Sistemas inerciais se tornam essenciais diante de problemas recentes de confiabilidade no sinal via satélite
Por Francisco Augusto Costa* Publicado em 22/10/2024, às 07h10
Há alguns meses, diversos operadores reportaram a perda de confiabilidade no sinal do sistema de posicionamento global (GPS) no espaço aéreo limítrofe entre Irã e Iraque, seguidos de problemas mais recentes após a escalada da crise em Israel e seus vizinhos.
Logo em seguida, a agência norte-americana de aviação, a FAA, emitiu uma notificação internacional (NOTAM A1000/23, que permanecia ativa até o final de 2023) sobre provável falha de GPS nesta área (FIR Teerã - OIIX).
Outras entidades relacionaram estes eventos ao GPS spoofing, que se difere da falha do equipamento por ser este um evento proposital. Pouco depois, alguns voos no Brasil também foram afetados pela perda de confiabilidade no sistema.
Obviamente, estes não foram os primeiros registros de spoofing ou falha sistêmica de curto prazo. A despeito da altíssima confiabilidade e da precisão dos sistemas de navegação por satélite, diante de tais eventos, autoridades, operadores de aeronaves, controladores de tráfego aéreo e, principalmente, pilotos precisam conhecer a fundo os procedimentos alternativos de navegação.
À medida que a navegação em rota baseada em auxílios-rádio se torna cada vez mais rara, sobretudo no Brasil, é necessário que as tripulações conheçam bem o funcionamento de um dos mais tradicionais e confiáveis sistemas de navegação empregados nas grandes aeronaves – o inercial. Neste artigo, AERO explora o uso destes equipamentos como sistemas de referência (IRS) e seu uso contemporâneo, como sistema integrado de navegação.
O desenvolvimento dos giroscópios teve início na primeira metade do século 19, e seu emprego na aviação, em conjunto com os acelerômetros (que terão seus princípios de funcionamento explicados a seguir), data dos anos 1940. Como muitas das inovações tecnológicas da indústria, suas primeiras aplicações foram militares, notadamente como um rudimentar sistema de navegação do míssil balístico V-2 alemão.
Como sistema de navegação na aviação, um dos primeiros equipamentos foi o Delco Electronics Carousel IV, que equipou os Boeing 747 fabricados no final dos anos 1970, servindo de base para o advento dos giroscópios e acelerômetros como as Inertial Reference Units (IRU).
Quanto à sua confiabilidade, as unidades inerciais contam com a grande vantagem de serem self-contained (uma vez inicializados devidamente), ou seja, dispensam inputs externos para seu funcionamento (até um certo limite).
Na inicialização, que consiste no alinhamento do giroscópio e da inserção da posição da aeronave, a informação é dada em coordenadas geográficas e estas coordenadas, em conjunto com a atuação do giroscópio do acelerômetro e de outros inputs, serão responsáveis pela precisão da navegação da aeronave em rota.
Nos equipamentos antigos, a inserção da coordenada geográfica era feita manualmente pelos pilotos, usando como base, por exemplo, a coordenada geográfica da posição de estacionamento da aeronave no aeroporto, conforme exibida em carta aeronáutica ou na sinalização aeroportuária. Nos sistemas de navegação contemporâneos, a coordenada inicial é “encontrada” e inserida no sistema inercial pelo próprio GPS da aeronave.
A navegação inercial é definida pela determinação da posição, da trajetória e dos movimentos da aeronave com base na medida das suas acelerações em direções espaciais conhecidas, por meio de instrumentos que mecanizam as leis newtonianas de movimento. Compõem as Inertial Reference Units (IRU) os giroscópios e os acelerômetros. Às IRU são somadas informações oriundas do Air Data System, dos rádios de navegação e do GPS.
Um giroscópio é um rotor balanceado livre para girar em três eixos (eixo de rotação, eixo de torque e eixo de precessão – estes últimos também chamados de horizontal e vertical, respectivamente), que são perpendiculares entre si, em torno do centro de gravidade do rotor.
Em sua inicialização, ou seja, ao ser energizado, o rotor começa a acelerar até estabelecer giro em altíssima rotação, ponto em que adquire duas propriedades que são fundamentais para seu funcionamento: a inércia giroscópica (que mantém o eixo do giroscópio em direção constante, independente da força que sofrer) e a precessão (que é o movimento feito pelo conjunto quando uma força tende a alterar o eixo de rotação do rotor, resultando em um movimento do eixo em plano perpendicular à direção da força).
Os acelerômetros consistem em uma massa suspensa em uma unidade capaz de medir o deslocamento dessa massa quando é perturbada, ou seja, quando sai do repouso (ou do movimento retilíneo uniforme). Como a massa é conhecida, a força que esta perturbação vai causar depende da aceleração da massa (baseado na segunda Lei de Newton, que postula que F = M * A). Essa força pode ser medida eletricamente, com grande precisão, ou mecanicamente (comprimindo molas de resistência conhecida e constantemente calibradas).
