Perguntas e respostas sobre o desastre na França

O que sabemos sobre o desastre com um A320 da Germanwings que matou 150 pessoas e deixou o mundo atônito diante da hipótese de ação deliberada do copiloto

Por Giuliano Agmont Publicado em 24/04/2015, às 00h00

Um jato Airbus A320-211 matrícula D-AIPX operado pela companhia aérea alemã low-cost Germanwings, subsidiária do Grupo Lufthansa, envolveu-se em um acidente sem sobreviventes no dia 24 de março último em uma área montanhosa no sul da França. Morreram no desastre 144 passageiros e seis tripulantes. O voo 4U9525 partiu de Barcelona, na ​​Espanha, às 10h00 no horário local (09:00 UTC), com destino a Düsseldorf, na Alemanha. O voo chegou à sua altitude de cruzeiro de FL380 às 10h27. O último contato via rádio aconteceu às 10h30, com a confirmação de liberação para voo direto ao wayponit IRMAR. A partir de 10h31, depois de atravessar a costa leste francesa de Marselha, o avião começou a perder altitude. A última posição registrada pelo radar secundário Marseille estava em 10h40 a uma altitude de 6.175 pés. A aeronave se desintegrou após o choque numa montanha íngreme nos Alpes franceses, a uma altitude de cerca de 1.500 m (4.920 pés). Informações preliminares indicam que o comandante estava trancado para fora da cabine de pilotagem no momento do acidente e o copiloto dirigiu o avião a uma descida contínua rumo ao solo. O copiloto não teria respondido a perguntas de controle de tráfego aéreo enquanto a aeronave descia de 38.000 pés a 6.800 pés a uma taxa média de 3.710 pés por minuto. O avião acidentado entrou em serviço em 1990, pela Lufthansa. Depois foi entregue à Germanwings em 2003, devolvido à Lufthansa em 2004 e reincorporado à subsidiária low-cost do grupo alemão em 31 de janeiro de 2014. O jato tinha 58.300 horas de voo e 46.700 ciclos. Pertencente ao consórcio europeu Airbus Group, que nasceu da consolidação de empresas de Espanha, França e Alemanha, o Airbus A320 é o segundo avião mais vendido do mundo, com pelo menos 6.100 unidades em operação atualmente. Trata-se de terceiro pior acidente com um A320. O primeiro envolveu justamente um modelo operado pela TAM, em Congonhas, em 2007, tirando a vida de 199 pessoas. Sobre o acidente na França, conversamos com o comandante Miguel Angelo Rodeguero, especialista em segurança de voo e diretor de Segurança Operacional da APPA (Associação de Pilotos e Proprietários de Aeronaves).

Concretamente, o que é possível afirmar sobre o acidente com o A320 da Germanwings na França?

Que houve mais um acidente, e que vários indícios apontam no sentido de que tenha havido interferência direta de um dos tripulantes nas ações que levaram à tragédia. Digo dessa forma porque, embora sejam bastante consistentes, ainda são indícios, de acordo com as informações das autoridades francesas. Para que se possa afirmar num relatório de acidente o que houve, sem sombra de dúvida, é necessário percorrer todas as possibilidades e não se deter na primeira, por mais forte que possa ser. Nesse sentido, a rapidez com que se chegou à solução dos fatos relacionados ao acidente causou surpresa. Não é usual, tampouco prudente, afirmar o que, como e por que um acidente aconteceu antes de uma análise de todas as possibilidades, antes de ser possível comprovar todas as suposições, mesmo que os indícios apontem todos para a mesma direção. Sob esse aspecto, convém lembrar o acidente com outro A320, no dia 28 de dezembro de 2014 (AirAsia 8501), que caiu no mar de Java. Os pilotos perderam o controle do avião ao final da subida e o voo se precipitou no mar, matando as 162 pessoas a bordo. Os destroços foram recuperados e pouco ou quase nada foi divulgado. Embora haja indícios fortes apontando para algumas causas, ninguém até agora afirmou categoricamente o que aconteceu.

Companhias aéreas e autoridades aeronáuticas já se mobilizam para garantir que haja sempre pelo menos dois ocupantes na cabine de pilotagem nos voos regulares. Esse será o principal legado desse acidente?

Alguns países e companhias aéreas já adotam o procedimento de garantir a permanência de pelo menos duas pessoas na cabine sempre

