Nova lei do aeronauta pretende melhorar a qualidade do sono de pilotos para prevenir acidentes e incidentes
Por Vinícius Casagrande Publicado em 03/09/2015, às 00h00
Desde a primeira visita a um aeroclube, o aspirante a piloto privado recebe a recomendação de dormir bem na noite anterior à aula prática de pilotagem e, assim, chegar descansado para o voo de instrução. Essa é uma orientação que deveria ser seguida pelo piloto em toda a sua vida profissional. A realidade, no entanto, mostra que nem sempre os aeronautas estão em plenas condições físicas para exercer uma atividade que exige atenção extrema e decisões rápidas.
O problema da fadiga humana tem recebido atenção especial das autoridades aeronáuticas em todo o mundo. A OACI (Organização de Aviação Civil Internacional, ICAO na sigla em inglês) já publicou diversas recomendações para que se implemente um Sistema de Gerenciamento de Risco de Fadiga com a intenção de diminuir o cansaço dos pilotos e, consequentemente, a ocorrência de acidentes e incidentes aeronáuticos que tenham a fadiga como um fator contribuinte.
Diversas empresas ao redor do mundo já adotam o FRMS (Fatigue Risk Management System). No Brasil, nenhuma companhia aérea ainda colocou em prática o sistema que promete reduzir o cansaço e aumentar a qualidade de vida dos pilotos. E o problema não é uma possível falta de vontade das empresas. A questão é a rigidez da lei que regulamenta a profissão dos aeronautas no Brasil.
Essa realidade deve mudar após a aprovação de um projeto de lei que tramita no Congresso Nacional para alterar a regulamentação da profissão de aeronautas. O primeiro passo foi dado no começo de julho com a aprovação do projeto na Comissão de Viação e Transporte da Câmara dos Deputados e, até o fechamento desta edição, estava em análise pela Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público, sem data para ser apreciado. Entre as principais mudanças está, justamente, a criação de um Sistema de Gerenciamento de Risco de Fadiga, a ser posto em prática e regulamentado pela ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil). “Todo o escopo do projeto gira em torno do Sistema de Controle de Risco de Fadiga. A aviação brasileira tem características próprias e, portanto, deveria desenvolver sua própria tabela e seu próprio sistema. Por isso, foi determinado na lei um prazo para que a ANAC possa apresentar esse sistema às companhias aéreas, que, depois, terão um prazo para fazer com que seja, de fato, posto em prática”, afirma a presidente da Comissão e relatora do projeto, deputada Clarissa Garotinho.
Questionada sobre se já há estudos preliminares para a criação do sistema, a agência respondeu, em nota, que “se a reforma na referida Lei do Aeronauta contemplar o que é recomendado pela OACI, a ANAC poderá adotar tais recomendações, por meio de um Regulamento Brasileiro de Aviação Civil (RBAC) específico sobre o assunto do risco da fadiga humana na aviação. Este regulamento específico sobre o gerenciamento da fadiga humana não pode e não poderá sobrepujar-se à Lei, que está em processo de alteração no Congresso, pois temos que estar harmonizados com a Lei do Aeronauta”.
Apesar de não haver ainda uma previsão para a entrada em vigor do sistema, pilotos e representantes das companhias aéreas se mostram otimistas com as mudanças e afirmam que elas devem melhorar a qualidade de vida dos profissionais da aviação e aumentar a segurança de voo. O presidente do Sindicato Nacional dos Aeronautas, comandante Adriano Castanho, considera que o processo foi pensado para contemplar as duas partes. “O projeto não traz redução de jornada e nenhum ganho financeiro, mas resolve muitos problemas”, diz. A avaliação é compartilhada pelo presidente da Abear (Associação Brasileira das Empresas Aéreas), Eduardo Sanovicz. “Estamos preocupados em melhorar continuamente para manter esses padrões de segurança. O sistema de gerenciamento de risco de fadiga é mais um e precisa ser implementado com nível de excelência para manter a segurança”, afirma Sanovicz.
O novo projeto de lei prevê ainda diversos outros pontos que devem melhorar a qualidade de vida dos pilotos. É o caso, por exemplo, do trabalho em madrugadas consecutivas. Pela lei atual, um piloto pode estar no comando de uma aeronave por até seis madrugadas seguidas. A nova lei pretende restringir esse limite para apenas duas noites de trabalho. “Está absolutamente correto. Na nossa avaliação, ficou muito mais adequado”, afirma Sanovicz. “Limitar a duas madrugadas é o que o mundo utiliza e é o recomendado”, comemora Castanho.
Os aeronautas também devem ganhar mais folgas mensais e descanso de melhor qualidade. O projeto de lei prevê aumentar o número mínimo de folgas para 10 dias por mês, sendo que apenas duas delas poderiam ser folgas simples. Para o presidente do SNA, isso é de extrema importância para tripulantes que têm base operacional distante do local de residência da família. “O problema é que aeronautas do Brasil inteiro acabam baseados em São Paulo e com um dia de folga perdem muito tempo de descanso para visitar a família”, diz Adriano Castanho.
