Revolução digital no cockpit

Aviônica dos novos aviões e helicópteros levam a pilotagem à fronteira tecnológica com a plena integração de sistemas

Por Edmundo Ubiratan Publicado em 25/06/2014, às 00h00 - Atualizado às 07h46

A criação de suítes de aviônica com arquitetura aberta, que podem ser instaladas em diferentes aeronaves e aceitam a integração de funções e dados ainda por se desenvolver, revelou-se a grande inovação assistida nessa nova era na aviação, a digital. Os painéis dos novos aviões e helicópteros se tornaram tão intercambiáveis quanto os computadores pessoais. “O mesmo processador, a mesma placa mãe e o mesmo sistema operacional podem equipar o computador do fabricante A, B ou C, basta fazer pequenos ajustes”, explica Craig Allen, engenheiro aposentado da McDonnell Douglas. “Isso reduz custos ao permitir evoluções sem a troca da plataforma”.

G1000

Um exemplo que simbolizou essa transição tecnológica na aviação é a plataforma Garmin 1000, presente em dezenas de aeronaves, de modelos modernizados, como os King Air, até aviões a jato, como o Cessna Citation Mustang, passando por monomotores a pistão, como o Piper Matrix, e helicópteros, como o AgustaWestland AW119Kx e o Enstrom 480B.

O G1000 é um sistema integrado, geralmente composto de dois displays, um servindo como monitor primário de voo e outro como display multifunção composto por 10 LRU (Line Replaceable Units), que são módulos responsáveis por coletar, armazenar e processar diferentes dados para o sistema. Dentro do conceito LRU, os módulos foram concebidos de maneira a permitir que o sistema seja utilizado em uma ampla gama de aeronaves, além de reduzir significativamente o tempo e o custo de manutenção. Com uma arquitetura flexível, o G1000 se tornou um grande sucesso no mercado.

O G1000 pode ser instalado numa ampla gama de aviões e helicópteros

Embora tenha sido concebido para painéis com restrição de espaço físico, existem duas opções de telas, com 10 ou 12 polegadas, divididas entre PFD (Primary Flight Display) e MFD (Multi-Function Display), que exibem praticamente todos os dados necessários.

O G1000 se destaca por aceitar uma série de combinações e personalizações, de software e hardware. Ele pode, por exemplo, ser instalado em conjunto com o módulo GDL 69 ou o GDL 69A, que oferecem acesso à rede XW Weather. Caso seja instalado com o módulo GSR 56, a aeronave obtém acesso à rede de satélites Iridium. Além disso, é um dispositivo que permite ao fabricante da aeronave personalizar a suíte conforme sua necessidade. A Cirrus Aircraft se destaca no uso dessa ferramenta ao disponibilizar o Garmin Perspective, uma personalização completa da suíte G1000. Além de ser uma versão desenvolvida em conjunto entre a Cirrus e a Garmin, o Perspective ainda oferece ao proprietário a possibilidade de integrar novas ferramentas, como maior display, EVS (Enhanced Vision System) com uso de uma câmera infravermelha, piloto automático com LVL (Level button), o famoso botão azul do Cirrus (que nivela o avião em caso de desorientação espacial), e Yaw Damper. Essa característica levou o G1000 a ser adotado (e personalizado) por diversos fabricantes e, em alguns casos, a receber um terceiro display, oferecendo assim dois PFD e um MFD, requisito em determinados tipos de aeronaves.

Primus Epic

Uma característica da nova geração de aviônicos é o investimento em pesquisa com experiência de pilotos, que contribuem decisivamente no aprimoramento de novas tecnologias. Recentemente, durante a fase de desenvolvimento de uma aeronave, a Gulfstream e a Honeywell descobriram que o uso excessivo de cores causava distração, levando a indústria a utilizar apenas a convenções de cores básicas. Do mesmo modo, os estudos mostraram que um grande número de informações ou ícones na tela tornavam confusas a leitura e a interpretação dos dados. Com isso, ficou claro que, em condições normais de voo, o piloto precisava de informações diretas. Somente em casos de pane ou situação específica se tornava importante ter dados detalhados. Por outro lado, os pesquisadores concluíram que a exibição detalhada do terreno, com reprodução sintética, aumentava a consciência situacional dos pilotos, assim como o uso de imagens de infravermelho.

