Teste de proficiência na língua inglesa para pilotos e controladores de tráfego aéreo brasileiros se afasta perigosamente de sua finalidade original, a segurança de voo
Por Daniel Calazans (Professor Kalazans)*, especial para AERO Magazine Publicado em 29/04/2014, às 00h00 - Atualizado em 01/03/2019, às 15h33
Dentre os motivos que levaram ao desenvolvimento do Teste de Proficiência do Idioma Inglês para pilotos e controladores de tráfego aéreo estão os acidentes aéreos anteriores à criação do exame que tiveram como fatores contribuintes ou determinantes os mal-entendidos na comunicação entre o avião e o solo. Contudo, a comunidade aeronáutica parece não ter se dado conta por completo dessa necessidade. Se o teste não fosse obrigatório, o tráfego aéreo estaria em uma situação ainda mais periclitante.
Um dos acidentes que despertou a atenção das autoridades aeronáuticas internacionais sobre o tema foi o ocorrido nos arredores do aeroporto John Kennedy, em Nova York, em janeiro de 1990. A tripulação de um Boeing 707 não soube explicar em inglês a situação de emergência que experimentavam. Com pouco combustível, a aeronave foi instruída a efetuar várias órbitas, o que levou ao esgotamento do querosene e a queda do jato perto do aeroporto, deixando 73 mortos e 83 feridos. O processo penal voltou-se para a comunicação entre pilotos e controladores, levando em consideração as palavras e os termos técnicos utilizados na radiocomunicação pela tripulação. Por fim, os controladores foram absolvidos, pois, segundo os juristas, prestaram um serviço de controle adequado diante das informações que receberam dos pilotos colombianos, que foram considerados culpados pelo acidente por desconhecerem o idioma inglês e a fraseologia de tráfego aéreo.
Outro acidente de dimensões bem maiores foi o ocorrido em Tenerife, em março de 1977, nas Ilhas Canárias, envolvendo o Boeing 747 de uma companhia aérea norte-americana e outro Boeing 747 de uma empresa holandesa. Dentre vários fatores, a má comunicação teve peso preponderante no desfecho da ocorrência, tirando a vida de 583 pessoas: o maior número de mortes em acidentes aéreos de todos os tempos. Duas aeronaves que dispunham do que de melhor a tecnologia oferecia na época se acidentaram porque pilotos e controladores não se entenderam. Investigadores espanhóis e americanos consideraram que os pilotos holandeses deram causa ao resultado, pois não foram proficientes na comunicação.
Um dos acidentes mais relevantes sobre o tema no Brasil foi o ocorrido em setembro de 2006, quando um Embraer Legacy americano recebeu uma autorização do plano de voo e manteve o nível de voo coincidente com um Boeing 737 de uma companhia brasileira, a Gol, que vinha em sentido oposto, resultando em colisão, matando 154 pessoas. Um dos pontos cruciais deste acidente foi também a má comunicação entre pilotos e controladores no tocante ao idioma inglês e à fraseologia. Em processo judicial tramitando no Brasil, discute-se o grau de proficiência de um dos controladores envolvidos.
A comunidade aeronáutica, principalmente no Brasil, não está trilhando um caminho seguro em direção à proficiência do idioma inglês na radiocomunicação e, sim, um atalho. Busca-se um conhecimento mínimo necessário para passar nas bancas examinadoras em detrimento da proficiência plena. Mentalidade e comportamento precários para a realidade da atividade aérea.
A lista de acidentes causados por falha na comunicação é enorme, enquanto os procedimentos adotados pelas autoridades aeronáuticas são insuficientes para sanar esse problema. Essa omissão tem levado muitos profissionais a responderem judicialmente pelos resultados lesivos.
Recentemente, alguns pilotos recorreram à justiça brasileira para convalidarem exames de proficiência promovidos por escolas em países estrangeiros, cujos critérios de avaliação não estavam em conformidade com os padrões da Organização da Aviação Civil Internacional, segundo a Anac. As suspeitas aumentaram quando se constatou que muitos desses pilotos foram reprovados anteriormente por testes realizados no Brasil. Trata-se de uma situação constrangedora para esses pilotos, que poderiam se submeter aos testes propostos pela Anac e comprovar a proficiência adquirida no exterior, dirimindo quaisquer dúvidas a respeito de suas competências para, em seguida, fazer valer seus direitos perante a justiça em razão de quaisquer perdas.
Em caso de acidente, negligências de pilotos podem gerar responsabilidade também para os profissionais que não estão com as mãos nos manches. Estamos nos referindo àqueles que ficam em gabinetes, departamentos e diretorias voltados para segurança de voo, treinamento, operações e assim por diante. Uma questão a ser profundamente considerada trata da responsabilidade dos avaliadores do Teste de Proficiência. Isto é, se um acidente for ocasionado tendo como fator contribuinte ou determinante a má comunicação do controlador ou do piloto e for comprovada a deficiência do profissional, aquele que o avaliou e aprovou poderá também responder judicialmente pelo resultado. Isso não quer dizer que em todo e qualquer acidente os avaliadores serão responsáveis, mas, se um avaliador por qualquer circunstância aprovar um candidato notadamente incompetente e nada proficiente, poderá, sim, responder judicialmente pelo acidente. Embora pareça muito difícil, na realidade, não é, já que uma perícia judicial poderá perfeitamente comprovar se determinado profissional é ou não competente para o exercício da função, ensejando também responsabilidade daqueles que também contribuíram para o exercício desse profissional sem proficiência. Aliás, esse é um dos grandes debates jurídicos que está sendo travado no caso do “Voo 1907 x Legacy”. É que um dos controladores acusados penalmente pelo acidente, suspeito de improficiência, pode ensejar responsabilidades daqueles que o instruíram, avaliaram e aprovaram.
PF e Anac investigam fraudes no processo de habilitação de pilotos, com adulterações na prova de inglês, diz tv
Mas enquanto as autoridades aeronáuticas e as instituições oficiais não resolvem esse problema, o mercado de trabalho está um passo a frente. Algumas empresas aéreas, na hora de contratação de seus pilotos, têm dado uma atenção especial à proficiência de seu quadro de profissionais. Há até pilotos altamente capacitados com larga e longa experiência na pilotagem nacional e internacional que estão desempregados por não serem proficientes no idioma inglês e fraseologia.
Na outra ponta, existem profissionais mais preocupados com a carreira do que com a segurança de voo, objetivo que originou e motivou o teste de proficiência ICAO. Reportagem veiculada pela TV Bandeirantes mostrou que a Anac encaminhou à Polícia Federal uma investigação de fraudes no processo de habilitação de pilotos. Segundo a denúncia, quadrilhas estariam, entre outras coisas, adulterando a prova de proficiência em idioma inglês.