Mais de duas décadas após o fim da União Soviética, país intensifica ofensiva em busca do mercado internacional, sobretudo no Ocidente, enquanto tensões militares voltam a rondar a Europa
Texto e Fotos por Edmundo Ubiratan, de Moscou Publicado em 04/10/2015, às 00h00
Com a escalada das tensões no sul da Ucrânia depois da anexação da Crimeia, o Ocidente e a Rússia voltaram a se engajar em um conflito de informações e propaganda. Históricos protagonistas da Guerra Fria, os países-membros da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e os russos intensificaram exercícios militares, aplicaram sanções mútuas e aumentaram a frequência de acusações de parte a parte. Ainda assim, os políticos de Moscou parecem pouco inclinados a voltar aos tempos dos conflitos indiretos e das disputas estratégicas da segunda metade do século 20.
Apesar do acirramento dos ânimos, a indústria aeroespacial russa continua vinculada ao mercado do Ocidente. Atualmente, a maior parte do titânio aeronáutico utilizado por Airbus, Boeing e Embraer vem da Rússia. A VSMPO-Avisma detém o monopólio na produção de titânio na Rússia, controla cerca de 30% do fornecimento mundial desse material e produz mais de 50% das peças de grande porte destinadas à indústria aeronáutica global. O restante é fornecido pelas empresas americanas Allegheny Technologies, RTI International Metals e RTI Titanium Metals.
Superjet 100 é o primeiro avião civil projetado após a União Soviética e tem a Alenia como parceira internacional
Nesse contexto, os russos realizaram seu principal evento aeronáutico mais uma vez na base aérea de Zhukovsky, na região metropolitana de Moscou. Criado como plataforma para a indústria aeroespacial russa exibir seus últimos avanços, o MAKS (International Aviation and Space Show) é celebrado desde 1993, a cada dois anos. Com o passar do tempo, o evento se tornou uma importante ponte entre a indústria russa e seus parceiros internacionais, sendo atualmente um ponto de encontro do setor aeroespacial.
O MAKS 2015 promoveu a indústria aeroespacial e de defesa do Rússia em meio a um cenário de sanções que afeta principalmente os bancos e empresas de energia do país. Ainda que alguns embargos afetem o setor de defesa, o impacto para a maior parte das empresas, como a Rosoboronexport, a agência de exportação russa para materiais bélicos, praticamente não acontece. Um dos motivos é que grande parte dos clientes está fora da esfera política da Europa e dos Estados Unidos. Um dos principais mercados de equipamentos militares russo é justamente a América Latina, onde o país tem ampliado sua participação. Em alguns casos, devido a divergências políticas, a Rússia obteve êxito sobre tradicionais fabricantes europeus e norte-americanos, como na Venezuela. “As empresas que integram a Rostec oferecem todos os tipos de tecnologias, como equipamentos médicos, militares, especial, [aviação] civil, entre outros. São muitos os países que buscam adquirir tecnologia russa, em especial equipamentos militares”, diz Victor Kladov, executivo-chefe de Cooperação Internacional da Rostec.
Durante o MAKS, os fabricantes russos firmaram diversos acordos com países como Irã, Egito, Cazaquistão, Índia, Venezuela e México. Os principais players globais estavam presentes na feira, que reuniu 156 empresas de 30 países, como Airbus, Boeing, Safran Group, AVIC, China Great Wall Industrial, Pratt & Whitney, Honeywell, Rockwell Collins, Rolls-Royce, Hindustan Aeronautics Limited, Finmeccanica e Bombardier. Algumas destas organizações são importantes parceiras da indústria russa no Ocidente, como a italiana Finmeccanica, sócia da Superjet Internacional, que desenvolveu e comercializa o avião regional Sukhoi Superjet 100. O modelo é o primeiro projeto comercial desenvolvido após a URSS, e foi o primeiro a contar com apoio de parceiros ocidentais.
Um dos destaques do programa SSJ 100 é a participação da Safran Snecma na PowerJet, empresa que desenvolve os motores SaM-146 utilizados pelo jato regional – e que tem como sócia russa a NPO Saturn. O acordo com o grupo francês abriu novas oportunidades para a indústria russa e foi um divisor de águas na indústria ocidental, especialmente pelo fato de a Safran Snecma ser sócia da GE na CFM International, empresa que produz os motores CFM-56 e LEAP. Em geral, tais acordos vetam que seus sócios tenham participação em joint ventures concorrentes ou que afetem os interesses políticos de seus países sede.
