Pilotos reféns da automação

O uso intenso de automatização na cabine tem degradado as habilidades de pilotagem manual

Por David Branco Filho Publicado em 06/10/2025, às 08h00

A automação excessiva nas cabines modernas tem reduzido as habilidades de voo manual e contribuído para incidentes graves - AI

O uso intenso de automatização na cabine tem degradado as habilidades de pilotagem manual. A solução deve passar pelo treinamento e pela política operacional das companhias aéreas.

Os aviões de transporte estão cada vez mais automatizados. Um moderno jato de passageiros possui sistemas de pilotagem automática (AP), controle automático das manetes dos motores (AT) e sistemas computadorizados de gerenciamento de voo (FMS). Em um perfil de voo convencional, o piloto atua diretamente nos controles por menos de cinco minutos — metade na decolagem e metade no pouso. Às vezes, até menos tempo, quando a aeronave está equipada com sistemas de pouso automático.

Consequentemente, existe uma preocupação crescente de que os pilotos estejam perdendo as habilidades para reagir manualmente quando há falha dos sistemas automatizados ou erro na programação dos computadores de bordo. Vários eventos têm sugerido essa dependência da automação, como aconteceu com um Boeing 757 em 2003.

A aeronave iniciou a descida, preparando-se para uma aproximação de pouso por instrumentos (ILS). O Boeing foi vetorado pelo controle para interceptar o curso do localizador. O avião desacelerou para 220 nós (KIAS) e o comandante selecionou o modo de “Aproximação” no Painel de Controle de Modo (MCP) do piloto automático. Na sequência, a aeronave foi liberada para descer até 2.500 pés, e o comandante inseriu essa altitude no MCP.

Quando o avião interceptou o curso do localizador, estava acima da rampa do ILS. O comandante, entendendo que o AP não teria condição de interceptar a rampa de aproximação, desconectou o sistema e assumiu a pilotagem manual. Um pouco depois, ele perdeu as indicações de ILS nos instrumentos do seu lado. Com a aeronave fora da rampa, os flaps sem a configuração correta para pouso e a perda de sinal do ILS sob condições de voo por instrumentos (IMC), a arremetida era o procedimento recomendado.

Sequência do incidente com o Boeing 757: como a dependência da automação quase levou à perda de controle

 

O comandante puxou o manche até ajustar a atitude em 20 graus acima do horizonte. O AT engajou, ajustando as manetes para potência máxima, e a aeronave começou a subir. Entretanto, como o procedimento de arremetida fora iniciado muito próximo da altitude que estava selecionada no MCP, o sistema mudou para o modo de “Captura de Altitude”, e o Diretor de Voo (DV) indicou uma guiagem para nivelar a 2.500 pés.

Estando em pilotagem manual, o avião ultrapassou a altitude selecionada e o DV começou a dar indicações de descida, para voltar à altitude selecionada. Subindo agora com 25 graus cabrados, em configuração de pouso, a velocidade caiu rapidamente. Quando o Boeing atingiu 137 nós, o comandante levou o manche até o batente a picar e reduziu os motores para marcha lenta. O enorme jato assumiu 49 graus de nariz embaixo.

A velocidade aumentou rapidamente na descida e, aproximando-se do solo, o alarme do GPWS começou a soar. O copiloto interferiu e ambos os tripulantes atuaram com força nos comandos a cabrar. Com um fator de carga de 3,6 g, o Boeing evitou a colisão no solo por apenas 320 pés de altura.

O evento durou menos de 90 segundos, desde a perda de controle até a recuperação. Na hora, ninguém entendeu exatamente o que aconteceu ou o porquê, mas os 75 passageiros e sete tripulantes ficaram apavorados com a experiência que, por pouco, não resultou em catástrofe.

As análises posteriores mostraram um piloto conflitado entre a atitude que deveria manter e as indicações de guiagem do Diretor de Voo. O comandante declarou que olhava para as telas à sua frente e não reconhecia a condição da aeronave. Inicialmente, no topo da manobra, supôs que o avião estivesse estolando. Depois, na picada, disse nunca ter visto um indicador de atitude mostrando só “terra” e teve dificuldade em reagir.

Ao que tudo indica, o piloto perdera suas habilidades de fazer manualmente um procedimento simples como a arremetida em IMC. Ele não controlou a atitude, a potência nem a configuração da aeronave. Também não comandou o recolhimento dos flaps ou do trem de pouso. Seu cheque cruzado dos instrumentos foi lento e suas respostas nos comandos estiveram sempre cerca de dez segundos atrasadas em relação ao avião.

Seu desempenho foi insuficiente, apesar de ser um piloto qualificado e que havia cumprido o treinamento exigido dos pilotos de linha aérea. Entretanto, o mais significativo é que este não foi um caso isolado.

Airbus A320 da Armavia, modelo semelhante ao que se acidentou na Rússia

 

Três anos antes, no Golfo Pérsico, um Airbus A320 perdeu o controle durante uma arremetida noturna, também por falta de habilidade do piloto em voo manual, causando a morte dos 143 ocupantes e a perda total da aeronave. Recentemente, em maio deste ano, outro Airbus A320, durante arremetida manual em IMC na Rússia, teve perda de controle atribuída a uma falha de pilotagem e colidiu com o solo, vitimando todos os 113 ocupantes.

Estes eventos juntam-se a vários outros acidentes ocorridos mundo afora, em que a degradação das habilidades de pilotagem na operação de aeronaves automatizadas aparece como fator contribuinte.

