Novas regras encarecem e complicam processos de concessão e revalidação de licenças para aeronaves; Anac alega melhoria na segurança de voo
Por Vinícius Casagrande Publicado em 07/11/2014, às 00h00
Desde que a nova emenda do RBAC 61 (Regulamento Brasileiro de Aviação Civil) entrou em vigor, no final de setembro, operadores da aviação geral se mobilizaram diante das dificuldades de cumprir as exigências impostas pela Anac (Agência Nacional de Aviação Civil). As queixas recaem especialmente sobre as normas que definem as regras para o treinamento de tripulações de aeronaves com operação mais complexa. É que, pelas novas regras, passou a ser obrigatória a instrução de pilotos em centros de treinamento autorizados pela Anac para a concessão e revalidação das habilitações “tipo” (categoria que exige licença específica para determinada aeronave).
O problema é que, acusam os pilotos, muitas aeronaves que operam no Brasil não contam com centros autorizados no país, e os tripulantes dessas aeronaves seriam obrigados a fazer todo o treinamento no exterior, demandando um tempo além do usual e gerando altos custos extras.
Até a publicação das novas normas, o treinamento dos pilotos poderia ser feito diretamente na aeronave, com a instrução de um piloto habilitado e autorizado pela Anac para aquele tipo de aeronave. A grande questão é que, nesse método, nem sempre os pilotos seguiam o mesmo padrão de instrução, especialmente para situações de emergência. Essa prática, no entanto, continua válida para os casos em que não há um centro de treinamento autorizado.
É exatamente essa falta de padronização que a Anac pretende combater. “Entendemos que, para a melhor qualidade da formação e manutenção dos pilotos brasileiros, é importante realizar os treinamentos em entidades certificadas”, afirma a agência.
As entidades ouvidas por AERO afirmam que o principal problema está na aplicação imediata das regras sem que haja uma infraestrutura instalada no país capaz de promover o treinamento exigido aos pilotos. No caso de um helicóptero Agusta, por exemplo, dizem os pilotos, o único centro de treinamento autorizado pela Anac fica na sede da empresa, na Itália. Segundo o presidente da Abraphe (Associação Brasileiro de Pilotos de Helicóptero), comandante Jorge Faria, o custo para o treinamento gira em torno de € 30.000. “E, além disso, a Agusta não suportaria a demanda de pilotos. Hoje, só há vaga disponível para agosto de 2015”, ele informa. Um estudo da Abraphe aponta que o custo total de treinamento de todos os pilotos de helicóptero brasileiros seria de R$ 278 milhões ao ano, o equivalente ao que o país deve economizar com o horário de verão.
Histórico do requisito da seção 61.213Em novembro de 2010, foi lançada a audiência pública do RBAC 61 com a proposta de que o curso teórico fosse aprovado pela Anac, sem fazer menção ao local do treinamento. A proposta também incluía a possibilidade do treinamento ser realizado por PC ou PLA com a habilitação de instrução de voo. Para o treinamento prático, a proposta não entrava em detalhes sobre centros de treinamento, porém, já limitava o treinamento e o voo de exame de perícia nas aeronaves. O texto do RBAC 61, publicado em junho de 2012, introduziu a proposta atual, limitando o treinamento em locais certificados pela Anac, liberando para PC ou PLA apenas aquelas aeronaves que não tivessem um curso aprovado pela agência, dando um ano de prazo para sua implantação. Já em junho de 2013, a aplicação dos requisitos da Seção 61.213 foi novamente prorrogada até 21 de junho de 2014 e, neste ano, também em junho, nova prorrogação foi publicada. Em setembro deste ano, houve aprovação do texto em vigor, que incorpora uma série de avanços à versão de 2012, definindo o número de horas de treinamento para as aeronaves que não possuem um programa aprovado, mas mantendo a mesma proposta de treinamento em centros, do documento inicial de 2012. Ressalta-se apenas que as contribuições à audiência pública número 10/2014 não estavam disponíveis para consulta no portal de transparência da Anac até 29 de outubro de 2014. |
Diversas entidades têm se reunido periodicamente com a Anac para tentar rever algumas das exigências ou, ao menos, prorrogar a entrada em vigor das normas. O comandante Jorge Faria afirma ter se surpreendido com a entrada em vigor das novas regras. “Participamos efetivamente com quase 200 sugestões e algumas foram alteradas exatamente para o lado negativo”, afirma o presidente da Abraphe. Para o comandante Marcelo Ceriotti, diretor-jurídico do SNA (Sindicato Nacional dos Aeronautas), as exigências são inviáveis de serem aplicadas imediatamente em virtude da falta de estrutura no Brasil. “O problema é que a Anac está ‘colocando a carroça na frente dos bois’. O Brasil não tem essa estrutura e isso vai gerar um custo absurdo. A aplicação imediata é impossível e vai inviabilizar as operações. Isso vai forçar os operadores à ilegalidade, com pilotos voando com as habilitações vencidas”, afirma Ceriotti.