O presidente do SNA acredita que, apesar de ser reconhecidamente um risco para a segurança de voo, a fadiga ainda é um tema que não recebe a devida atenção das autoridades aeronáuticas, especialmente na investigação de acidentes ou incidentes. “É preciso investigar a fadiga. Hoje, só se coloca no relatório o fator humano, mas não se diz por que o piloto errou. Por isso não temos estatísticas no Brasil. Quando o Cenipa constata fadiga de material, é feita uma recomendação ao fabricante. Mas e quando é a fadiga do piloto?”, questiona o aeronauta.
Para avaliar a real situação dos pilotos brasileiros em relação à fadiga durante as operações de voo, um recente estudo conduzido pelo comandante Paulo Licati, da Abrapac (Associação Brasileira de Pilotos da Aviação Civil), avaliou a fadiga de pilotos de acordo com a jornada de trabalho. No total, 301 comandantes e copilotos responderam a um questionário sobre as sensações de fadiga durante as operações aéreas. Os dados foram, então, comparados com uma análise biomatemática utilizada com o software FAST (Fatigue Avoidance Scheduling Tool), que analisa a efetividade de reação dos pilotos de acordo com a duração e o tempo de sono.
O estudo mostra que a falta de um descanso apropriado pode causar sérios prejuízos à operação aérea. Segundo Licati, 79% dos eventos FOQA (Flight Operations Quality Assurance) estão relacionados com pilotos com menos de 77% de efetividade. Quando uma pessoa atinge 75% de efetividade, é o equivalente a ela ter 0,05 mg/l de álcool no sangue, o limite máximo permitido pelo Conselho Nacional de Trânsito, por exemplo. Ao atingir 70% de efetividade, esse valor sobe para o equivalente a 0,08 mg/l. Uma das principais causas para aumento da fadiga entre os pilotos está justamente na mudança do ciclo do sono. A pesquisa aponta um aumento de quase 50% do risco nas operações entre meia-noite e 6 horas da manhã. Segundo os dados da pesquisa, 70% dos pilotos relataram ocorrência de fadiga entre 2 horas e 4 horas da madrugada.
Entre os principais sintomas fisiológicos reportados pelos pilotos como sinal da fadiga estão o bocejo, a dificuldade de manter os olhos abertos, a vontade de esfregar os olhos e a cabeça balançando ou caindo. Como consequências que podem prejudicar a segurança de voo estão sintomas cognitivos, como atenção prejudicada (mais de 80%), comunicação reduzida (mais de 60%), consciência situacional prejudicada (mais de 50%), memória prejudicada, mau humor e tomada de decisão prejudicada (os últimos acima de 30%).
O estudo mostra que o sono é um fator fundamental para prevenir a fadiga dos pilotos e aumentar a segurança das operações aéreas. Cerca de 50% dos pilotos manifestaram fadiga com tempo médio de vigília de 7 horas. Esse resultado foi decorrente muito provavelmente do sono deficitário nas últimas 24 horas (média de 5 horas) ou do débito crônico de sono nas últimas 72 horas (média de 7,4 horas). Eis a evidência de que aquela orientação que o aspirante a piloto privado recebe ainda no aeroclube não deve nunca ser ignorada nunca em toda sua vida de aviador.
Principais mudanças na Lei do AeronautaO projeto de lei aprovado na Comissão de Viação e Transporte da Câmara dos Deputados traz diversas alterações na regulamentação da profissão. No entanto, alguns pontos ainda podem ser modificados na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público, onde tramitava até o fechamento desta edição, e na Comissão de Constituição de Justiça, que seria o passo seguinte do processo. Confira as principais mudanças propostas pelos parlamentares:
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Como fica a aviação geral?Pouco mais de um ano após o acidente fatal que tirou a vida do então presidenciável Eduardo Campos, o Sistema de Gerenciamento de Risco de Fadiga, um dos principais pontos da nova Lei do Aeronauta, ainda é uma incógnita para os profissionais da aviação geral. Com escalas de trabalho bastante diversas, a implementação do sistema se torna uma tarefa bastante complexa. O representante do Sindicato Nacional dos Aeronautas Raul Marinho afirma que estudos nesse sentido ainda estão em andamento e que novas propostas podem ser apresentadas durante a tramitação do projeto de lei na Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público. “A dificuldade técnica é o grande leque de operações, desde o helicóptero que voa em São Paulo, o táxi-aéreo em Macaé ou na Amazônia e o fazendeiro. Para cada caso, é necessário um estudo técnico e isso é muito complicado”, afirma. Os operadores que não adotarem o Sistema de Gerenciamento de Risco de Fadiga, pelo projeto de lei, passam a ter limites mais restritivos de horas de voo. Para aviões convencionais, esse limite passa a ser de 100 horas por mês e 960 horas por ano. No caso de turbo-hélices será de 85 horas mensais e 850 horas anuais, enquanto os pilotos de aviões a jato ficam limitado a 80 horas por mês e 800 horas por ano. Por fim, os pilotos de helicóptero ficarão restritos a 90 horas por mês e 935 horas por ano. |