Extremamente ágil, o RV-8A se sente à vontade executando loopings, tunôs e outras manobras acrobáticas de alto desempenho
Por Decio Corrêa* Publicado em 28/01/2025, às 15h00
É inegável a contribuição da construção amadora para a evolução da aviação civil. Os norte-americanos entenderam isso rapidamente e passaram a estimular projetos experimentais. Criaram o famoso “por conta e risco do proprietário” e deixaram a atividade livre para criar, inovar e experimentar.
Os modelos RV, concebidos pelo engenheiro Richard VanGrunsven, fundador da Van's Aircraft Corporation, são frutos dessa iniciativa. A empresa, que nasceu em 1973 e funcionava em um galpão em Reedville, Oregon, começou produzindo kits do monoplace RV-3.
A oportunidade de voar um RV-8A, ou simplesmente “Oito”, surgiu quando o construtor e piloto Reinaldo de Barros resolveu montar um exemplar deste notável experimental acrobático em sua fazenda, no município de São Manuel, na região oeste do estado de São Paulo.
Quando cheguei ao local do ensaio e mirei o avião, fiquei com a clara sensação de que voaria um legítimo caça de dimensões reduzidas. Este confortável cross-country foi criado a partir de outros dois modelos biplace de sucesso: o RV-4 (tandem) e o RV-6 (lado a lado), lançados em 1981 e 1985, respectivamente.
O RV-8 resgatou o conceito tandem do RV-4, mas incorporou um cockpit mais largo e um painel de instrumentos maior do que o de seu antecessor. O experimental, que foi apresentado em meados de 1995, pode receber motores com potência de 150 hp a 200 hp.
O modelo a ser ensaiado está equipado com um Lycoming IO-360, de 200 hp, que garante uma velocidade de cruzeiro de até 212 mph (milhas por hora) e uma velocidade máxima de 222 mph.
O RV-8A montado por Reinaldo de Barros é um monoplano asa baixa de construção tradicional em alumínio com trens de pouso fixo. Os ailerons e os profundores são acionados por barras rolamentadas e roldanas. O controle do leme de direção é feito através de cabos de aço. A estrutura do experimental é monocoque (ou stressed skin), o que proporciona resistência ao conjunto. As asas em perfil NACA 230 possuem uma longarina principal e uma secundária.
O voo solo é executado na nacele dianteira, onde estão instalados os instrumentos principais. A nacele traseira tem instrumentos e controles básicos, mas não os freios. O RV-8A possui um segundo compartimento de bagagens, de 4,75 pés cúbicos, alojado entre o painel de instrumentos e a parede de fogo do motor. O tradicional bagageiro fica atrás do assento traseiro.
O PP-XCW brilha ao sol da tarde no pátio do hangar em frente à pista. A boca de tubarão pintada no nariz do avião não me intimida. Apesar da agressividade dos dentes de um predador, noto um certo respeito por parte do “animal”. Acho que estamos nos estudando. Com plena admiração, passo a rodeá-lo, acariciar suas asas, afagar seu nariz e alisar seu costado.
Sem pressa, ajusto e prendo meu paraquedas, acomodo-me em seu cockpit, ajusto os pedais e afivelo os cintos de segurança. Os aviões são assim: não gostam de ser tratados como uma cavalgadura qualquer. Seu espaçoso cockpit é como um casulo que me acolhe.
Enquanto o comandante Paulo, que será meu companheiro de voo, passa o briefing do painel, avalio a incrível ergonomia dos instrumentos e comandos. É um dos melhores projetos que já tive oportunidade de avaliar. Tudo está à mão de maneira lógica, prática e confortável.
O voltímetro, o acelerômetro digital e o ELT estão dispostos de modo bem distribuído. No centro do painel há dois indicadores de derrapagem (turn & bank), um para voo normal e outro para voo invertido, e um acelerômetro mecânico.
À minha esquerda reconheço o velocímetro, o totalizador de combustível (fuel quantity), além do indicador de balanceamento dos tanques. Localizados mais ao centro do painel estão o indicador de razão de subida (climb), o altímetro e a bússola elétrica.
Reclino a cabeça e noto o indicador de ajuste do compensador, o ajuste (trim) dos ailerons e o horímetro. Continuo o reconhecimento e passo a vista pelo indicador dos parâmetros de motor Vision Macro System, o mostrador de rotações por minuto (rpm) e o da pressão de admissão (manifold pressure).