De fato, alguns países e companhias aéreas já adotam o procedimento de garantir a permanência de pelo menos duas pessoas na cabine sempre. Já se fala sobre isso no Brasil, embora ainda não haja procedimento estabelecido. Ainda é cedo para afirmar que esse será o principal legado do acidente da Germanwings. Devemos aguardar a investigação completa para fazer uma afirmação dessa magnitude. Entretanto, se essa medida de segurança pode ajudar em alguns casos, não há garantia de que resolva todos. A porta blindada permite a abertura por fora, caso os pilotos estejam inconscientes ou impossibilitados de abrir. Isso porque, ao acionar um código pelo lado de fora, a abertura se dará em alguns segundos, desde que não haja recusa por parte dos pilotos. Em casos extremos de interferência ilícita, a porta pode ser travada mecanicamente por dentro, e não há maneira de abri-la por fora. Assim, em casos de mal súbito de um dos pilotos que possa estar sozinho no momento, a tripulação, ao tomar conhecimento, pode acionar o código e entrar. Se houver um ato de vontade do piloto para não abrir, é sinal de que ele pôde praticar esse ato, e não estaria inconsciente ou impossibilitado de agir. Mas é difícil saber o momento ou quem cometerá um ato que possa por em risco a segurança do voo. E se for exatamente a segunda pessoa na cabine a que está com as intenções extremas? Para dar um exemplo, a famosa machadinha, não utilizada pelo comandante para tentar abrir a porta (já que fica dentro da cabine), está ao alcance de ambos os pilotos. Na suposição de que um deles esteja esperando a oportunidade para praticar um ato extremo contra o voo, não seria difícil usá-la como arma contra o outro piloto, que jamais estaria esperando semelhante atitude, e a partir daí ter o cockpit à disposição. Ninguém sequer imaginaria o que estaria se passando do outro lado da porta. Não é possível prever todos os casos.

O que é possível dizer sobre os dispositivos de travamento da porta de acesso ao cockpit de aviões como o A320?

Depois do atentado ao WTC em Nova York no dia 11 de setembro de 2001 houve a implantação das portas blindadas para evitar a tomada da cabine de comando. A porta, presente em todos os aviões da aviação regular, cumpriu exatamente seu papel. Evitou a entrada de alguém na cabine contra a vontade do piloto. Sim, mas nesse caso o que se precisava era que alguém entrasse. Pois bem. Não dá para fazer uma porta blindada que analise e entenda as situações a ponto de, por si só, alterar sua programação. Tal como está, cumpre o papel para o qual foi desenhada: impedir a entrada no cockpit à revelia do piloto. Nunca será possível cercar todas as possibilidades. Nem com a máquina, tampouco com o homem que a opera. Pode ser que tenhamos alguma modificação nos procedimentos em relação à utilização da porta blindada. Ainda não temos.

Em relação aos exames médicos, teremos mudanças na avaliação dos tripulantes por parte de companhias aéreas e autoridades aeronáuticas?


Ao entrar para voar numa empresa, o piloto passa por exames médicos que incluem os psicológicos, psicotécnicos e afins. Depois, passa por reavaliação anual

Pode ser que algo mude. Mas os protocolos atuais seguem o que se pratica no mundo. Um piloto, ao tirar sua primeira licença médica, passa por exames completos. Ao entrar para voar numa empresa, passa por exames médicos que incluem os psicológicos, psicotécnicos e afins. Depois, a cada ano, passa por uma reavaliação na empresa (legislação trabalhista) e, pelo menos uma vez a cada cinco anos, ele passa por uma reavaliação psicológica pelas autoridades médicas. Dependendo da idade do tripulante, a cada seis meses ou a cada ano, há um novo exame médico sem o qual é impossível o exercício da profissão de aeronauta. Não tenho conhecimentos suficientes de psicologia que me permitam fazer afirmativas, mas entendo que nem sempre um teste consegue captar tudo, nos mínimos detalhes. Sempre haverá a possibilidade de um problema de comportamento se manifestar pela primeira vez sem aviso prévio. A tripulação é treinada para que um piloto esteja continuamente monitorando o outro. Caso um comportamento estranho se manifeste, o outro piloto tem todas as condições de entender que algo está errado e tomar atitudes de conservação da segurança do voo.

Há outros dados importantes sobre esse acidente que mereçam reflexão?

Todo acidente fornece dados, informações e lições que devem ser utilizados para melhorar a segurança do voo. Basicamente, para isso é que se aprofundam as investigações. Há que se entender por que um acidente aconteceu, assim, consegue-se evitar o próximo. Uma investigação não busca culpados. Isso é papel da polícia e da Justiça. Busca, sim, as causas que levaram àquela situação catastrófica. Avião, piloto, procedimentos, manutenção, falha mecânica? Precisamos entender os motivos de um acidente para que não o cometamos mais vezes. Muito se fala sobre o automatismo presente na operação de aeronaves. Algumas vezes a falta de interação adequada do homem com a máquina pode criar alguma dificuldade na operação. Cada evento deve nos fazer entender melhor eventuais problemas e as formas de trabalhar com a crescente computadorizacão dos ambientes de trabalho. No caso do acidente da Germanwings, como em todos os demais, todas as possibilidades precisam ser analisadas sem preconceitos, sem opiniões previamente formadas, sem teses a procura de comprovação. Assim poderemos extrair mais lições de cada evento. Porta blindada? Exames médicos? Procedimentos de cabine? Essas e muitas outras possibilidades poderão evoluir e nos ensinar coisas importantes para a segurança de nossos voos. Por isso é que dizemos que segurança de voo não tem bandeiras, não pertence a alguém. Todos têm a obrigação de evitar o próximo acidente.

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