As categorias |
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Existem duas categorias de aeronaves, “classe” e “tipo”. No Brasil, todos os helicópteros são classificados como “tipo”, o que significa que para voar um determinado equipamento o piloto precisa ter a licença específica para aquela aeronave. Apenas os aviões podem ser inclusos na categoria “classe”. Ainda assim, há duas divisões: monomotores e multimotores. Dessa forma, a mesma licença serve para se voar um Cessna 152 ou um Cirrus SR22, por exemplo, já que ambos são considerados aeronaves “classe”. Nesse caso, o novo RBAC não muda as regras e a concessão e revalidação continuam sendo feitas em aeroclubes ou escolas de aviação. |
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Requisitos de aeronaves “classe” e “tipo” |
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Requisito | Oaci | FAA | Easa | Anac |
Classe de avião | Sim | Sim - até 5.700 kg (12.500 lb) | Sim - Monomotores e multimotores a pistão | Sim - Monomotores e multimotores (não há limites de peso definidos) |
Classe de helicóptero | Sim | Sim - até 5.700 kg (12.500 lb) | Não | Não |
Operadores reconhecem aumento da segurança, mas pedem prazo para se criar infraestrutura
O diretor-técnico da Abag (Associação Brasileira de Aviação Geral), Daniel Torelli, também se mostra preocupado com as consequências das novas normas para o mercado brasileiro. “Esse é mais um ponto para complicar a vida dos operadores e pilotos, pois limitam e encarecem a obtenção e renovação das habilitações dos pilotos. Vários operadores que têm na aeronave uma ferramenta de solução estão questionando o custo-benefício de continuar voando”, diz Torelli.
Apesar de se revelarem surpresos com a entrada em vigor das novas regras, essas exigências já vinham sendo sinalizadas pela Anac há quatro anos, quando começaram a ser discutidas as regras implementadas pelo RBAC 61. “O processo de revisão do RBAC 61 teve início em 2010, gerando o primeiro regulamento que foi aprovado em 5 de junho de 2012. Esse regulamento já previa as regras para concessão e revalidação de habilitação ‘tipo’, e a exigência de concessão e revalidação de habilitação em simulador. Essas regras tinham prazo de implementação prorrogado até setembro de 2014, contudo, antes de entrar em vigor, a Anac revisou essa regra abrandando a necessidade de simulador e exigindo apenas que a concessão ou revalidação de habilitação ‘tipo’ fosse feita em centro de treinamento certificado, quando existir”, afirma a agência.
A Anac afirma que a exigência é uma forma de melhorar a qualidade do treinamento dos pilotos e aumentar a segurança de voo. “As melhores práticas de treinamento de pilotos são aquelas indicadas pelos próprios fabricantes das aeronaves. O uso de instituições certificadas e programas de treinamento aprovados visa garantir que os procedimentos necessários sejam adotados para a ideal formação desse profissional”, defende a Anac. O diretor-jurídico do SNA concorda com as alegações da agência, mas coloca algumas ressalvas. “As regras trazem melhoria no treinamento e aumentam a segurança de voo, mas seria necessário pelo menos dois anos para se criar a infraestrutura no país. E, se não houver incentivo, a iniciativa privada não vai se interessar”, avalia o comandante Marcelo Ceriotti.
Para o presidente da Abraphe, nem mesmo a segurança de voo é uma justificativa para a implementação das medidas. “Menos de 5% dos acidentes tiveram como fator contribuinte a falta de conhecimento da aeronave. A Anac quer combater o chamado ‘PLA amigão’, mas em uma pesquisa verificamos que apenas 2% declararam não treinar corretamente”, alega o comandante Jorge Faria. Para ele, o grande gargalo na qualidade está na formação inicial. “Tem de ser combativo lá na base. Tem muito piloto que se forma sem saber ler um METAR, fazer peso e balanceamento ou mesmo preencher um diário de bordo”, avalia Faria.
Quem também coloca em dúvida a melhora na segurança de voo em virtude das mudanças no padrão de treinamento é o diretor-técnico da Abag, Daniel Torelli. “É muito difícil mensurar de forma objetiva o quanto as modificações da norma impactarão na melhoria da qualidade. O que sabemos é que treinamento é fundamental para manter um bom nível de segurança operacional, mas não há garantia de que teremos melhora da forma como a norma foi publicada e está sendo implementada pela Anac”, afirma Torelli.
Muitos acreditam que as normas possam ser prorrogadas, mas a Anac não sinaliza que pretende desistir das exigências. Nesse contexto, o fato é que, não importa se continuarão valendo imediatamente ou se ganharão mais algum tempo para vigorar, parece inequívoco que o mercado terá de pensar em uma maneira de se adaptar às novas regras.
Outras mudançasA última emenda do RBAC 61 também trouxe outras alterações para a concessão de licenças de pilotos. Veja as principais:
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