Também integram o painel do RV-8A um transponder Bendix King digital, um GPS (com VHF KLX 135A), um Intercom, um Digital Clearance Recorder e as manetes de passo de hélice e mistura. No console lateral direito, saltam aos olhos os interruptores da chave master, da Master Avionics, da bomba elétrica, das luzes de alerta, de navegação e de pouso, além da chave de ignição e do starter. Já no console lateral esquerdo, observo a manete de potência. Os interruptores de ajuste (trim) do profundor e dos ailerons estão postos na cabeça do manche.
O Paulo está preocupado. Como não há freios no cockpit traseiro e todos os principais controles de motor estão na dianteira do avião, ele terá dificuldade para intervir caso surja alguma emergência em voo ou no pouso. Sem arrogância, procuro tranquilizá-lo, pois o Charlie-Whisky me passa uma grande confiança.
Toda aeronave acrobática possui um cinto de segurança de quatro pontos, que fixa firmemente o piloto ao assento e permite que ele suporte grandes pressões negativas. Os dois cintos de ombros devem “colar” o piloto ao encosto e os dois cintos de barriga e quadris devem imobilizar a cintura do piloto no assento. Apesar de extremamente eficientes, as aeronaves acrobáticas devem contar ainda com um segundo cinto (vermelho) de segurança, para a eventualidade de haver uma ruptura ou eventual afrouxamento do cinto principal durante as manobras acrobáticas.
Para se ter uma ideia da importância da robustez desses cintos e do seu ajuste, durante uma manobra invertida (de cabeça para baixo), quando um piloto de 80 quilos comanda uma manobra de cinco G negativos, a pressão sobre os cintos chega a 400 quilos.
O comandante Paulo levanta o polegar, sinalizando que está pronto. Com a chave de aviônicos desligada, avanço ligeiramente a manete de potência, levo a mistura à frente e ligo a chave master. Luzes de alerta ligadas, bomba elétrica acionada por três segundos e recuo a manete de mistura. Aciono o start e, quando o motor “pega”, levo a manete de mistura à frente e ligo o alternador.
Ajusto para 1.000 rpm e o Charlie-Whisky ganha vida. Ligo a master aviônicos e faço uma rápida checagem da comunicação via rádio com o Paulo e o comandante Copini, que decolará no Maule paquera.
Deixo o motor Lycoming aquecer lentamente enquanto me familiarizo com os comandos e os instrumentos. É uma rotina que cumpro a cada novo avião voado. Depois de algum tempo, fecho os olhos e tento visualizar cada um dos instrumentos e dos comandos.
O Maule também está pronto e iniciamos um táxi lento para a cabeceira. Apesar de ser uma aeronave convencional, a visibilidade é excelente, mesmo durante o táxi. Na verdade, o canopi em bolha e a altura do assento proporcionam uma visibilidade parecida com a de um caça. Checagem de cabeceira concluída, travo o canopi, confiro mais uma vez o ajuste do compensador, faço um ajuste final nos cintos e estamos prontos.
Aguardo a decolagem do Maule, alinho no centro da pista, aplico os freios e avanço a manete de potência, aguardando a rotação subir. Libero os freios, completo gradativamente a potência e começamos a corrida de decolagem. A aceleração é absolutamente deliciosa; completamente diferente de qualquer aeronave que já tive oportunidade de voar. O equilíbrio entre o peso e a potência do RV-8A proporciona uma sensação incrível. É como acelerar um Mercedes-Benz esportivo.
Disparamos pela pista, levanto a cauda a 50 mph e, sem qualquer esforço, decolo a 75 mph. Mantenho um pitch suave e deixo embalar para 120 mph. A harmonia de comandos é outra grata surpresa; novamente aquela sensação deliciosa de guiar um Mercedes. A visão é panorâmica. A altura do assento e o canopi em bolha me fazem lembrar do NA-T6 e do P-51 Mustang que tive o privilégio de voar em Oshkosh alguns anos atrás. Confiro a marcação de 1.000 pés por minuto, no climb, a velocidade estabiliza em 140 mph em subida.
O Maule cresce à nossa frente e, como estamos longe do local onde iremos fazer as fotos, a Represa de São Manuel, decido fazer uma manobra inédita em ensaios de AERO.
Começo um mergulho, deixo a velocidade atingir 160 mph e dou início a um tonneau barril, daqueles que faríamos se a nossa mulher estivesse grávida a bordo. Suave, pouco G, bem lento. O nariz do “Oito” passeia, cruzando a linha do horizonte por duas vezes, e mergulha quietinho, parando na estradinha por onde começamos.
Sem resistir, mantenho o mergulho até 180 mph e vou comandando um looping igualmente suave, sem pressa. Aproveito a energia e puxo o nariz para a vertical e mantenho. Uma rápida olhada para a linha do horizonte indica que estamos um pouco negativos. Uma leve pressão à frente no manche e estamos subindo numa vertical perfeita. Olho o velocímetro e ainda estamos a 110 mph. O bichano não perde embalo.