O Sukhoi T-50 possui características de um caça de quinta geração com soluções tradicionais
Embora o SSJ-100 tenha obtido um número limitado de encomendas, acumulando pouco mais de 340 pedidos, sendo 30 deles da mexicana Interjet, a única operadora ocidental, o modelo se tornou a base para novos projetos russos. Até o desenvolvimento do Superjet, era nítido o problema da indústria russa com a criação de um novo modelo de trabalho e desenvolvimento. A maior parte dos fabricantes ainda estava atrelada a conceitos oriundos da era soviética, o que dificultava qualquer iniciativa no mercado civil mundial. A parceria com a Finmeccanica, que detém 51% do programa Superjet, e a consultoria prestada pela Boeing no início do projeto ajudaram os executivos e projetistas russos a conhecer melhor as tendências e necessidades ocidentais.
Outra parceria, de longa data, que vem demonstrando um grande potencial de crescimento, é a estabelecida com os chineses. O menor ritmo de crescimento da economia da Rússia aliado às sanções, que afetaram o acesso ao crédito, interferiu diretamente na capacidade do país de manter os seus programas estratégicos no cronograma inicial. Essa situação tornou a parceria com os chineses mais atrativa, em especial devido à facilidade de acesso ao crédito. Um dos problemas apontados por muitos é o risco de os chineses futuramente seguirem um caminho próprio dentro de determinados programas. Como ocorreu no acordo de produção sob licença dos Su-27 Flanker, que deram origem ao caça chinês J-11. O modelo é um derivado direto do Su-27SK, porém, conta com algumas melhorias e tecnologias desenvolvidas na China, como radar, aviônica e sistema de armas. E para todos os fins, Pequim afirma que o J-11 é um projeto totalmente chinês.
A indústria russa tem buscado novas parcerias em projetos militares, como é o caso do programa PAK-FA (acrônimo de Prospective Airborne Complex of Frontline Aviation), que originou o T-50, caça de quinta geração desenvolvido em cooperação com a indiana Hindustan Aeronautics Limited. Mesmo distante das capacidades dos rivais norte-americanos, como o F-22 Raptor e F-35 Lightning II, o T-50 desponta como uma ameaça à superioridade militar plena do Ocidente. Um dos objetivos do projeto é estabelecer um novo conceito para os futuros aviões de combate russos, o que para a perspectiva industrial e estratégica do país está acima das qualidades puramente técnicas do avião.
Mais um importante desafio da indústria russa é o suporte pós-venda, tema amplamente debatido durante o MAKS 2015. Ciente dos problemas recentes, as principais indústrias, com destaque para o conglomerado Rostec, têm trabalhado para buscar um modelo que atenda às necessidades globais. Um dos entraves é a filosofia ainda alinhada ao modelo soviético, sem o mesmo compromisso comercial dos ocidentais. Atualmente, uma nova geração de executivos tem assumido a liderança em empresas estratégicas. A maior parte é composta por jovens que cresceram dentro de uma Rússia global, que não apenas compreende as necessidades do mundo, como convive diariamente com esse modelo de gestão. São executivos que falam, em geral, mais de três idiomas, utilizam iPhone, viajam muito e estão alinhados com um mundo mais dinâmico e conectado.
Os resultados já começam a aparecer. Entre os destaques estão os projetos voltados para aviação civil, que inclui desde sistemas até aeronaves que prometem rivalizar com os principais players globais. Um dos projetos promissores é o sistema elétrico de tração do trem de pouso desenvolvido pela Technodinamika. O sistema composto por um motor elétrico instalado no trem de pouso dianteiro é similar ao desenvolvido por empresas ocidentais, como a Siemens, Honeywell Aerospace e a Safran. Por ora, o dispositivo está sendo desenvolvido para atender a modelos regionais, como o SSJ-100 e o Embraer E-Jet. Um dos motivos é o foco dos concorrentes ocidentais em oferecer uma solução para aeronaves comerciais de maior porte, deixando livre o mercado regional e o de jatos de negócio. Embora os executivos da empresa evitem comentar detalhes técnicos, alegando segredo industrial, alguns dados preliminares sugerem que o projeto russo é até 8% mais leve e possui uma eficiência energética 20% superior a de seus pares ocidentais.
O Irkut MC-21 é outro projeto em desenvolvimento que busca atender aos requisitos ocidentais, oferecendo um avião comercial com capacidade para até 230 passageiros e 3.500 km de alcance. O MC-21, acrônimo em russo para Airliner of the 21st Century, reflete a necessidade da indústria de se adequar à nova realidade do mercado. Por várias décadas, as aeronaves comerciais desenvolvidas pelos fabricantes russos tinham como objetivo atender exclusivamente às necessidades da Aeroflot, até então empresa aérea de bandeira da União Soviética. Ironicamente, a maior parte dos projetos não atendia nem mesmo aos requerimentos da única empresa do país. Não por acaso, após a eclosão do regime soviético, as empresas aéreas que surgiram na Rússia passaram a voar com modelos Airbus e Boeing.