Um dos primeiros sistemas baseado nessa nova realidade foi o Primus Epic, da Honeywell, que deu origem a duas suítes, o Gulfstream PlaneView e o Dassault EASy Flight Deck, conceitos completamente distintos, mas baseados num mesmo estudo e na mesma plataforma. Também foi recentemente anunciado pela Embraer para equipar os novos E-Jet E2.

O PlaneView apresenta inúmeros recursos e funções, incluindo o Enhanced Vision System, o sistema de infravermelho da Gulfstream. A suíte conta com quatro telas LCD, de 14 polegadas, de alta resolução, que podem ser configuradas para uma exibição em página inteira ou uma exibição em 2/3 de página com duas janelas adicionais de 1/6 de página. O sistema exibe os instrumentos de voo principal, informações de navegação, exibições sinóticas e de sistemas, alerta EICAS (Engine Indicating and Crew Alerting System), entre outros.


O Primus Epic deu origem ao Plane View e EASy Flight Deck

O ADS-C transmite via datalink informações ao controle de terra

O PlaneView também é integrado ao HUD (Head-Up Display), oferecendo o VGS (Visual Guidance System) e o EVS (Enhances Vision System) para operações visuais em condições de visibilidade reduzida. No MFD está o chamado I-NAV, que exibe mapa de movimentação, informações geográficas, terreno, informações do aeroporto, auxílio à navegação e rotas e plano de voo. Ele permite ao piloto executar planejamento gráfico de voos e radiofonia com imagens de radar meteorológico. O XM Weather é uma função opcional, mas bastante útil, já que exibe as condições do tempo atualizadas continuamente com uplink XM, mostrando praticamente em tempo real imagens do sistema radar NEXRAD de alta resolução, ventos em altitude e imagens de satélite. A interface é realizada por meio de um controle de cursos montado num dispositivo semelhante a um joystick, oferecendo ao piloto acesso a todos os dados necessários.

Easy II

Já o EASy II Flight Deck possui um modelo próprio de exibição dos dados, que seguem a filosofia da Dassault. São quatro telas de 14,1 polegadas, dispostas em uma configuração “T”, incluindo dois MKB (Cursor Control Devices) no pedestal e dois CCD (Multifunction Keyboards). A interface com o EASy é feita primariamente pelo CCD, um cursor do tipo trackball por meio do qual os pilotos acessam praticamente todas as funções apenas deslizando os dedos pelo controle. Uma das virtudes do sistema é ter uma experiência similar ao uso de um touchpad, incluindo um botão multifunção. Além disso, a ergonomia do CCD permite operar todos os comandos com a mão relaxada e firmemente apoiada, o que é útil especialmente em turbulências. Os dois monitores MDU (Multifunction Display Units) foram organizados verticalmente no centro do painel de instrumentos, sendo visíveis e acessíveis a ambos os pilotos. Os MDU podem ser configurados ​​para exibir informações necessárias ao voo, sendo que tipicamente o MDU superior é usado para controlar e exibir as funções de navegação, enquanto o MDU inferior manipula FMS, páginas sistemas, checklists e demais recursos.

O EASy II conta também com o FANS-1/A (Future Air Navigation System), criado inicialmente para melhorar a comunicação e a vigilância em áreas remotas do mundo, priorizando a comunicação de dados por meio de redes de SatCom. O sistema é apto aos serviços de datalink, como o CPDLC (Controller Pilot Data Link Communications) e ADS-C (Automatic Dependent Surveillance - Contract).

Datalink e ADS-C

O método CPDLC transporta dados entre os órgãos de controle e as aeronaves por datalink, em substituição às comunicações por voz. Já o uso do ADS-C, em princípio, ocorre em regiões oceânicas e em áreas continentais remotas onde a instalação de radares é inviável por conta de questões financeiras ou técnicas. O sistema de bordo transmite via enlace de dados para o sistema de terra informações de navegação que são apresentadas ao controlador de tráfego aéreo de forma semelhante aos dados obtidos pelos atuais radares.