Um pouco de pedal esquerdo e ailerons à esquerda para corrigir o torque da hélice e aguardo a velocidade cair. Cruzamos as 140 mph e o avião ainda mostra força para subir. Aguardo a clássica “perda do assento” e, quando sinto que o RV-8A não tem mais potência para seguir em frente, empurro o pedal esquerdo até o batente. O nariz gira pelo céu azul, mergulhando em direção à terra. Na descida, comando meio tonneau vertical e recupero para o voo nivelado. Foi um belo Hammerhead. Estou verdadeiramente encantado com a manobrabilidade e a harmonia de comandos do “Oito”.
Recoloco a pequena fera na proa da represa e logo avistamos o Maule, não muito distante. Empurro as manetes à frente e disparamos para 180 mph. Rapidamente estamos na ala do Maule, e o fotógrafo Márcio Jumpei inicia seu trabalho. O sol forte da tarde ressalta o azul das águas da represa e o verde de suas margens. Executamos algumas trocas de posição, sempre sob o comando de nosso paquera.
O Charlie-Whisky adquire vida própria e se antecipa aos meus comandos, como se ele estivesse conduzindo o show. Ele é o artista, está no seu palco e dirige o espetáculo. Gira de dorso, voa de faca, executa saídas pela esquerda, pela direita, voa em linha de frente, exibe suas costas, mostra seu focinho de tubarão... Sou mero coadjuvante, apenas executo suas ordens. O “Oito” enquadra-se naquela categoria dos aviões francos, honestos, ágeis, orgulhosos e cheios de personalidade.
Encerramos a seção de fotos, despedimo-nos do Maule e continuamos nossa avaliação. Voo nivelado a 5.000 pés e anoto uma velocidade de cruzeiro de 205 mph. Reduzo o motor, mantenho 30 graus de pitch e o estol acontece tranquilo a 60 mph.
O que mais me impressiona nessa máquina é sua espetacular harmonia de comandos e sua docilidade nas manobras. A capacidade de recuperação de velocidade é incomparável. Basta reduzir o motor, colocar o avião no pré-estol, aplicar potência total e a reação é imediata.
Chega a hora do retorno. Aproo a pista da fazenda e vamos perdendo altura lentamente. Entro na perna-do-vento com 200 mph de velocidade, aplico um power-off e deixo desembalar normalmente. Cruzamos o través da cabeceira e ainda estamos velozes.
Prolongo o afastamento e giro a curva-base a 100 mph. Intercepto uma reta final longa. A sensação é de que não vamos chegar. Mantenho o perfil de descida e resisto à tentação de “dar um motorzinho”.
Passo de hélice e mistura à frente, vou ajustando o nariz com suavidade e cruzamos a cabeceira a 75 mph. Calço o motor, apenas para ter fluxo no leme e no profundor, e tocamos suave nos três pontos. Mantenho a reta com leves toques nos pedais e nos freios, e paramos em menos de 300 metros.
Definitivamente um avião honesto e dócil no pouso. Taxiamos até o hangar. Motor cortado, aviônicos, luzes e master desligados, e mais um voo está encerrado. Este foi especial. Enquanto meu olhar percorre os instrumentos adormecidos do painel, ouço os cracks do motor desaquecendo. Já voei mais de 130 tipos diferentes de aeronaves e afirmo que, seguramente, o RV-8A figura entre as dez melhores.
VANS RV-8A | ||
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Fabricante | Van’s Aircraft Corporation | |
Preço básico da aeronave ensaiada | US$ 150.000,00* | |
Motor | Lycoming IO 360 | |
Potência | 220 hp | |
Hélice | Hartzell bipá com passo variável | |
Capacidade | 2 assentos | |
Envergadura | 7,92 m | |
Comprimento | 6,40 m | |
Altura | 1,73 m | |
Peso vazio | 508 kg | |
Peso máximo de decolagem | 816,46 kg | |
Capacidade total dos tanques | 46 galões / 157,5 litros | |
Capacidade de bagagem | 56,69 kg | |
Velocidade de estol | 58 mph | |
Velocidade máxima | 221 mph | |
Velocidade de cruzeiro (75% de potência) |
210 mph | |
Razão de subida | 2.700 pés/minuto | |
Distância de decolagem | 152 m | |
Distância de pouso | 152 m | |
Alcance | 1.255 km | |
Teto máximo | 22.500 pés |
* Publicado originalmente na AERO Magazine 130 · Março/2005