Visando recuperar o mercado perdido, os novos projetos trazem uma série de conceitos tradicionais na indústria aeronáutica aliada a novos estudos. O MC-21 será dotado de uma suíte de aviônica fornecida pela Rockwell Collins em parceria com a russa Avionika. Serão quatro displays principais, divididos entre PFD (Primary Flight Display) e MFD (Multi-Function Display) num layout similar ao adotado no Boeing 787 Dreamliner. Parte dos sistemas será fornecida pelas norte-americanas Goodrich, Zodiac Aerospace, entre outras. Um dos diferenciais do modelo é sua cabine, com 3,81 m de diâmetro, largura 28 cm maior do que a do Boeing 737 e 12 cm superior à do Airbus A320. O layout também será similar ao existente no mercado. Trará bins integrados ao desenho da fuselagem, janelas mais amplas, iluminação em led, entre outros incrementos.
O MC-21 também atende aos requisitos de ruído e de emissão de poluentes adotados pela ICAO. Segundo dados preliminares, o modelo terá uma emissão de poluentes até 20% inferior à dos aviões atuais, índice próximo ao esperado pela geração dos Airbus A320neo e Boeing 737 Max.
Poderio aéreoRússia demonstra capacidade militar de sua frota durante a MASK e acirra rivalidade com Ocidente A Rússia busca se globalizar no mesmo momento em que cria com Europa e Estados Unidos um novo e perturbador cenário de tensões. Após a anexação da Crimeia em 2014, as relações entre a Rússia e o Ocidente, que já vinham sofrendo alguns sinais de desgaste devido à política externa do governo Vladimir Putin, chegaram ao clímax. A Europa, especialmente a Alemanha e a Inglaterra, ao lado dos norte-americanos, passaram a adotar um discurso mais duro em relação a Moscou, o que levou a restrições econômicas. Mesmo não sendo um amplo embargo, as relações rapidamente se deterioraram e a Rússia passou a adotar um tom mais agressivo, procurando se posicionar novamente como um importante player no complexo jogo da política internacional. O país passou a investir na instalação de novas baterias S-300 e S-400, considerados os sistemas antiaéreos mais eficientes da atualidade, em regiões estratégicas. Entre elas está Kalinigrado, um enclave entre a Polônia e a Lituânia, que permanece sob o controle russo. A instalação de novas baterias antiaéreas permite à Rússia ter uma cobertura superior a um terço de todo o território polonês. Um complicador, porque a Polônia integra a Otan e é um dos países escolhidos para receber o escudo antimísseis norte-americano. Dias antes do fechamento desta edição, o general norte-americano Frank Gorenc, comandante da Força Aérea dos EUA na Europa, alertou para o fato de a Rússia estar montando uma importante base de operações na Síria. Aproveitando o clima de tensão que toma conta de parte do Oriente Médio, Moscou amplia sua zona de influência militar e comercial. Fotos de satélite apontam a chegada de um An-124 e um Ill-76 a base síria de Latakia, onde também foram flagrados quatro Su-30SM ao lado de 12 Su-24M, 12 Su-25 e quase duas dezenas de helicópteros Mi-24/35 e Mi-8/17. Caso conclua a instalação de uma base na Síria, os russos terão uma zona de exclusão aérea que cobre parte do Mediterrâneo e do Mar Negro, duas importantes rotas de exportação de óleo e gás e que num eventual bloqueio poderia elevar drasticamente o preço do petróleo. Durante o MAKS 2015, as exibições aéreas também foram utilizadas como forma de mostrar ao Ocidente o poderio militar e industrial russo. As apresentações dos Sukhoi Su-30, Su-34 e T-50, claramente, demonstravam que mesmo distante do poderio militar da OTAN, a Rússia possui meios de tornar qualquer ameaça externa um problema de alcance global. |
Por fim, outro segmento que tem atraído pesados investimentos da Rússia é de aeronaves não tripuladas. A KRET apresentou um conceito de UAV de sexta geração, que está sendo desenvolvido em parceria com a United Aircraft Corporation. O modelo deverá contar com características furtivas e capacidade de ataque intercontinental. Outro projeto em desenvolvimento é o de um modelo de reconhecimento de grande altitude, similar ao norte-americano RQ-4 Global Hawk. Tais projetos ainda estão em fase inicial de desenvolvimento, mas prometem rivalizar com os principais modelos do arsenal da OTAN, criando uma nova era na guerra aérea. Analistas russos acreditam que, nos próximos 20 anos, a maior parte dos aviões militares será de modelos não tripulados, seguindo, assim, a tendência mundial de aeronaves pilotadas remotamente ou com capacidade de voo autônomo.