Embora a comunidade aeronáutica não seja aberta a grandes inovações, em geral resistindo a novas tecnologias, alguns conceitos se tornam tão confiáveis que passam a ser equipamento básico. O próprio HUD, empregado por várias décadas na aviação militar, enfrentava grande resistência no mercado civil, tendo sido inicialmente absorvido pela aviação executiva, ainda que com ressalvas. Recentemente, o equipamento se tornou opcional em alguns modelos, como na família E-Jet da Embraer e item de série no Boeing 787. “No passado, a aviação comercial tinha os militares como laboratório. As tecnologias chegavam já maduras ao mercado civil”, lembra Luís Augusto Dacorso, engenheiro aeronáutico. “Atualmente, é a indústria que oferece inovação ao mercado aeronáutico, o que exige cautela e um processo de certificação e aceitação mais lento em alguns casos”.

Touchscreen

Fabricantes apostam na tecnologia de toque de tela

Algumas tecnologias tiveram um processo mais rápido de aceitação, como as telas sensíveis ao toque, ainda que o touchscreen tenha nascido em estudos dos anos 1960, com algumas aplicações ao longo das décadas seguintes. Foi com a recente popularização de smartphones e tablets que o conceito despertou o interesse do setor aeronáutico.

Uma das vantagens das telas sensíveis ao toque é a redução de peso e a melhoria na interação homem-máquina. O desenvolvimento das telas capacitivas aumentou a precisão dos comandos e a durabilidade do equipamento. Basicamente, a área sensível dessas telas consiste numa retícula de microfios laminados entre duas camadas de vidro, que, durante o toque, cria uma capacitância entre o dedo e o sensor. A localização do toque é calculada em função da relação entre a quantidade de carga acumulada e o potencial elétrico do sensor.

Uma das primeiras suítes touchscreen foi o Garmin 3000, apresentado na NBAA de 2009 como opção para a aviação geral e executiva dentro da filosofia de arquitetura aberta. Visualmente se destaca a substituição de knobs mecânicos, switches, botões e clutters por funções touchscreen numa tela de controle de 5,7 polegadas instalada no pedestal, que, além de criar um visual mais limpo, tornou o sistema mais leve. Uma das inovações do G3000 foi criar um conceito de família, com os derivados G2000, G5000 e G5000H.

A diferença entre as três suítes está na complexidade de cada sistema, que atende às necessidades de diferentes segmentos. O G2000 serve à aviação geral, sendo o Cessna Corvallis TTX o pioneiro no uso de tecnologia sensível ao toque. Já o G3000 foi desenvolvido para os jatos executivos de pequeno porte, como o HondaJet, o Cessna Citation M2 e o monojato Cirrus Vision. Por fim, o G5000 atende às aeronaves executivas de maior porte, sendo escolhido para equipar os Citation Latitude e Longitude, New Citation X, New Citation Sovereing e Learjet 70/75. Também foi desenvolvida uma versão para asas rotativas, tendo como primeiro cliente o Bell 525 Relentless.

Alguns pilotos veem com ressalva o uso de sistemas touchscreen, já que ele poderá ser de difícil uso em caso de turbulência ou se a tela estiver demasiadamente suja. Ainda é difícil prever como será o uso num ambiente de turbulência ou após um voo de 10 horas, com o piloto cansado e a sensibilidade do aparelho eventualmente afetada”, pondera Felipe Borges Filho, piloto da aviação executiva.


O Pro Line Fusion foi escolhido para equipar o KC-390 e o CSeries

Pro Line Fusion

Apesar da ressalva, os fabricantes acreditam que a tecnologia touchscreen seja um caminho sem volta. A Rockwell Collins recentemente anunciou a inclusão de comandos por toque na suíte Pro Line Fusion. A suíte criada dentro de uma arquitetura modular foi escolhida pela Bombardier para equipar a família CSeries e Learjet 85, assim como pela Embraer nos projetos Legacy 450/500 e KC-390. Agora, a aviônica passará a contar com recursos touchscreen, especialmente nas versões desenvolvidas para aviação executiva e retrofit.

O Pro Line Fusion já havia sido notícia ao ser integrado ao Vision Flight Deck, da família Bombardier Global, e dispor do conceito de visão sintética exibida no HUD. A tecnologia, batizada de HGS (Head-up Guidance System), aumenta a consciência situacional dos pilotos de forma significativa e explora ainda mais as vantagens do HUD. O sistema permite que o piloto tenha as principais informações de voo presente no mesmo campo de visão do horizonte, eliminando a necessidade da contínua transição entre observar os instrumentos instalados na cabine e olhar através da janela, crítica especialmente nas fases de pouso e decolagem. Com o incremento proporcionado pelo Synthetic Vision no HUD, o piloto passa a contar não apenas com as informações de voo, mas também com importantes dados referentes ao terreno e a auxílios.

