pressurizada
O bombardeiro Boeing B-29 Superfortress é uma aeronave que mexe com o imaginário das pessoas. Que o digam os participantes da última edição do show aéreo Air Venture, realizado em Oshkosh no último mês de julho. Eles tiveram a oportunidade de observar uma verdadeira relíquia da aviação em excelentes condições de voo: o B-29 pertencente à CAF (Commemorative Air Force), associação sem fins lucrativos que hoje reúne mais de 9.000 membros e uma frota de 156 aviões clássicos.
O histórico modelo passava por serviços de manutenção desde 2004, mas voltou a voar em agosto de 2010 e pôde satisfazer a curiosidade de milhares de fãs presentes nos campos do aeroporto Wittman Regional. A aeronave, cujo número de série é o 44-62070, foi batizada carinhosamente de "Fifi". Trata-se do único B-29 no mundo que ainda tem condições de alçar voo. Quando não está em "missão", Fifipode ser vista em um dos hangares da CAF em Midland, Texas.
Concebido durante os dias mais sombrios da Segunda Guerra Mundial, o B-29 tornou-se o primeiro bombardeiro pressurizado da USAAF (United States Army Air Forces). Sua versão "A" podia subir a 36.150 pés (10.845 m), com autonomia de até 5.830 milhas náuticas (10.494 km) - nos voos de traslado - e velocidade máxima de 576 km/h. O bombardeiro da Boeing foi o maior avião produzido durante o conflito e trazia a nova asa do modelo 117, concebida pelo engenheiro George Schairer e dotada de flapes do tipo Fowler, que possibilitava a operação em pistas curtas, sem prejudicar a boa autonomia da aeronave.
A ÚLTIMA APARIÇÃO DO B-29 EM CENÁRIO DE GUERRA FOI DURANTE OS CONFLITOS NA COREIA |
Outra novidade foi a introdução de torres de metralhadoras operadas por controle remoto a partir de uma estação localizada na parte traseira da aeronave. De lá o operador tinha uma visão dos armamentos graças a um sistema de periscópio. Duas torres foram instaladas na parte superior da fuselagem e duas, na seção inferior. Na cauda, o oficial "caçador" trabalhava com duas metralhadoras e um canhão de 20 milímetros. Posteriormente, nas missões em baixas altitudes, as metralhadoras radiocontroladas foram removidas, com exceção do armamento traseiro, com o intuito de livrar a aeronave de peso indesejado e, dessa forma, poupar um pouco mais de combustível.
O B-29 contava com dois compartimentos de bombas, sendo um à frente da longarina e o outro atrás dela. O oficial encarregado de soltar as bombas deveria ter o cuidado de equilibrar os pesos, caso contrário, poderia tornar a pilotagem da aeronave extremamente crítica. A tripulação técnica e o bombardeador ocupavam o mesmo casulo pressurizado na dianteira da aeronave e, para caminhar às seções traseiras, era necessário percorrer um duto bem estreito, erguido sobre o compartimento das bombas, que não era pressurizado. Os primeiros aviões foram pintados de verde-oliva claro e cinza, mas depois passaram a sair da fábrica em prata polido, já que a camuflagem deixou de ser necessária em suas missões.
O B-29 iniciou suas operações em maio de 1944 a partir de bases localizadas na Índia, executando rides rumo ao Pacífico para lançamento de bombas a altas altitudes. Porém, a partir de março de 1945, os B-29 passaram a realizar missões em níveis mais baixos, lançando bombas incendiárias e, mais tarde, as bombas atômicas que causaram a destruição maciça das cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Depois da guerra, ainda na década de 1940, os quadrimotores perderam espaço para aviões mais modernos, os grandes bombardeiros de seis motores Convair B-36 "Peacemaker".
A derrocada final viria em junho de 1955, quando o primeiro jato B-52 Stratofortress foi entregue à USAF. De qualquer maneira, os números do B-29 ainda impressionam: nada menos do que 3.970 bombardeiros foram construídos e os Estados Unidos só não produziram mais desse avião porque todos os contratos para fabricação do B-29 foram encerrados em setembro de 1945, assim que foi assinada a rendição japonesa.
A última aparição do B-29 em cenário de guerra aconteceu entre 1950 e 1953, durante a Guerra da Coreia. O modelo, porém, já estava obsoleto. Era lento diante de caças a jato, particularmente o soviético MiG-15, que podia subir a 48.000 pés (14.500 metros) com velocidade próxima a Mach 1.0. Pelo menos 34 aviões B-29 foram derrubados, 16 deles pelos MiG, o que obrigou a força aérea norte-americana (USAF) a direcioná-los somente para missões noturnas. Ainda assim, o B-29 marcou sua presença, com 167.000 toneladas de bombas lançadas, incluindo as dos modelos "Razon" e "Tarzon", que eram radiocontroladas, e destruíram muitas represas e pontes importantes, principalmente sobre o Rio Yalu, na divisa entre a Coreia do Norte e a República Popular da China.