De fato, as companhias aéreas enfatizam o uso da automação o maior tempo possível, pois o automatismo voa melhor que o ser humano em precisão de manobras e economia de combustível. O lado negativo dessa política é produzir um piloto que só sabe voar seguindo o Diretor de Voo e que raramente olha para as informações sobre atitude e desempenho fornecidas pelos demais instrumentos.

Tudo vai bem se o voo procede normalmente e se os dados que alimentam o Piloto Automático estão corretos. Infelizmente, a programação no MCP e no FMS são os primeiros itens a serem afetados em situações de elevada carga de trabalho, distração, estresse e confusão.

Telas digitais, cartas de vôo eletrônicas e teclado: alto grau de automação é o padrão adotado nas modernas cabines de comando, como a do Airbus A380

Parece estarmos esquecendo que, independentemente do nível de automação de uma aeronave, a pilotagem envolve dois parâmetros básicos: atitude e tração. Estes dois fatores definem qualquer regime de voo.

Tem sido assim desde o primeiro voo do mais-pesado-que-o-ar. O fato de estarmos voando aviões eletrônicos em nada muda a mecânica básica do voo e a necessidade de controlar atitude e tração. Quando surge um conflito sobre o que o avião está fazendo em modo automático, só há uma resposta: reverter para a pilotagem básica, fazendo referência à atitude e à tração.

Este conceito poderia ter salvo outro Boeing 757, em 1996. O avião acabara de sair de uma lavagem e o pessoal de terra havia colocado fitas adesivas sobre as tomadas estáticas como proteção durante o serviço. Na inspeção pré-voo, a tripulação não viu as fitas e, quando o jato decolou naquela noite, com 61 passageiros, os pilotos perceberam uma grave incorreção nos instrumentos de altitude e velocidade.

Embora fosse viável controlar o avião manualmente, os computadores do piloto automático e de empuxo dos motores não tinham dados para funcionar corretamente. Voando sobre o mar, à noite, a tripulação recebia informações conflitantes, como a ativação do aviso de estol (stick shaker) simultaneamente com o alarme de excesso de velocidade.

Não podiam precisar sua velocidade nem altitude, embora o horizonte artificial e os instrumentos dos motores estivessem operacionais. Depois de 28 minutos de intensa confusão na cabine, o Boeing colidiu no mar, a 300 nós de velocidade, sem deixar sobreviventes. O avião poderia ter sido controlado se os conceitos de atitude e tração fossem postos em prática.

Talvez todos os pilotos devessem memorizar algumas combinações de atitude e tração que garantissem o voo em caso de anormalidade.

Assim como nas falhas de controle de atitude, a falha no controle de tração foi fator crítico em outros eventos.

Existe, por exemplo, uma prática de planejar a decolagem inserindo nos computadores de voo uma informação de temperatura ambiente mais alta que a real. Isso provoca uma redução de empuxo dos motores durante a decolagem, poupando a vida útil dos motores e economizando dinheiro. É um procedimento comum e aprovado na aviação comercial, observados certos parâmetros.

Mas os três casos abaixo chamaram a atenção sobre o desempenho dos tripulantes:

Estas três decolagens foram planejadas com empuxo reduzido, os aviões não tiveram o desempenho esperado e, em nenhum dos casos, os pilotos avançaram as manetes para obter empuxo máximo. Nos três casos, embora o ajuste inicial fosse inadequado, havia potência disponível para os aviões voarem.

Por que, então, os pilotos não avançaram as manetes? Seria o caso de submissão extrema aos manuais ou simplesmente uma falha na aplicação de conceitos básicos de pilotagem?

O que deve ficar claro neste universo de eventos é que o ser humano desenvolve destreza naquilo que exercita, mas também esquece o que não pratica. O cenário de operação de aeronaves automatizadas pode estar induzindo à degradação das habilidades de pilotagem, que serão requeridas, muitas vezes, em situação de emergência.

As soluções passam pelo treinamento recorrente, pelas políticas das companhias e pela fiscalização das autoridades aeronáuticas. O treinamento hoje tem forte ênfase na automação, talvez por assumir que a pilotagem básica é garantida pela experiência anterior do tripulante.

Errado. O treinamento deve passar obrigatoriamente pelo voo manual e falhas induzidas pela automação. Os acidentes estão constantemente mostrando essa necessidade. Como solução adicional, algumas empresas orientam para que os pilotos exercitem aproximações em três diferentes níveis de automação. Na maior parte do tempo, devem utilizar os sistemas automatizados por questões de economia e precisão, mas uma pequena porcentagem das aproximações deve ser feita em pilotagem manual, com e sem a guiagem do Diretor de Voo.

Estudo após estudo comprova a necessidade dos pilotos exercitarem o básico, pois os mesmos fatores causais têm emergido a cada investigação de acidente.

Por isso, o aviador precisa incentivar a manutenção das habilidades de voo que dominava quando recebeu sua licença de piloto. A automação é uma realidade sem volta e com inestimáveis avanços para a segurança e eficiência da aviação, mas também pode gerar confusão pela sua complexidade.

Quando isso acontecer, a recomendação é reverter para a pilotagem manual e retomar o controle da aeronave. E esta solução passa necessariamente pelas habilidades de pilotagem básica.

 *Publicado originalmente na AERO Magazine 149 · Setembro/2006

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