Anteriormente, a Rockwell Collins havia inovado ao criar, em parceria com a Boeing, a suíte do 787 Dreamliner, que se destacava pela redução no número de LRU utilizadas. A mudança na arquitetura, além de reduzir o peso, ainda possibilitou tornar o sistema mais simples e rápido. Fato, aliás, que levou a NASA a aprovar uma versão derivada da suíte do 787 para equipar os sistemas do veículo espacial Orion.

Especialistas acreditam que a evolução apenas começou, considerando que alguns fabricantes já trabalham em sistemas por comando de voz, gestos e leitura dos olhos. “Num futuro não muito distante teremos cabines similares aos atuais filmes de ficção, incluindo visão holográfica em três dimensões”, prevê Craig Allen.

A evolução dos painéis

O que mudou em 50 anos desde a época de navegadores e engenheiros de voo

 

O padrão tecnológico das cabines de aviões mudou pouco nas primeiras décadas de existência do transporte aéreo. Até os anos 1960, ocupavam os cockpits tripulações técnicas mais numerosas do que as atuais, compostas por comandante, copiloto, navegador e engenheiro de voo. Os avanços obtidos no campo da computação, especialmente após o programa Apollo, estabeleceram novas perspectivas à indústria aeronáutica. No começo da década de 1970, os aviões já contavam com automação no gerenciamento de sistemas, o navegador havia sido substituído por sistemas inerciais e o engenheiro de voo começava a ver sua carreira ameaçada pela eletrônica. Na esfera militar, os aviões ganhavam telas que exibiam parâmetros tanto dos sistemas como de voo. O mesmo ocorreu na aviação regular, com a chegada dos chamados “glass cockpit”.

Os projetos desenvolvidos no final da década de 1970 já se beneficiavam de alguns novos conceitos, como o AHRS (Attitude and Heading Reference Systems) e o ADC (Air Data Computer), assim como os tradicionais mostradores analógicos davam lugar a telas CRT (Cathode Ray Tube). Inicialmente, essa tecnologia permitiu simplificar processos operacionais, uma vez que parte do serviço passou a ser realizado por computadores, além de aumentar significativamente a consciência situacional ao exibir dados de forma clara, em especial os de navegação. Modelos como os Airbus A300 e A310, os Boeing 757 e 767 e o McDonnell Douglas MD-80 receberam as “cabines de vidro”. Porém, os sistemas analógicos continuavam presentes, sobretudo diante da falta de confiabilidade nos novos recursos e, ainda mais importante, da inexistência de uma integração entre os diversos computadores e sistemas.

Na segunda metade da década de 1990, surgia uma nova e poderosa indústria, a de eletrônica, que passaria a ditar boa parte das inovações. A aviação comercial buscava se tornar mais eficiente, reduzindo drasticamente os custos, enquanto projetos militares passavam a sofrer com cortes no orçamento, em função do fim da Guerra Fria. Se antes as inovações eram oriundas especialmente de programas militares e espaciais, a partir daquele momento, os fabricantes privados de processadores, televisores, telefonia e softwares se tornavam o berçário de novidades cada vez mais poderosas.

Não demorou muito para que projetos comerciais se tornassem mais modernos do que programas militares complexos. Os computadores pessoais passaram a ter mais poder de processamento do que sistemas militares inteiros. Isso levou a indústria aeronáutica a um novo cenário, a integração de sistemas. As mudanças permitiriam não apenas reduzir os custos, como também aumentar a segurança ao tornar as cabines mais simples. Paralelamente, a aviação geral assistia ao surgimento de novos fabricantes, que nasciam dentro dessa nova filosofia. A indústria tradicional ainda relutava em aceitar algumas tecnologias enquanto os novatos apostavam na inovação como diferencial. Entre 2000 e 2010, as cabines de aeronaves executivas deixaram de contar com pequenos mostradores digitais para serem completamente integradas em complexas suítes de aviônica. Na aviação comercial, projetos como Airbus A380, A350 XWB e Boeing 787 Dreamliner se tornaram divisores de águas, com suítes inovadoras e intricados sistemas eletrônicos.

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