O B-29 "Enola Gay", que jogou a bomba em Hiroshima, encontra-se no National Air and Space Museum (NASM) do Instituto Smithsonian... |
...já o quadrimotor "Bockscar", que bombardeou Nagasaki, pode ser visto no National Museum of the United States Air Force |
Até setembro de 1960, o quadrimotor ainda executou várias missões, incluindo reabastecimento, patrulha marítima, resgate, entre outras. E não só em sua versão original, mas também com alguns modelos derivados. Na Inglaterra, a Royal Air Force arrendou 88 unidades do B-29 que operaram até 1955, quando se iniciou o processo de phaseout. Esses aviões receberam a denominação "Washington Bomber Mark I" e foram substituídos pelos bombardeiros a jato "Canberra". Já na União Soviética, o bombardeiro não pôde ser arrendado, obrigando as autoridades da "cortina de ferro" a copiar a aeronave. Lá o bombardeiro recebeu a designação Tupolev Tu-4 "Bull". Dizem os historiadores que três B-29 teriam realizado pouso de emergência na União Soviética em 1944 e que, por ordem do premier Joseph Vissarionovich Stalin, teriam sido incorporados pela Tupolev OKB para serem desmontados e utilizados como referência para o desenvolvimento de uma cópia do bombardeiro. Desses B-29, apenas um acabou em pedaços enquanto os outros dois passaram a ser utilizados para avaliação de performance e treinamento de tripulações.
Um total de 847 Tu-4 foram produzidos, trazendo como diferencial os quatro motores Shvetsov ASh-73 no lugar dos Wright R-3350 Duplex-Cyclone utilizados nos aviões norte-americanos, e um sistema de armas de fogo adaptado para trabalhar com os canhões soviéticos do tipo Nudelman-Suranov NS-23. A Tupolev também criou um avião para transporte de passageiros, o Tu-70, mas o programa acabou cancelado com apenas um protótipo construído.
O B-29 ainda participou das primeiras missões do que seria o início da corrida espacial no lado norte-americano. O quadrimotor recebeu adaptações para transportar sob seu compartimento de bombas o jato experimental Bell X-1, que era lançado a 20.000 pés (6.000 metros) para que pilotos da força aérea tentassem quebrar a barreira do som. O feito acabou acontecendo em 14 de outubro de 1947, nas mãos do ás Chuck Yeager.
Motor em chamas
Os estudos para construção de um superbombardeiro pressurizado foram iniciados pela Boeing um ano antes do início da Segunda Guerra, em 1938, atendendo a pedidos da USAAC (United States Army Air Corps), que antecedeu a USAAF, criada em 1941. Esboços foram feitos a partir do projeto do bombardeiro B-17 "Flying Fortress", e a nova aeronave, em princípio, tinha como única designação "Modelo 334". A fábrica norte-americana investiu pesado, sem receber qualquer tipo de auxílio governamental por um bom tempo. Somente em 14 de junho de 1940 a Boeing teve o sinal verde do governo norte-americano, que emitiu um cheque no valor de US$ 85,6 mil assinado pela Air Corps com aval do Departamento de Guerra. O "Modelo 334", que já havia evoluído para "Modelo 345", rebatizado Boeing XB-29, recebeu encomenda inicial para dois protótipos, além da estrutura de uma terceira aeronave que seria utilizada para testes estáticos.
"Fifi" é o único B-29 ainda em operação no mundo graças a uma associação que recupera e mantém aviões clássicos |
Nem tudo foram rosas no desenvolvimento do avião. Atrapalharam o cronograma de lançamento problemas técnicos identificados nos voos de teste e dificuldades para montagem das aeronaves, que dependia de componentes produzidos por parceiros comerciais de diferentes localidades. O transporte naquela época era difícil e se complicava no inverno em razão das fortes nevascas. E não havia apenas uma linha de produção, mas, sim, quatro: uma em Renton, no Estado de Washington; uma segunda em Wichita, Kansas; e duas pertencentes aos parceiros Bell-Atlanta, com a fábrica localizada em Marietta, na Georgia, e a Martin, com instalações erguidas em Omaha, no Estado de Nebraska.
Os motores Wright R-3350 Duplex-Cyclone também impuseram várias noites de insônia para os engenheiros da Boeing. Em um grave acidente que envolveu o segundo protótipo, em 18 de fevereiro de 1943, um dos motores superaqueceu e pegou fogo. Sem conseguir controlá-lo, a tripulação executou aproximação de emergência para a pista do aeroporto de Boeing Field, em Seattle. "Tenham o equipamento contra incêndio pronto. Estou vindo com uma asa em chamas!", alertou à torre de controle o piloto de testes Edmund T. "Eddie" Allen, um aviador extremamente experiente, que havia realizado o voo de début do primeiro protótipo do XB-29 em 21 de setembro de 1942.
Mas a aeronave não conseguiu chegar ao aeroporto e caiu sobre as instalações de um frigorífico (Frye Packing Plant), matando todos os membros da tripulação, além de outras 19 pessoas em terra, entre funcionários do edifício e membros do corpo de bombeiros. Só não foi pior porque o desastre ocorreu na hora do almoço e muita gente do frigorífico estava ausente. Outros dois membros da equipe chegaram a saltar de paraquedas antes do choque, mas não sobreviveram.
Na época, o acidente ganhou a mesma repercussão negativa junto à mídia daquela que teve a explosão do ônibus espacial Challenger, em 1986. Mas com o empenho da Boeing e mesmo de outras esferas ligadas às forças armadas, os motores sofreram as alterações necessárias e a aeronave tornou-se viável. Não por acaso os Wright R-3350 chegaram a ser utilizados posteriormente em outros aviões, incluindo os modelos comerciais Lockheed Constellation e Douglas DC-7.
Esses motores radiais eram compostos por 18 pistões e liberavam até 2.500 hp na versão 57, que equipavam os B-29 da série "A". Motores mais potentes, do modelo Pratt & Whitney R-4360-35 (3.500 hp), foram incorporados aos B-50 das séries "A" e "D", modelos aprimorados construídos a partir do projeto do B-29, que chegariam à força aérea somente após o final da Segunda Guerra.