Ao medir a velocidade angular (giroscópios) e a aceleração linear (acelerômetros), o sistema é capaz de registrar a posição da aeronave com base em sua orientação e deslocamento em relação à posição inicial (coordenada geográfica inserida no sistema). Antes do advento do GPS, a navegação inercial tinha papel fundamental na precisão da navegação de longas distâncias, sobretudo em áreas sem coberturas por auxílios rádio, como regiões polares e travessias oceânicas.
Se o emprego dos auxílios-rádio em rota como meio primário de navegação tem caído cada vez mais em desuso, o mesmo não pode ser dito de sua aplicação para melhorar a precisão da navegação inercial. Isso porque as Inertial Reference Units atuais contam com alguns recursos de refinamento da posição, que se baseiam nestes antigos auxílios.
A maior parte das IRU em uso nas aeronaves contemporâneas funciona como equipamento prioritário para conferência e atualização da posição do GPS. Todavia, em eventos como os mencionados no começo deste artigo (spoofing ou falha do equipamento GPS), o piloto deve desselecionar o GPS como fonte de posição e selecionar a IRU.
Neste caso, há uma ordem de prioridade que, aí sim, fará emprego dos auxílios-rádio de solo, que geralmente será DME/DME, seguida de VOR/DME. Se por algum motivo a unidade inercial não puder fazer uso de nenhuma destas três opções de atualização, a unidade deixa de melhorar a posição com base nessas fontes e passa a contar somente com a sua própria capacidade.
Os inerciais são, portanto, equipamentos confiáveis e precisos. Contudo, acerca de sua precisão, deve ser esclarecido que se reduz à medida que a aeronave voa, desde o alinhamento inicial. Nos primeiros sistemas inerciais empregados em aeronaves, a perda de precisão era em torno de duas milhas náuticas para cada hora voada. Já os equipamentos contemporâneos perdem apenas 25% disso, ou meia milha náutica por hora voada.
A essa perda de precisão se dá o nome genérico de drift, que é causado principalmente por imprecisões muito pequenas nas plataformas e nos sensores a elas associados. Além do drift do próprio equipamento, fenômenos naturais associados ao magnetismo terrestre (notadamente gravidade e cruzamento de meridianos) e à rotação terrestre (Força de Coriólis) também exercem alguma influência na precisão do equipamento.
Nas aeronaves contemporâneas, já não se usa mais os giroscópios mecânicos equipados com spinning rotor: na aviação, emprega-se atualmente giroscópios óticos a laser que fazem uso do Efeito de Sagnac para perceber e medir mudanças de direção. Base de experiências que refutariam a Teoria da Relatividade de Einstein, o Efeito de Sagnac postula que, quando a luz se propaga em um circuito fechado, a distância que percorre dentro deste circuito se altera quando sofre uma rotação ou mudança de orientação.
O advento e a praticidade do uso do GPS fazem parecer que os equipamentos de navegação inercial cairiam em desuso, assim como ocorreu com os auxílios-rádio. O que se observa, contudo, é justamente o contrário: diversas indústrias têm feito uso intensivo dos inerciais, que acabam sendo, na verdade, a essência de alguns produtos, como drones, veículos autônomos e até mesmo dos futuros veículos de aeromobilidade urbana.
São equipamentos que podem sofrer com perda de sinal de GPS dada a sua realidade operacional, que na maior parte das vezes se dá em verdadeiros “cânions urbanos”, em meio a altas edificações e relevo. Outras aplicações, como a estabilização de câmeras, antenas e plataformas também têm se difundido nos últimos anos. Não deve tardar para que o cidadão comum, de forma consciente ou não, faça uso desse engenhoso invento em seu cotidiano.
Eles equipam as aeronaves contemporâneas por suas diversas vantagens, como maior precisão e eliminação de peso, já que dispensam o rotor e sua estrutura. O Efeito de Sagnac é descrito como a diferença de frequência (tempo de chegada) entre dois fótons viajando, a mesma velocidade, em direções opostas entre pontos equidistantes.
Se os pontos são equidistantes e a velocidade dos fótons é a mesma, a diferença de tempo (ou de frequência) se deve à velocidade angular a que é submetido o giroscópio em determinado movimento da aeronave. Ao girar no que o equipamento percebe ser um giro no sentido horário ou anti-horário, o giroscópio a laser funciona efetivamente como um equipamento de medição de velocidade angular.
O princípio de funcionamento desse tipo de giroscópio é baseado em uma cavidade ótica (um túnel selado em que as paredes são espelhos que direcionam os raios), geralmente preenchida por gás neon e que utiliza eletrodos para produzir os raios de luz. Na ocorrência de uma rotação, o Efeito de Sagnac dirá a que taxa essa rotação ocorre e, por meio de computadores, estes dados se transformam em informações úteis para a aeronave.
*Francisco Augusto Costa é piloto de A320 e mestre em Transporte Aéreo e Aeroportos pelo ITA